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4 de julho de 2011
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09:34

O futuro não precisa de guru, afirma dissidente do Wikileaks

Por
Sul 21
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"Muitos políticos estão assustados, porque não conseguem entender esse mundo inteiramente novo e acreditam que ele pode ter um impacto negativo sobre a sociedade" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Igor Natusch

Durante cerca de dois anos e meio, o ativista alemão Daniel Domscheit-Berg dividiu com Julian Assange o papel de figura pública do WikiLeaks. A organização trouxe à luz documentos secretos de vários governos e tornou-se uma espécie de ícone do ativismo político na era digital. No entanto, insatisfeito com os rumos do projeto, Daniel deixou o WikiLeaks para trás. E não foi uma separação amigável, como mostra o livro Os bastidores do WikiLeaks – onde Julian Assange é retratado como uma pessoa narcisista e capaz de atitudes dissimuladas para ganhar dinheiro ou poder. Parte da renda obtida com a venda do livro está sendo empregada em outro o projeto: o OpenLeaks, do qual Domscheit-Berg é o nome de maior visibilidade.

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Em nome do OpenLeaks, Daniel Domscheit-Berg esteve em Porto Alegre no final da semana passada, participando do 12º Fórum do Software Livre (Fisl). Ao contrário do WikiLeaks, que recebe documentos sigilosos e os distribui de acordo com os próprios critérios, o OpenLeaks tem como meta dar aos informantes uma autonomia maior quanto ao impacto das informações que pretende revelar. Ao invés de um site centralizador, o OpenLeaks será um serviço que intermediará o contato de quem tem a informação com aqueles a quem o próprio informante decidir revelá-la.

Daniel Domscheit-Berg atendeu a reportagem do Sul21 na última sexta-feira (1º), após uma de suas palestras no Fisl. Durante cerca de 40 minutos, conversou de forma animada e cordial sobre o OpenLeaks e as possibilidades de atuação política via internet.

Não se furtou a comentar sobre o WikiLeaks, explicando suas diferenças com a organização em geral e com Julian Assange em particular. E reforçou princípios que considera fundamentais para quem busca uma internet livre e engajada. “O futuro não será de uma pessoa que dirá ‘eu conheço a solução, venham todos atrás de mim’, porque as coisas não funcionarão desse jeito”, defende.

Sul21 – Durante a sua palestra, você frisou muitas vezes que um dos principais objetivos do OpenLeaks é dar aos informantes um maior controle sobre quem receberá as informações e o que será feito com elas. É uma grande diferença em relação ao WikiLeaks, que funciona como um centralizador, recebendo os vazamentos e controlando sua distribuição.

Daniel Domscheit-Berg – O OpenLeaks se concentra em oferecer tecnologia capaz de proteger os informantes. A informação que está sendo difundida e quem está espalhando-a, nada disso nos diz respeito de fato. Nenhum documento será divulgado pelo OpenLeaks. Nós apenas garantimos que as pessoas possam transmitir informação anonimamente e de forma segura, e que outros possam publicar essa informação, trabalhar a partir dela ou tomarem qualquer outra atitude que julguem a mais adequada.

Sul21 – E como funcionará o OpenLeaks? De que forma se dará aos informantes esse tipo de controle sobre os dados que divulgam?

Daniel Domscheit-Berg – É muito simples, na verdade. Você vai até o site do seu jornal de preferência, e ele terá um link que diz “caso você esteja disposto a dividir informação conosco” e por aí vai. E então você pode enviá-la por meio desse link. Não há um site do OpenLeaks para o qual você manda os documentos. É um serviço. Cada um de nossos parceiros terá o seu próprio website. Então, você pode ir para leaks.greenpeace.org e submeter informação para o Greenpeace, por exemplo.

"Wikileaks se tornou mais uma questão de inserir-se na cultura pop do que de prestar um serviço eficiente" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – O OpenLeaks vem sendo comentado desde o ano passado, e seu lançamento já sofreu alguns adiamentos. Atualmente, a data prevista é agosto. Colocar tudo em funcionamento está levando mais tempo do que o previsto?

