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31 de janeiro de 2011
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17:37

Misoginia muito além dos vampiros

Por
Sul 21
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Nikelen WitterEste ano que passou, revisitei com meus alunos de História Contemporânea, o romance Drácula, de Bram Stoker. A escolha da leitura nada teve a ver com a atual moda dos vampiros ou mesmo com um estudo do texto por suas qualidades literárias. O desafio que propus aos meus estudantes foi lê-lo para compreender um pouco da época em que ele foi escrito. Como a lista inicial de sugestões tinha diversos livros, apenas um dentre os 20 alunos escolheu este e tivemos pouco tempo para debatê-lo na aula final.

Entretanto, uma série de acontecimentos contemporâneos tem tornado, aos meus olhos, o romance mais e mais atual. De novo, não falo da moda corrente dos vampiros, falo de toda essa movimentação em torno das mulheres e do feminismo que temos assistido nos últimos meses. Falo também da enorme quantidade de agressões, abusos, assassinatos de mulheres que temos visto na mídia, de forma cotidiana, nos últimos tempos. Alguns testando nossas crenças, outros nossa tolerância e outros ainda o nosso estômago.

O que Drácula, de Bram Stoker, tem a ver com isso? Bem, se você não leu (viu apenas o filme do Coppola, ou nem isso) talvez não saiba que este é um romance profundamente misógino. Talvez, um pouco mais, eu diria, é um romance escrito por um homem apavorado com as modificações que via nas mulheres de seu tempo.

Publicado no apagar das luzes do século XIX (1897), Drácula retrata a presença de um ser fantástico, quase incompreensível, a estimular o comportamento não adequado (ao menos na visão de Stoker) das mulheres. Você pode argumentar que o vampiro é homem. Sim, é claro. E podemos listar vários motivos para isso, tanto nos termos da literatura da época, quanto no das mentalidades de homens como seu autor. Primeiro, apenas um ser masculino seria um inimigo a altura para cavalheiros como os heróis do romance. Segundo, o fato de o inimigo ser “ele” reforça a necessidade de proteção das moças figuradas na história. Há ainda a questão de ele transmitir algo (uma doença) que se propaga pelo sangue. Qualquer analogia com a sífilis que grassava na Europa de fins do XIX – e da qual os homens, aliás, eram o veículo entre as prostitutas e as mulheres “de família” – não é mera coincidência

Em tempo, Stoker tem traços evidentes de misoginia, mas isso não é dirigido a todas as mulheres, mas a um modelo específico de mulher, a “nova mulher”. Esse termo começou a ser usado em fins do século XIX para nomear um grupo diferente que nascia no seio da classe média européia. Elas não eram apenas mulheres educadas e letradas (como outras foram antes delas), eram criaturas com projetos. Já não se contentavam com a possibilidade (recentemente aberta) de escolher um marido. Queriam votar. Queriam trabalhar fora. Queriam voz.

Eric Hobsbawm dedicou um capítulo a elas em seu Era dos Impérios e a imagem símbolo era a de uma mulher de bicicleta. Para nós hoje, isso parece pouco revolucionário, mas pense o que era naquela passagem de século uma jovem sair à rua tendo algo entre as pernas (lembrando que os selins haviam há muito tirado essa “indecência” do montar a cavalo). De fato, a “nova mulher”, embora desconsiderada na maioria das retomadas históricas da Belle Époque, incendiou a época. Fosse de fato, fosse na imaginação de homens que se assustavam com a violência com que estas mulheres – depois de séculos de obediência – podiam querer alguma coisa. O movimento sufragista, em especial na Inglaterra de Stoker, parecia disposto a tudo (interessante coincidência a União Nacional pelo Sufrágio Feminino ter sido fundada também em 1897). As sufragistas foram presas e alimentadas à força durante greves de fome. Outras foram mais longe para chamar atenção para a causa. A jovem Emily Davison se jogou diante do cavalo do rei durante a célebre corrida de Derby, em 1913.

Existem diversos estudos sobre esse assunto, resenhá-los e citar todos os autores seria acadêmico demais. Contudo, é muito interessante o fato de que alguns autores relacionam esse período de efervescência de lutas pela libertação feminina com o progressivo aumento dos ataques e abusos contra mulheres. Em 1888, nove anos antes da publicação de Drácula, na mesma Inglaterra, o ódio as mulheres ganhara sua lenda mais tétrica: Jack, o estripador.

Mas, o que, no romance, é tão misógino e assustado assim? Bem, vejamos. Mina (que só no meio do livro adquire o sobrenome Harker, que a celebrizou) é a grande heroína do romance. Por favor, esqueça o filme. Ela não é apaixonada pelo vampiro. Mas é uma mulher diferente. Mina sabe estenografia, mais que isso, ela é tão competente nesse trabalho quanto um homem. Este é o elogio/reprimenda que o autor lhe dedica. Elogio porque uma mulher não faria bem um trabalho tão técnico. Reprimenda porque: qual mulher, em sã consciência (imagina Stoker), iria querer se assemelhar a um homem? Mina, definitivamente, precisa ser salva. Aliás, a jovem precisa ser salva de si mesma e dessas ideias que podem fazê-la perder-se, podem levá-la a loucura, à devassidão. Depois de seus contatos com o vampiro, a “pobre” geme: impura, perdida.

