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4 de agosto de 2018
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15:44

‘Amada Massa’: Clube de assinatura de pães ajuda a garantir renda e autonomia a pessoas em situação de rua

Por
Sul 21
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Alessandra é uma das mulheres que participam do projeto. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck

Maria Madalena da Silva, a Madá, como toda boa padeira, acorda de manhã cedo. A cozinha de sua casa foi transformada nos últimos anos: abriu-se espaço para um forno industrial e outros utensílios profissionais. Ali, são assados 250 pães cuja massa não leva qualquer insumo de origem animal. A receita de família foi adaptada para se tornar vegana. “As pessoas acham que não vai sair uma massa boa se não levar ovos ou leite”, brinca Madá, que se sente segura ao falar dos atributos de sua produção: natural, saudável, sem agrotóxicos e feito com carinho.

Com miolo macio e casquinha crocante, os pães são embalados ainda quentes em sacos de papel. Todas as quintas-feiras, o cheiro de pão fresquinho se espalha pela garagem da Comuna do Arvoredo. O espaço é cedido para o projeto Amada Massa – uma homenagem à panificação de Madá. Ali, a produção é distribuída para 12 pessoas em situação de rua que realizam a venda por Porto Alegre.

Quem coordena o Amada Massa é Daniel Silva, filho de Madá. Arquivista por formação, Daniel escolheu se dedicar a unir a paixão da mãe a um projeto social.  O Amada Massa teve início quando Daniel e um amigo, Carlos Eduardo de Carvalho, passaram a participar do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). “Começamos a pensar em projetos que gerassem renda e autonomia. Entendemos que isso é importante para as pessoas em situação de rua, inclusive por ser algo que colabora para a redução de danos”, explica.

As reuniões ocorrem todas as quintas-feiras, com espaço de livre manifestação para os participantes. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Junto com essa ideia, veio um período de experiência com projetos de comunicação não-violenta. Assim, passaram a entender como poderiam implementar conceitos de justiça restaurativa e círculos de restauração de vínculos e cooperação. A prática tem sido testada no Tribunal de Justiça de Rio Grande do Sul (TJ-RS). A partir dela, as partes de um processo tentam resolver seus problemas sem a dualidade de defesa e acusação. Além da geração de renda, os envolvidos com o projeto têm um espaço seguro para a livre comunicação.

“Tentamos fazer com que eles se sintam acolhidos e introduzir os aspectos da justiça restaurativa e de maneiras menos violentas de se comunicar e viver”, conta Daniel, que aponta para a necessidade de projetos assim, dada a ausência de políticas públicas voltadas para a população em situação de rua. “Quando existe, é baseado no assistencialismo – que é importante, mas trata de questões pontuais. Queremos tentar criar um canal de reparação social, onde cada um possa se organizar e ter uma nova perspectiva através deles mesmos.”

Como funciona?

A base do Amada Massa está em um clube de pães. Pelo site do projeto, os interessados podem fazer a assinatura e receber um ou dois pães por semana, escolhendo onde querem retirá-los em sete pontos de coleta. Por enquanto, há opções em alguns bairros de Porto Alegre: Rio Branco, Bom Fim, Menino Deus, Centro Histórico e Farroupilha – com perspectiva de expansão. Fora o pão tradicional, com farinha de trigo orgânica, água e sal marinho, também podem ser comprados os pães com sabores que variam toda a semana, como batata doce, couve e abóbora.

Cada pão é vendido por cerca de R$ 10 a R$ 15, o que pode gerar renda diária de até R$ 60 para os vendedores. “Estamos tentando dividir as prioridades através de algo que a maioria de nós faz que é comprar pão. Se o pão for comprado deles, o teu dinheiro vai diretamente para uma causa, ao invés de ir para uma empresa. É abrir mão de um pouquinho de privilégio para tentar gerar um equilíbrio mínimo”, afirma Daniel.

A segunda fase do projeto será levar os participantes para a cozinha. Madá conta que, na próxima semana, deverá receber ajuda do seu primeiro auxiliar. “Eu quero poder passar meus conhecimentos. Além disso, a ideia é que possamos diversificar as massas. Bolos, pizzas, pasteis… Mas o principal é que não fique centralizado só em mim.”

Desde que o Amada Massa começou, há cinco meses, Leandro não falta uma reunião do grupo. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Autonomia

Leandro Corrêa ficou órfão quando era criança. Ele conta não ter tido muitas alternativas na época. Mas a melhor, entre abrigos e casas de parentes, era a rua. Durante 22 anos, Leandro esteve em situação de rua. Até o início deste ano, ele morava próximo do Ginásio Municipal Tesourinha. A convite de um amigo, passou a integrar a Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, estabelecida em terreno da Prefeitura ocioso há mais de 10 anos. “Estamos evoluindo juntos. Somos um movimento, mas também somos família”.

O Amada Massa surgiu praticamente junto com a Ocupação. Por intermédio do MNPR, ofereceu mais uma fonte de renda para as pessoas que já participavam de atividades como o jornal Boca de Rua e as oficinas de fotografia e botons da Escola Porto Alegre (EPA). “É um tempo em que o cara não está com a cabeça parada. Estamos discutindo sobre nós mesmos”, resume Leandro. “Eu sou péssimo na cozinha, mas vou aprender agora.”

“Estou me organizando para ter eles [seus filhos] de novo comigo. Quero estudar, estou indo bem”, diz Alessandra. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Alessandra Luz da Silva também faz parte do que restou da Aldeia. Ela passou os últimos oito anos na rua, até ser acolhida pela comunidade. Alessandra é mãe de duas crianças, que estão morando com outros membros de sua família. Para ela, o Amada Massa virou uma das alternativas para que os filhos possam voltar a viver com ela. “Estou me organizando para ter eles de novo comigo. Quero estudar, estou indo bem. Há muito tempo quero isso, mas não conseguia me organizar, não só financeiramente, mas em tudo.”

No entanto, a Aldeia, como ficou conhecida, não existe mais. No dia 24 de julho, uma ação de reintegração de posse foi efetivada, deixando mais de 30 pessoas, novamente, sem casa. “Não nos ofereceram nada. De que adianta nos tirar de um lugar bom e nos colocar de volta na rua? Pra deixar o terreno vazio?”, questiona Leandro.

Tentando não perder a unidade que construíram, 17 pessoas permaneceram juntas, morando na sede do MNPR. “Está apertado. Mas, foi o que tivemos que fazer para não nos dispersarmos. Imagina como seria remontar o coletivo depois disso? Somos uma família, um cuida do outro.”

Nos cinco meses que participa do projeto, Leandro diz não ter perdido uma reunião. “São atividades que ocupam a mente. É disso que a gente precisa.”

 


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