Daniel Domscheit-Berg – Está tomando bastante tempo, especialmente porque você tem que levar em conta uma série de detalhes. O problema é, por exemplo, que agora todo veículo jornalístico terá o seu próprio site para documentos vazados, por meio do serviço que vamos oferecer. Portanto, existe uma conexão entre o site comum do jornal e o site onde serão inseridos os documentos. Então, você precisa entender o que o site normal é e como ele funciona. Se nós temos, sei lá, um script Java para anúncios, para Twitter ou Facebook, isso tem que ser levado em conta. Quanto dos dados dos visitantes (da página dos documentos) será dividido com outros interessados? Isso é importante, pois tem uma implicação na segurança e no direito a sigilo de um possível informante. Então, você precisa entender a mecânica e o sistema dos sites com muita clareza, e isso toma tempo. A nossa solução não está fechada, é preciso coordenar a atuação de todos os participantes.

Sul21 – Entendo que você não faz mais parte do WikiLeaks e que ficar discutindo sobre ele pode ser cansativo, mas algumas questões sobre ele podem ajudar as pessoas a entender melhor o próprio OpenLeaks. Em primeiro lugar, em que ponto você acredita que a ideia original do WikiLeaks se perdeu? O que aconteceu que fez você sentir que tinha que sair do WikiLeaks e tentar algo novo?

Daniel Domscheit-Berg Foi mais ou menos na época em que publicamos “Assassinato Colateral” (vídeo que mostra civis, incluindo dois jornalistas da Reuters, sendo mortos por forças dos EUA no Iraque). A primeira ideia de Julian (Assange), quando estávamos com o material pronto para o vazamento, era vendê-lo para a CNN por US$ 1 milhão. Naquele momento, o objetivo era apenas ficar o mais famoso possível. Na época, minha sugestão, e de várias outras pessoas dentro do WikiLeaks, era de pegar parte das doações que tínhamos arrecadado e investir na estrutura do projeto, crescer como organização, somar tecnologia e basicamente dar um passo de cada vez. Julian, por outro lado, queria que tudo acontecesse o mais rápido possível. Fazer dinheiro, receber doações, ficar muito famoso e coisas assim. Foi quando eu percebi que a ideia tinha se perdido. É como algo que voa muito alto, mas não é estável, como uma aeronave ou algo assim. Na minha visão, você precisa avançar aos poucos, de forma a criar algo que possa ser mantido, e essa não era a visão de Julian.

Sul21 – Podemos dizer então que o WikiLeaks perdeu a ideologia, a ideia de ser um serviço?

Daniel Domscheit-Berg – Sim, com certeza. O objetivo deixou de ser esse, e passou a ser a pura manutenção do projeto. Muita preocupação em ficar famoso, em alcançar popularidade. Tornou-se mais uma questão de inserir-se na cultura pop do que de prestar um serviço eficiente. Tudo passou a girar em torno de poder. Eu tinha problemas com Julian constantemente, e nessas ocasiões ele me dizia que eu não estava em posição de desafiá-lo. Quando algo estava dando errado e ele era questionado por isso, ele dizia: “não desafie a liderança em momentos de crise”. Imagine isso!

"Julian Assange não ouve ninguém, e também por isso acaba fazendo inimigos" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Julian Assange se julga, então, o líder do WikiLeaks?

Daniel Domscheit-Berg Nem mesmo um líder, é mais como um ditador mesmo. É como se estivéssemos na União Soviética ou algo assim! Ele dizia que não se deve desafiar o líder durante uma crise, mas o WikiLeaks é algo que está em crise permanente. Sempre há um novo documento, um novo problema para ser superado. Você tem que ser capaz de desafiar a si mesmo, ter a capacidade de questionar se está no caminho certo. Sem esse questionamento, não há como evoluir. Você fica estacionado e não realiza mais nada.

Sul21 – Há futuro para o WikiLeaks?

Daniel Domscheit-Berg Eu não sei. Eu acho que, a partir de uma perspectiva política, a situação do WikiLeaks é bastante difícil. Eles cometeram alguns grandes erros, e agora eles têm vários inimigos muito poderosos. É como um beco sem saída: para onde poderão ir? Julian acabou limitando muito o próprio caminho. Há poucos lugares para os quais ele possa viajar no futuro, ninguém mais quer fazer doações para o projeto, é realmente uma situação problemática. E hoje em dia tudo o que eles querem é arrecadar dinheiro. Muito, muito dinheiro.

Sul21- O dinheiro acabou, de certo modo, arruinando o WikiLeaks?