Em seu socorro, reúne-se o mais impressionante grupo de homens-heróis que o século XIX poderia produzir: um cientista, um advogado, um médico, um aristocrata e um americano (nem me pergunte, responder isso dá outra coluna). Claro, os homens-heróis já amargaram duas derrotas. A morte de Lucy E, outra vez, a morte de Lucy. Por isso, arriscam a vida para resgatar Mina e redimi-la aos olhos do marido, da sociedade e de si mesma.

Cabe, com certeza, algumas palavras sobre essas derrotas que pesam em Van Helsing e seus companheiros. Afinal, a morte de Lucy é a mais sintomática da misoginia reinante no romance. Lucy não é como Mina. É uma aristocrata e não uma jovem de classe média. Não pretende ter uma profissão, nem igualar-se a um homem (também não é a “quase” ninfomaníaca do filme). Mas é uma jovem rica, de costumes frouxos (demasiado frouxos no entender do autor), mesmo de casamento marcado mantém perigosamente junto de si um grupo de admiradores, ex-pretendentes. Isso a torna presa da entidade representada por Drácula. Uma mulher que gosta tanto de ser admirada é, muito provavelmente, uma traidora em semente. Efetivamente, pode-se ver sua morte como uma traição prévia a um marido que ainda não o é.

Após sua primeira morte, Lucy se torna o que de mais apavorante pode se tornar uma mulher. Lucy não é só uma vampira, é uma anti-mãe. Ela vai contra aquela que deve ser a função fundamental de uma mulher e, ao invés de parir bebês, passa a matá-los, a se alimentar deles. Aonde a decadência dos valores morais de uma sociedade nos pode levar, não é mesmo? Para recolocar Lucy em seu devido lugar é preciso uma segunda morte. Esta orquestrada pelos homens-heróis que se reúnem em seu túmulo, onde a jovem foi enterrada, de forma bastante ilustrativa, com seu vestido de noiva nunca usado. Em um episódio da série Grandes Livros, exibida há alguns anos pelo Discovery Channel, fez-se, sobre este episódio, a análise que reproduzo abaixo.

A segunda morte tem o valor de um casamento vitoriano. Lucy tem a boca preenchida com alho – pois a mulher casada não fala a não ser pela boca de seu marido –, tem o coração transpassado por uma estaca – o que é feito pelo noivo aristocrata numa clara violação do corpo e de cada sentimento daquela mulher –, por fim, tem a cabeça decepada – pois a uma mulher casada, nada é mais vedado do que pensar.

De Lucy é tirado tudo o que ela não mais precisará. Sua voz, seus sentimentos, sua independência como pessoa. É a vitória em cima da derrota, orquestrada pelos donos daquela sociedade. Depois, resta salvar Mina. Esta tem sua redenção no fim do livro, quando se diz que “apesar de tudo o que passou”, ela tornou-se uma boa e irrepreensível esposa e mãe.

A atualidade do romance está na semelhança de olhar que ainda podemos perceber no mundo em que vivemos. Infelizmente, apesar de tudo o que mudou nos últimos cem anos, ainda somos obrigados a conviver com uma cultura de abuso das mulheres que parece entranhada. Sinto dizer que, nesse caso, não funciona falar ou pensar: “eu não sou assim”. Ótimo! Você não é. Seus amigos talvez não sejam. Mas vivemos em uma sociedade em que isso existe. Seja em maior ou menor grau. Como podemos estar tão longe de Stoker se há meninos, jovens e velhos que demonstram, sem nenhum pudor, acreditar que as mulheres estão aí para servi-los. Que não estão na mesma categoria dos seres humanos que pensam, sentem, jogam bola ou play station. Um número tristemente grande dos que acham que a força, o abuso, a grosseria são a forma ideal de trato. Meninos, adolescentes e homens que creem piamente que são o sexo forte, ou o único sexo, já que, como alguns enchem a boca para dizer: “mulher não conta”. Já vi isso entre meus alunos, entre os que conseguem chegar ao ensino superior. Vocês também já viram: estupros, trotes, rodeios de gordas. Não preciso citar mais.

Para muito além dos vampiros, Drácula é um bom romance. É bem escrito e é gostoso de ler em sua fórmula epistolar, em certos momentos, chega a provocar, como bom clássico gótico, arrepios na espinha. Olhá-lo com olhos de historiadora, para mim, só o deixa mais rico, mais interessante. Sem falar nas inúmeras chaves interpretativas que ele fornece para entender o século que estudo. Porém, eu preferia que sua atualidade se restringisse a atual (e já uma pouco excessiva) moda dos vampiros.

* Professora e historiadora


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