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11 de setembro de 2011
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09:45

A barbárie será televisionada

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Sul 21
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A barbárie será televisionada
A barbárie será televisionada
"Para uma guerra do 'bem' contra o 'mal', o enredo muda com uma velocidade impressionante, temos de convir. E é justamente por isso que precisamos nos lembrar sempre da sequência dos acontecimentos" | Foto: Wally Gobetz/Flickr

Maíra Kubík Mano

Foi no dia 11. Ninguém esperava o golpe, mas ele veio mesmo assim, rápido e rasteiro. Não demorou muito para a notícia se espalhar e uma multidão sair às ruas para acompanhar, apreensiva, o desenrolar dos fatos. Era abril de 2002 e o governo de Hugo Chávez estava por um fio. Do outro lado da trincheira, a mídia já empossava a oposição. Âncoras de telejornais sorriam satisfeitos com o que supunham ser o fim do bolivarianismo, ignorando o povo que se aglomerava em frente ao palácio de Miraflores para exigir a volta de seu presidente. O registro das imagens do que acontecia de fato em Caracas foi garantido por uma dupla de cineastas irlandeses que oportunamente estavam nos bastidores do gabinete chavista. No ano seguinte, eles lançaram o documentário “A revolução não será televisionada” e nos deram a rara chance de comparar o discurso midiático altamente panfletário com a realidade e concluir que a distorção era imensa.

Alguns meses antes, em um outro dia 11, mas de setembro de 2001, o mundo acompanhou, ao vivo e a cores, a queda do World Trade Center. O choque do segundo avião foi visto em tempo real, ainda que os olhares atônitos dos espectadores quisessem crer que se tratava apenas de uma ficção científica – brincadeira de mal gosto, à la Orson Welles. Mas não, não era. A nuvem de poeira começou a se espalhar, corpos a cair e a estrutura monumental simplesmente desmoronou diante de câmeras e mais câmeras, profissionais e amadoras. Choro, correria, desespero. Tudo gravado e pronto para ser exibido no que seria um dos eventos mais importantes do século.

A princípio, as coberturas de Nova York e de Caracas parecem não ter qualquer relação. Mas, quando paramos para observar com cuidado, percebemos que elas guardam algo em comum: a descontextualização dos fatos, um notório padrão de manipulação da mídia.

Enquanto os venezuelanos escondiam em absoluto os protestos pelo retorno de Chávez, os Estados Unidos expuseram cada pedacinho de foto para empurrar o país rumo à guerra no Afeganistão, pouco questionando o que levou a atitude tão extremada. “É terrorismo. E ponto”. Um discurso único, semelhante ao que expõe Chávez como um lunático com delírios marxistas.

Será tão simples assim?

Osama bin Laden, cujo nome antes circulava à boca pequena, tornou-se o único responsável pela tragédia. Culpado ele era, sem dúvida, só que sua origem foi secundarizada em seu linchamento público: tratava-se de alguém antes considerado “amigo” que ajudou na luta contra os soviéticos e foi devidamente financiado pelos EUA para isso. O que teria acontecido nesse ínterim de mais de 20 anos até o 11 de Setembro?

Ninguém parecia conseguir conectar muito bem os fatos, mas também não era tão importante assim. Queimar o infiel na fogueira já daria conta do recado.

A lição poderia ter sido aprendida nessa década pós World Trade Center, mas aparentemente, ainda não conseguimos olhar criticamente para as parcas informações que recebemos de Fox News e cia., como bem nos mostra a Líbia.

Assim, um pouco autistas, acompanhamos excitados a incursão do exército de George W. Bush por Cabul – e da lucrativa indústria da guerra. Vimos a queda dos talibãs pela televisão e a grande denúncia de que eles plantavam papoula para fabricação de ópio e heroína – uma informação aparentemente nova sobre drogas que, por supuesto, não são consumidas por americanos.

Em 2003, veio a inovação. Os pontinhos verdes que costumavam marcar as telas durante a Guerra do Golfo, na década de 1990, estavam para lá de ultrapassados. A invasão do Iraque tinha até hora e data para começar. Equipes de televisão se posicionavam nos telhados de Bagdá apenas aguardando que a primeira bomba caísse. E elas vieram, aos montes. Saddam Hussein era então acusado de possuir armas de destruição em massa, um perigo para o mundo abalado pelo terrorismo. Sim, o mesmo Saddam que havia sido apoiado pelos EUA na guerra Irã-Iraque. Mas, mais uma vez, isso era uma informação secundária, lembrada somente em uma ou outra matéria.

Agora, o Ocidente se envolveu em outro combate, desta vez na Líbia. Muammar Gaddafi, que oscilou entre a esquerda e o autoritarismo de direita ao longo das décadas, e cujo país tem uma reserva de petróleo estimada em 22 bilhões de barris, estava na berlinda diante da chamada “primavera árabe”. Bastou pouco para que a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ingressasse em mais uma Cruzada e decidisse apoiar rebeldes que, antes, eram ligados ao chamado terror internacional, inclusive à Al-Qaeda.

Mas não foram eles que destruíram as torres gêmeas?

Novamente os bandidos viraram mocinhos e vice-versa, nesse filme confuso e complexo da contemporaneidade. Para uma guerra do “bem” contra o “mal”, o enredo muda com uma velocidade impressionante, temos de convir. E é justamente por isso que precisamos nos lembrar sempre da sequência dos acontecimentos.

A lição poderia ter sido aprendida nessa década pós World Trade Center, mas aparentemente, ainda não conseguimos olhar criticamente para as parcas informações que recebemos de Fox News e cia., como bem nos mostra a Líbia. Dentro do discurso único construído e propagado pela mídia, insistimos em colocar lentes distorcidas para enxergar o mundo árabe, onde, de repente, todos parecem bárbaros. As notícias são dadas em fragmentos, como se uma não estivesse diretamente relacionada à outra, muito menos com o 11 de Setembro. Filmamos a barbárie que nós mesmos provocamos e nos deleitamos com isso, num misto de curiosidade mórbida com revanchismo para tomar de volta a Terra Santa. Desconfiamos da rede árabe que transmite alguns pontos de vista diferentes e seguimos, satisfeitos, diante de nossos televisores. Afinal, já estamos “acostumados” às guerras no mundo árabe.

Será que a humanidade mudou tanto assim com o 11 de Setembro? Ou a diferença é simplesmente que as mortes, daquela vez, aconteceram em solo americano e em maior proporção?

Maíra Kubík Mano é jornalista, doutoranda em Ciências Sociais e autora do blog Viva Mulher


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