Daniel Domscheit-Berg Bom, se tornou um projeto voltado a fazer dinheiro. E era justamente disso que eu não gostava (risos). Porque nós estávamos muito felizes nos primeiros dois anos e meio (de WikiLeaks), quando não tínhamos dinheiro algum. Estávamos apenas trabalhando duro no projeto, lutando diariamente com o objetivo de fazer uma coisa boa. E então o dinheiro veio, e tudo se transformou em algo terrível. Em certo sentido, o dinheiro estragou tudo. E é por isso que estamos tentando ser bem cuidadosos quanto ao financiamento do OpenLeaks. No momento, estou botando muito do meu próprio dinheiro no OpenLeaks, da minha renda com o livro e algumas outras coisas. Outras pessoas (ligadas ao OpenLeaks) trabalham em empregos de meio período, de modo que possam se alimentar e pagar o aluguel, e contribuem conosco no restante do tempo. Claro que em determinado momento, em uma próxima fase, vamos precisar de financiamento. Mas nós não queremos jamais ter mais dinheiro do que o necessário. Simplesmente porque não adianta nada ter 1 milhão de euros em um banco e não poder fazer uso desse dinheiro. Qual é a vantagem disso, o que isso traz para o projeto, além de ganância? Tentamos ser bastante realistas, queremos planejar quanto dinheiro precisamos e então buscar alternativas para levantar esse dinheiro. E estaremos felizes, faremos uso do dinheiro que arrecadamos e só a partir daí vamos pensar no próximo passo.

Sul21 – Você acabou de falar dos inimigos poderosos que o WikiLeaks atraiu. Mas algo assim não pode acontecer também com o OpenLeaks? As ações do grupo certamente vão provocar reações.

Daniel Domscheit-Berg Como não seremos o único inimigo, mas trabalharemos ao lado de várias organizações muito respeitáveis, creio que será muito mais difícil nos atacar. Somos apenas um serviço. Não somos responsáveis por nenhuma publicação. Quem quer que publique uma informação pode ter diferentes tipos de problema, mas não é o nosso caso, somos apenas o provedor do serviço. Estamos tentando construir boas relações com organizações de credibilidade, com uma boa reputação, e esperamos que isso nos proteja. E eu acredito que, de modo geral, não somos ignorantes, sabe? Estamos tentando fazer a coisa do jeito certo. Se as pessoas disserem que estamos fazendo algo errado, certamente vamos conversar a respeito. E eu acho que isso é um sinal positivo, por assim dizer. Quanto mais feedback eu receber, mais provável será que eu me aproxime de uma fórmula que será de fato boa para o que queremos alcançar.

Sul21 – Não é assim no WikiLeaks?

Daniel Domscheit-Berg Julian não ouve ninguém, e também por isso acaba fazendo inimigos. Ele é um pouco como Lênin e os bolcheviques. Ele diz: “todos queremos uma revolução, mas apenas eu sei como a revolução deve ser”. É justamente esse o cerne do problema. Foi isso que eu quis dizer (na palestra) quando afirmei que o futuro não precisa de um guru, de um herói ou qualquer coisa assim. O futuro precisa de muitas pessoas que pensem sobre o que está acontecendo e sobre o que querem fazer a respeito para, a partir daí, encontrar uma concordância em nossos discursos, um ponto comum que nos una. O futuro não será de uma pessoa que dirá “eu conheço a solução, venham todos atrás de mim”, porque as coisas não funcionarão desse jeito.

Sul21 – Recentemente, tivemos uma série de ataques a sites ligados ao governo do Brasil, assumidos por um suposto braço brasileiro do grupo LulzSec. Na semana seguinte a esses ataques, voltou a ser discutido no Congresso brasileiro (por iniciativa do deputado federal Eduardo Azeredo, do PSDB-MG) um projeto de lei que, se aprovado, obrigaria as pessoas a serem identificadas em toda e qualquer coisa que fizessem na internet.

Daniel Domscheit-Berg – Terrível. Isso seria simplesmente terrível.

Sul21 – O que esse exemplo nos mostra? Não é um sinal de que uma ação feita sem reflexão pode servir de pretexto para setores poderosos que querem manter o controle e criar uma ameaça à liberdade na internet ainda maior do que o que estão tentando combater?

