Opinião
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16 de maio de 2023
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13:11

A última lição (por Jorge Barcellos)

Visita orientada do Colégio Rio Grande do Sul à Câmara Municipal de Porto Alegre. (Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA)
Visita orientada do Colégio Rio Grande do Sul à Câmara Municipal de Porto Alegre. (Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA)

Jorge Barcellos (*)

Foram 37 anos, 3 meses e 25 dias, ou  13.620 dias ou ainda 108.960 horas. No último dia 15, iniciei minha LAA, licença aguardando aposentadoria.  Minha experiência é de servidor público no campo da educação extra-escolar. Trabalhei durante este tempo no Memorial e na Escola da Câmara Municipal de Porto Alegre atendendo a rede de ensino. Dei aulas para milhares de alunos, criei projetos, fui premiado. Vivi o bom trabalho.

Qual a lição de minha experiência de educação extra-escolar de jovens? Eles também estão na Terra Arrasada de que fala Jonathan Crary. O mundo marcado pela desestabilização do trabalho, intensificação da desigualdade, desmantelamento do serviço público e endividamento da população também atinge a juventude. O sufocamento da esperança da era digital os atinge e impede o nascimento movimentos antissistema juvenis. Acompanhei o nascimento da primeira geração de jovens sob influência digital, vi o apagamento da linguagem de classe ou sua defesa feita por uma geração anterior ser substituída pela vida na internet como nova esfera pública: são jovens que consideram as redes sociais a forma mais igualitária de comunicação quando ela não é. Ao contrário de mim que viveu a era A.I (antes da Internet), eles são D.I. (depois da internet), vivenciaram um mundo mágico sem nenhuma referência de sua ausência, não vêem sua inserção no complexo internético como parte integrante do galopante processo de globalização nos anos 90. Eu vi nascer, em minhas dezenas de visitas as escolas para palestras e ações educativas, a informatização do ambiente escolar e com a ela a colonização desta instituição como lugar de consumo e trabalho educativo digital. Esse processo também atingiu as instituições de educação extra-escolar: no meu trabalho em um memorial, na criação de projetos educativos, vi atores que trabalham com educação nas instituições públicas e oferecem seus serviços às escolas que tiveram de se modificar. Para Crary, tudo não passa de mais uma forma de captura da agência humana pelo capital, cedemos as artimanhas do capitalismo no âmbIto do neoliberalismo contemporâneo. Cedemos de nossa subjetividade. 

Isso é um problema para os partidos de esquerda hoje, que tentam engajar os jovens on-line. Políticos de esquerda que usam somente redes sociais para agregar os jovens produzem sem querer a despolitização disfarçada de engajamento. Como faremos uma política revolucionária se usamos os mesmos instrumentos que integram os jovens ao consumismo e autogerenciamento? Como faremos lutas antissistema se apoiamos a fetichização da tecnologia que está na base de nossa exploração? Nasci nos anos 60 quando se buscavam novos modos de vida, onde as ruas eram o lugar da lutas. Aquela geração jamais utilizaria os aparatos que serviam para a submissão e para os poderosos. Hoje isto está fora de questão.  Existe uma razão para instituições públicas desenvolverem projetos educativos: a conscientização da importância de sua função para a sociedade. Quando iniciei, nos anos 90, o projeto Educação para Cidadania no Memorial da Câmara Municipal, oferecendo serviços como Visitas-Orientadas, Aula na Câmara, Câmara vai à Escola, Plenária do Estudante, Grêmio na Escola e Exposições Itinerantes, eu tinha esperança não apenas que servissem para valorizar a política e o nascimento de vocações políticas. Depois, já na Escola do Legislativo Julieta Battistioli, criei os projetos Rota Política, Universidade Aberta e Olimpíada de Ciência Política formando um repertório da ação educativa para parlamentos no campo extra-escolar sem similar no país. Com minha saída, o “professor” da Câmara, como eu era conhecido, precisará de substituto. Ninguém é insubstituível, há servidores de alta qualificação para isso, mas é preciso uma fé na ação educativa do parlamento que precisa ser cultivada dia a pós dia. Ela tem o nome de esperança.

A esperança de fazer uma educação extra-escolar de qualidade nos movia. É preciso fé de que pela política podemos mudar o mundo. A ideia é que a sala de aula não é o limite para o engajamento na luta social: o limite da educação estava fora dela, nas visitas organizadas por professores dedicados a onde houvesse educação de qualidade, a museus de história, museus de arte, memoriais, etc em projetos que propiciassem a vivência da política em seu lugar de nascimento. Nós, agentes de educação extra-escolar, mas também os professores, estávamos embalados por um movimento anticapitalista, ou ao menos, contra os males do capitalismo, e não imaginávamos que a juventude seria objeto de captura e desapoderamento tão grande. Ainda que eu tenha sido reconhecido e premiado por tais projetos, como a conquista do Prêmio Divulgação Científica do CNPq, o que vi nesses anos foi um verdadeiro assédio à juventude pelo capital que já começava na infância contra o qual eu não tinha força alguma.  Diz Crary “desde meados da década de 1990, o complexo internético tem-se mostrado um meio de longo alcance não apenas para neutralizar as energias insurgentes da juventude, mas também para impedir que os jovens vivenciem e conheçam a si mesmos, foi essencial [para  o capital] negar a juventude espaços e tempos de autonomia e de autoconsciência coletiva”.

