No coração de área mais cobiçada da cidade, Quilombo Lemos luta pela permanência
24 de julho de 2021
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09:14

No coração de área mais cobiçada da cidade, Quilombo Lemos luta pela permanência

Orla do Guaíba é uma das regiões de maior interesse do mercado imobiliário, apesar de restrições para construções
Por
Andressa Marques
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As cidades são feitas de conflitos. Como já não há praticamente terrenos desocupados em áreas de interesse imobiliário, para uma construção ser erguida do chão, é necessário remover o que estava lá anteriormente. Em muitos dos casos, lá estavam famílias.

Há anos, o Asilo Padre Cacique move uma ação judicial para tentar garantir a reintegração de posse do terreno localizado nos fundos da instituição, que é ocupado pelo Quilombo Lemos e seus cerca de 30 moradores.

Em novembro passado, a desembargadora Vânia Hack de Almeida, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), concedeu liminar favorável à mantenedora do Asilo, dando 45 dias para que as famílias desocupassem a área do Quilombo voluntariamente. Contudo, a mesma magistrada reverteu a decisão em dezembro, acatando a posição do Ministério Público Federal (MPF) que pediu reconsideração em razão da pandemia de covid-19.

A origem do Quilombo Lemos está no casal Délzia Gonçalves de Lemos e Jorge Alberto Rocha de Lemos, que foram funcionários do asilo e se mudaram para o terreno nos anos 1960. Quando Jorge faleceu, em 2008, a instituição ajuizou a ação de reintegração de posse da área, que hoje é habitada por filhos e netos do casal.

O Quilombo Lemos foi reconhecido como tal em 2018, pela Fundação Cultural Palmares, responsável pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro geral. Para ter a terra demarcada oficialmente como Quilombo, precisa de aprovação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que ainda não ocorreu.

Em resposta encaminhada à reportagem, Edson Brozoza, advogado e presidente do Asilo Padre Cacique, informou que a instituição não irá se manifestar até que a ação judicial seja julgada em definitivo. “O processo encontra-se suspenso atendendo a uma determinação do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu a parada de tramitação em qualquer ação que envolva reintegração de posse, em virtude da pandemia do coronavírus”, disse em nota.

“Eles planejam de acordo com com o que eles querem e não levam em conta o que tem dentro do perímetro que eles querem utilizar”
Até o momento, contudo, a posição oficial do Asilo é de que a reintegração de posse é necessária para a construção de um centro de convivência e uma “creche” de idosos no local. Os recursos para a obra, que contemplariam 150 idosos, já estariam garantidos pelo Fundo Municipal do Idoso e há planos de também buscar verbas pela Lei Rouanet.

A remoção de famílias negras de locais de interesse do mercado imobiliário, de certa forma, confunde-se com a história da urbanização de Porto Alegre. No final da década de 1960, grande parte dos antigos moradores da Ilhota, que ficava próxima a onde hoje existe a Praça Garibaldi, foram removidos para a Restinga, a cerca de 26 km do centro de Porto Alegre.

A canalização do Arroio Dilúvio foi o ponto central para que a Ilhota deixasse de existir, uma vez que as obras levaram à valorização econômica dos terrenos, como explica a pesquisadora e professora de Geografia Daniele Vieira em “Territórios negros em Porto Alegre (1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano”, uma cartografia dos locais ocupados pela população negra em Porto Alegre.

Como nos casos desses territórios reunidos por Daniele, o Quilombo Lemos sofre o risco de estar no meio de uma área central com vários interesses. “Eles planejam de acordo com com o que eles querem e não levam em conta o que tem dentro do perímetro que eles querem utilizar”, diz Sandro Lemos, filho dos fundadores do Quilombo e atual liderança da comunidade.

Quilombo Lemos ocupa área aos fundos do Asilo Padre Cacique | Foto: Luiza Castro/Sul21

A região da Orla do Guaíba é hoje a “menina dos olhos” do mercado imobiliário. A poucos quilômetros do Asilo Padre Cacique estão os trechos já revitalizados ou em obras, além de futuras construções, como o “bairro planejado” que terá 19 torres residenciais ao lado do Barra Shopping Sul e o Pontal, empreendimento que reúne um shopping center, um centro de eventos, uma torre comercial e um hotel de luxo, além de um parque nas proximidades do Guaíba.

Além disso, diante do Asilo está o estacionamento do estádio Beira-Rio, onde o Internacional pretende construir duas torres, uma delas de 130 metros e outra de 81 metros de altura.

O óbice para a construção das torres é que, pelo Plano Diretor de Porto Alegre, não é possível desenvolver atividades residenciais e comerciais na área, o que está previsto no projeto do Internacional, devido à Lei nº 6.150, de julho de 1988, que destina a área ao lado do Beira-Rio, doada ao clube em 1956 pela Lei nº 1.651, para a construção de um parque esportivo, que não poderá ser utilizado para outro fim, exceto para a implantação de equipamentos e comércio de apoio ao fortalecimento da área. O projeto do clube prevê que a área ainda contará com lojas e restaurantes.