"O futuro precisa de muitas pessoas que pensem sobre o que está acontecendo e sobre o que querem fazer a respeito" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Daniel Domscheit-Berg – Com toda a certeza, isso pode ser um grande problema. Partindo da minha perspectiva, acredito que a maioria das pessoas, em especial políticos, não consegue entender esse novo mundo. São pessoas que vieram de um sistema anterior, algo meio “old school”, e que não conseguem entender o que está acontecendo e como as coisas encaminham-se para o futuro. Elas não entendem a tecnologia, elas não conseguem entender a juventude, como a juventude se comunica e quais são seus valores. A responsabilidade de um político é assegurar-se de que a sociedade não seja destruída, garantir que ela continuará coesa e progredindo tanto quanto possível. Acho que muitos políticos estão um pouco assustados, porque eles não conseguem entender esse mundo inteiramente novo e acreditam que ele pode ter um impacto negativo sobre a sociedade. Nesse sentido, tenho até mesmo um pouco de complacência com esses políticos, porque acredito que a maior parte deles está apavorada por não saber o que fazer. E então você vê essas ações (contra a liberdade na internet), porque eles sentem que devem fazer algo e pensam que é melhor fazer alguma coisa, mesmo errada, do que não fazer nada.

Sul21 – E o que você pensa a respeito dessas atitudes restritivas à liberdade na internet?

Daniel Domscheit-Berg – Penso que isso é, antes de tudo, um modo errado de lidar com a questão. A internet, como um todo, é uma ferramenta para o futuro, para uma sociedade global. No momento, não entendemos direito o modo como essa ferramenta será usada no futuro. Na minha visão, se não entendemos algo, é melhor não fazer nada a respeito do que fazer algo errado. Você precisa ser um pouco corajoso, enquanto político, para dizer: “eu não faço ideia, estou perdido, então provavelmente o melhor seja não tomar nenhuma atitude”. O problema é que, se algumas pessoas protestam online, ou tomam atitudes online que podem apavorar esses políticos, eles irão reagir a isso. É uma simples questão de causa e efeito, e é quando você cria esse tipo de consequência negativa. Então tentarão aprovar leis restritivas, e dirão: “estão fazendo algo maligno, precisamos de leis para nos proteger dessas pessoas”.

Sul21 – O que pode ser feito para mudar essa visão? Como mostrar que medidas restritivas não são o melhor caminho?

Daniel Domscheit-Berg – Tem muito a ver com educar as pessoas e fazer a diferenciação. Se você olhar para o LulzSec, o verdadeiro LulzSec, tudo o que eles fizeram, cada ‘hack’ que cometeram foi para o bem. Ao menos, é essa a minha visão. Foram ações positivas porque puseram à mostra as mentiras que estavam acontecendo, ou então reagiram contra injustiças que estavam sendo cometidas. Quando hackearam a Sony, por exemplo, foi porque a Sony criou problemas legais para GeoHot, um hacker responsável pelos sistemas de segurança do Playstation. Quando hackearam uma empresa chamada Infragard, foi porque o governo dos EUA tinha dito: “nós condenamos o ‘cibercrime’ tanto quanto a guerra cibernética, e reagiremos a qualquer ataque cibernético contra os Estados Unidos como se estivéssemos em uma guerra comum”. E, ao mesmo tempo, os EUA tinham ligação com companhias engajadas em guerra cibernética! É uma mentira (dos EUA), uma contradição. Então, LulzSec hackeou a Infragard para mostrar que eles trabalhavam para o governo norte-americano em ações de guerra cibernética e expor a mentira que o governo estava contando. Pela minha perspectiva, uma ação dessas não é criminosa. Eles estão, na verdade, mostrando para as pessoas algo que elas precisam prestar atenção. Você precisa diferenciar uma ação deste tipo de pessoas que apenas querem derrubar um site, rodando um ‘botnet’ ou algo assim. Você precisa olhar para a raiz de uma ação para poder fazer a diferenciação e entender como reagir. Há cerca de uma semana, participei de uma conferência e alguém da plateia queria saber a minha opinião sobre ‘cibercrime’. O que diabos é ‘cibercrime’? Um crime é um crime, você não pode comparar um criminoso de guerra com um traficante de drogas, por exemplo. São coisas diferentes, de modo que você precisa criar diferentes soluções para elas. Da mesma forma, ‘cibercrime’ não é ‘cibercrime’, você tem diferentes crimes para os quais soluções diferentes devem ser concebidas. O governo precisa começar a ouvir as pessoas sobre isso. O futuro é a era dos hackers, dos geeks, dos nerds, seja lá como você queira chamá-los. Temos que sair do ‘underground’ em direção ao ‘establishment’ para que sejamos vistos e ouvidos.


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