Esse modelo foi implacável com os jovens que vi. A geração que, nos inícios dos anos 90 era solidária e consciente da desigualdade social foi substituída por uma que denuncia professores por suposta luta social. Uma apropriação da juventude critica se fez com termos como millennial, geração Z, etc., fruto de uma pseudosociologia que nomeia uma geração como novos consumidores. Ao longo de minha trajetória fui a escolas e o que vi? Uma aceleração da entrada do universo escolar no complexo internético, a luta das escolas por seus laboratórios, mas também das crianças por seus celulares, a entrada dos videogames e outros gadgets na vida escolar.  Se há debates sobre tecnologias e seus efeitos “o que se ressalta é que essas pessoas estão tendo suas juventudes roubadas”, diz Crary. Não é isso quando vemos o desinteresse por grêmios estudantis que buscamos incentivar, nas visitas ao parlamento que foram minguando? Museus, mas também exposições e projetos educativos voltados para a política parecem não ter mais sentido. Por quê?  

Sem experiências de socialização política, sem o conhecimento de instituições, sem o contato com o mundo real, estes jovens perdem a construção de sua cidadania.  Vi os esforços de professores buscando acompanhar o universo digital, com aulas on-line preparadas “na garra” para atender uma geração imersa em seus smartphones. Nesse mundo, o quadro negro sempre perde para a tela eletroluminescente. Nesse mundo onde o selfie substitui o eu não há mais trocas ou experiências profundas, apenas superficialidades. Às vésperas de minha aposentadoria, vejo as últimas escolas que visitam a Câmara: os espaços que deveriam promover a discussão sobre cidadania são lugar de produção de mais imagerie, mais fotos para as redes sociais. Essa transformação do mundo em mercadoria tira dos espaços extra-escolares tudo o que eles tinham para oferecer: uma experiência existencial autêntica, produção de uma memória. Tudo é visto muito rápido, espaços que deviam ser para “estar com o outro”, ser nosso ritual de exigência do bem comum como modo de vida contra o capital perdem a oportunidade de reflexão. Será que a juventude que invade escolas e mata, que pratica a violência, não é produto também dessa ansiedade e medo que não desaparecem com o advento do virtual? Pois esses são jovens sem compaixão, produtos de um mundo onde eles estão imersos em buscas egoístas e privatizadas na internet, e portanto, num lugar em que perdem o arcabouço moral da vida diária. São jovens incapazes de reconhecer o humano ao seu redor.   

É assim que perde-se o deslumbramento com a política, com o fim da conscientização e da  empatia com o Outro. O que é incrível é a nova marca de celular no mercado, não a possibilidade de lutar pelos direitos. Mas esses alunos só vivem on-line porque, no campo social, estão off-line. Faltam-lhe os dilemas do mundo social, mais físico do que digital. Essa cultura não é só incompatível com a democracia, é incompatível com as normas do bem viver em comum.  Eu acredito que a educação escolar, como a extra-escolar, padecem dessa recusa dos jovens de amadurecer enfrentando a realidade, eles não se sentem valorizados por isso. Nossos jovens só se sentem valorizados quando fazem uso criativo de plataformas digitais “a prioridade é sabotar a possibilidade de uma juventude potencialmente rebelde, a fim de ocultar um futuro sem empregos e sem planeta, aposta-se na ficção tétrica de uma geração que aspira a virar “influencer”, “fundadora de startups”, ou que, de algum modo, se alinham com os valores embotados do empreendedorismo”. Clary acerta na mosca. 

Lutei na minha vida funcional pela conscientização dos jovens. Tive colegas de trabalho que partilharam comigo essa caminhada, com seus sucessos e fracassos. Minha ação educativa sempre foi contra o empobrecimento e a corrosão dos valores promovida pelo capitalismo, promovendo experiências educativas que a juventude tinha o direito de ter. Eu saio mas resistentes servidores mantém o serviço certos da convicção de que podem ajudar a construir uma juventude crítica e solidária. Os jovens são pós-modernos, eu sou moderno: recusei a internet como ferramenta, fiz da palavra, da defesa de valores, da defesa do bem comum, minha estratégia de luta. Minha função de professor de espaços não escolares tornava possível a abertura para modos singulares de vida, o que vai contra a docilidade produzida pelo neoliberalismo. Tinha de ser assim. Aos professores que tem a missão de enfrentar uma juventude aprisionada em seu universo on-line, fica a ideia de que é exatamente isso que nós, educadores, temos de mudar. Aos meus colegas, fica o agradecimento pela cumplicidade de um ideal. Como propõe Badiou, a tarefa dos educadores em qualquer lugar é sempre a luta pela emancipação, fazer parecer possível o que é declarado como impossível. Ou a política serve para redescobrirmos nossas necessidades coletivas e lutar contra o barbarismo, ou ela só serve para reforçar o status quo. Se eu tive um lado, ele foi anticapitalista, antissistema. Se cedermos na educação ao apelo digital, nunca faremos uma revolução na vida real. Saudades da Barsa.  

(*) Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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