Projeto apresentado para a construção das torres ao lado do estádio Beira-Rio | Foto: Reprodução

O projeto teve parecer favorável da Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento (CAUGE), mas teve o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) rejeitado pelo descumprimento da legislação de doação.

Sandro Lemos avalia que, por ser uma região central de Porto Alegre e hoje com a reurbanização da Orla do Guaíba, o valor de mercado da área cresce cada vez mais.

“Se for olhar no mapa de Porto Alegre, se consegue perceber que todos os quilombos estão em pontos da cidade que são bem localizados, e não é diferente aqui com o Lemos”, diz. “Há 60 anos atrás, quando meu pai chegou, não tinha nem o Beira-Rio. Então, aos olhos dos empreendedores, a cidade precisa crescer, mas ela cresce de uma maneira que não coloca os territórios negros na narrativa de Porto Alegre do Plano Diretor. A perspectiva é negativa, assim como ocorreu com a Ilhota, que retirou muitas famílias. E aí, para onde é que vão nos mandar?”, questiona.

Sandro Lemos, liderança quilombola no Quilombo Lemos | Foto: Luiza Castro/Sul21

Felisberto Sebra, conselheiro titular da Região Geral de Planejamento 1, é o relator da análise do processo das torres do Beira-Rio no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), órgão que tem a prerrogativa de analisar o licenciamento dos empreendimentos que descumprem alguma regra estabelecida no Plano Diretor e, portanto, precisam de aprovação especial. Em seu parecer, ele sugeriu a desaprovação das construções por considerar que o regramento urbanístico da área seria alterado para além das características da região.

Porém, tramita na Câmara de Vereadores uma lei específica com mudanças no Plano Diretor para permitir a construção das torres no local. “As torres serão construídas desde que haja a lei que permita”, diz Felisberto.

Em dezembro passado, o projeto recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, o que autorizava o projeto a ir para votação em plenário. Anteriormente, já havia também sido debatido em audiência pública virtual, uma das etapas necessárias para a tramitação na Casa.

Contudo, com o fim da legislatura, a proposta acabou arquivada e agora depende de negociação entre o Internacional e a Prefeitura para ser desarquivada. Atualmente, a discussão entre as partes versa sobre as contrapartidas de mitigação de impacto que o clube deverá dar à cidade para ter a construção autorizada.

No projeto do Inter, a previsão é o clube arcar com o alargamento da Av. José de Alencar, a construção de um píer na área do Parque Gigante — localizada junto à Orla do Guaíba — e promover reformas no Asilo Padre Cacique e em uma unidade de saúde. O prefeito ainda defende que as contrapartidas sejam ampliadas.

Procurado, o Internacional respondeu, por meio de sua assessoria, que o tema ainda está em discussão junto à Prefeitura, tendo sido criados dois grupos de trabalho para a analisá-lo, um do clube e outro do Executivo municipal. O Inter considera que o projeto ainda está em fase “embrionária” para ser discutido de forma concreta.

No entanto, quem olhar o histórico recente da Câmara de Vereadores irá perceber que ela vem seguindo a lógica de favorecer a exploração comercial da Orla.

“Para o mapa de Porto Alegre, ter um Quilombo enraizado no meio, mancha um pouco o layout que eles querem da cidade”
Em maio passado, foram aprovados dois projetos de lei de autoria do vereador Moisés Barbosa (PSDB) que versam sobre o transporte hidroviário nas águas do Guaíba: o Projeto de Lei do Legislativo (PLL) n° 116/18, que institui a Política Municipal de Sustentabilidade Hidroviária e de Estruturas Náuticas de Porto Alegre, e o Projeto de Lei Complementar (PLCL) 024/2018, que propõe a inclusão de medidas para o aproveitamento do potencial hidroviário no Plano Diretor. A primeira legislação inclui uma emenda que prevê um “ambiente jurídico favorável” a investimentos privados em serviços e infraestrutura de transporte hidroviário de cargas e passageiros.

Na ocasião, Barboza afirmou que a intenção dos projetos era estabelecer diretrizes para a instalação e o gerenciamento das atividades “socioambientais, financeiras e culturais hidroviárias da Orla do Lago Guaíba”, visando promover o aproveitamento hidroviário para turismo e lazer. “O Lago Guaíba está chamando a população para usufruí-lo, cuidá-lo. Dessa forma, urge a estimulação e a utilização de embarcações como alternativa de transporte”, disse.

Já o vereador Matheus Gomes (PSOL) destacou que os projetos transferiam o protagonismo da exploração da Orla para um setor empresarial interessado no transporte hidroviário e em outras atividades náuticas, como a construção de trapiches e marinas. O problema, para o vereador, é que a nova política hidroviária da Capital teria sido constituída sem que houvesse discussão sobre a proteção ambiental da Orla. “Fomos acusados de sermos ‘ecochatos’ por dizer o óbvio, ou seja, que o Guaíba é essencial na garantia da vida na cidade de Porto Alegre. A maior parte da água que a gente consome vem do Guaíba”, disse.

Tradicionais instituições do Carnaval porto-alegrense estão localizadas ao lado do Beira-Rio  | Foto: Luiza Castro/Sul21

Além do Internacional e do Asilo, a Av. Padre Cacique também é conhecida historicamente por sediar algumas das principais instituições carnavalescas da Capital, como a Imperadores do Samba, a Banda da Saldanha e a Academia de Samba Praiana, que já foram afetadas pelas obras da Copa (a Praiana acabou se mudando para o Partenon) e que agora podem perder ainda mais espaço com a construção das torres.

Em participação em live promovida pela vereadora Karen Santos (PSOL) para debater a região e o empreendimento no Beira-Rio no dia 10 de julho, o produtor cultural e secretário da Banda da Saldanha, Luís Augusto Lacerda, destacou o impacto que as transformações na Orla do Guaíba vêm promovendo nas entidades carnavalescas sem que haja contrapartidas de valorização deste segmento cultural da cidade, também profundamente abalado pela pandemia de covid-19.

“Nós temos, por exemplo, a quadra da Imperadores do Samba que, por causa da Copa, perdeu mais de 50% de sua capacidade. Nós temos a Academia de Samba Praiana que, durante muito tempo, ocupava um espaço que agora é nulo, porque a sociedade foi tirada dali para virar um estacionamento e nada de proveitoso acontece nesse espaço. A Praiana está num espaço saqueado, desrespeitado e é muito difícil realizar qualquer tipo de evento ali. A Saldanha também vem sofrendo muito, com roubo da sua fiação, já levaram todos os instrumentos musicais da banda, já levaram todas as cadeiras. Esses dias um carro bateu e derrubou uma das paredes da sociedade”, diz.

Para o carnavalesco, a região poderia sediar um complexo cultural que valorizasse a história do samba na Capital e também poderia se transformar em atração turística. “Quando chegam a Porto Alegre, as pessoas pensam apenas em churrasco, Beira-Rio e Arena. Nós temos muito mais a oferecer. Temos cultura plural para oferecer e nessa cultura plural existe, sim, o Carnaval”, afirma. “Qual é a benfeitoria que essas torres vão trazer para a sociedade, para esse espaço? Esse espaço deveria ser encarado como um complexo cultural e, na verdade, é totalmente desrespeitado. O poder público não nos dá nenhum suporte.”

Para empreendimento sair do papel, Câmara precisa aprovar projeto mudando o regramento urbanístico da área | Foto: Luiza Castro/Sul21

Remetendo também à história de remoções na cidade, Lacerda lembrou que, no passado, tradicionais sociedades carnavalescas como Floresta Aurora e Satélite de Prontidão deixaram o Centro e foram “jogadas” para a periferia junto com a remoção das famílias. “Hoje, essas sociedades têm dificuldades de se manter, a ponto de fazerem campanha para não perder as suas sedes, porque as pessoas não querem mais se associar a partir do momento em que elas estão em difícil acesso”, diz.

Felisberto pondera que, se autorizada a construção, os moradores do entorno da área também serão prejudicados porque as torres não permitirão a passagem do sol nas residências. Já com relação ao Quilombo Lemos, ele avalia que a construção das torres dará força para o asilo Padre Cacique reivindicar a posse de onde está localizado o Quilombo. “A luta é árdua, é importante a mobilização e fundamentalmente a participação da sociedade”, destaca.

Ele diz que, atualmente, a composição do CMDUA é amplamente favorável ao mercado imobiliário. “Eles têm uma visão de que os grandes empreendimentos beneficiam a cidade, que isso faz a cidade se tornar moderna, tem a alegação de que isso vai gerar IPTU, mas o gasto com mobilidade, com uma série de fatores que o grande empreendimento traz não compensam muitas vezes. Mas o estrago está feito. E aí reclamam que tem engarrafamento.”

Contudo, quando o projeto propõe a descaracterização do regramento de tal forma que poderia vir a ser rejeitado no CMDUA, as últimas gestões na Prefeitura ou na Câmara têm apresentado leis para regularizá-los. “Passa tudo. E, quando não passa, vai para a Câmara de Vereadores para alterar e facilitar a passagem. Porque, às vezes, mesmo com toda a boa vontade dos técnicos da Prefeitura, não tem porquê, tem a responsabilidade de assinar e, às vezes, a gente pode judicializar a aprovação do projeto. Então, eles procuram viabilizar através de uma lei na Câmara. É o caso das torres do Internacional, que vão incluir a questão habitacional”, diz o conselheiro.

Sandro Lemos avalia que as discussões políticas sobre a área ignoram a existência das famílias nas proximidades. “O Quilombo Lemos está no meio do fogo cruzado de vários interesses. As torres do Beira-Rio, a meu ver, vão impactar o Quilombo, porque ele fica bem em frente ao que serão os prédios mais altos do Rio Grande do Sul. Para o mapa de Porto Alegre, ter um Quilombo enraizado no meio, mancha um pouco o layout que eles querem da cidade.”

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