Opinião
|
30 de abril de 2023
|
08:02

Direito e literatura na morfina de Bolsonaro (por Tarso Genro)

Jair Bolsonaro (Imagem: Reprodução/Instagram)
Jair Bolsonaro (Imagem: Reprodução/Instagram)

Tarso Genro (*)

O ex-Presidente Jair Bolsonaro alegou no seu depoimento à Polícia Federal que estava sob os efeitos da morfina quando fez o compartilhamento de um vídeo nitidamente golpista, promovido num momento de grande tensão política no país, gerado pela escalada de um golpe que ele conduzia. Se verdadeiro, o uso deste argumento, ele apenas agrava a sua situação como futuro réu, porque é sabido que o compartilhamento não foi uma ação isolada, mas parte de um crime continuado, cometido em circunstâncias especiais de saúde mental e em momentos de plena lucidez, nos dois últimos anos do seu alucinado mandato.

Mas há uma segunda e uma terceira hipótese. Se a sua  resposta – segunda hipótese – foi só uma orientação da sua defesa, para  atenuar a sua responsabilidade penal, o argumento pode ser  tomado como um apelo para a redução de uma futura pena, a ser cumprida em  estabelecimentos de recuperação de pessoas afetadas por psicoses graves, que passam  a ser serial-killers da política democrática, quando são capazes de planejar as suas ações.

Há, todavia, uma terceira hipótese que, para mim, é mais provável: Bolsonaro fez uma ironia e apenas debochou dos poderes de Estado naquele momento, na presença dos Policiais Federais que antes ele buscava cooptar  “pelo alto”, para uma conspiração de natureza golpista e fascista.  Deu, assim,  prosseguimento ao desprezo ao Estado de Direito, que ele odeia por dois motivos fundamentais: primeiro, porque os maníacos depressivos não aceitam ser contrariados; segundo, porque os paranóicos detestam até as formas de tolerância que a democracia devota aos seus carrascos.

Antes de “fechar” a ideia do presente texto, uma base para reflexão: Borges está para a literatura assim como Kelsen está para o Direito, pela adoração ao império das formas que ambos cultivavam, ainda que por condutos e canais diferentes. A subjetividade anárquica do gênio de Borges instaura a falsa “pureza” formal da literatura, cuja arquitetura central – nos seus textos –  esgotava-se nas relações da palavra com a palavra, que saíam do seu estado anímico, vivas apenas nos nexos dados a elas, no texto que ali estava sendo escrito.

Independentemente do significado da sua linguagem corrente, Borges forjava a literatura em “estado puro”, na qual a dialética das formas – como que por encanto – se separava dos movimentos reais da vida e só a palavra aparecia como soberana, para projetar os sentimentos mais recônditos do autor, para os quais a presença da vida real e dos sentimentos dos outros não importava: todos são pequenos demais, menos os ingleses da sua linhagem,  para merecer um outro tipo de encantamento mais generoso.

Qual a analogia de Borges com Kelsen? Ela reside no cerne da Teoria Pura do Direito de Kelsen, antes da grande virada que deu, quando passou a reconhecer que o Estado Nazista não era um Estado de Direito,  cuja eticidade e moralidade estariam, presumidamente, presentes  dentro do seu sistema de normas, só porque este era coerente consigo mesmo. O nazismo seria, assim, para o último Kelsen, um sistema de poder sem direito e sem moral, que escravizava a sociedade pela força bruta, que o direito – ao mesmo tempo que regularizaria – travava e organizava pelo medo.

A subjetividade de Kelsen, antes dessa virada, dava a estabilidade estática e burocrática ao Direito, dizendo que ele é – como forma  orgânica do Estado – a lógica despida da emoção que todos deveriam cultuar a partir da norma fundamental, que tanto pode vir de Deus como da sociedade. As formas de Kelsen revestiam  o direito de uma dignidade presumida pela coerência interna do sistema e as formas de Borges davam beleza a sua literatura, “pura” de qualquer conceito político, pela harmonia que  ligava as palavras dotadas de novos sentidos.

Por este caminho Kelsen formava o conceito do “estatal”, de maneira aparentemente “científica”, onde as relações entre as palavras devem ser  cientificamente resolvidas: elas adquiriam o seu significado como normas (compostas por palavras), não como o discurso da arte em Borges. Em Kelsen as palavras “superiores” dão significado às palavras “inferiores” e é nesta imputação que o direito assume sua neutralidade científica, afora e acima das “ideologias”. As palavras escolhidas pela ciência em Kelsen, já vinham despidas de ideologias classistas ou religiosas e, em Borges, elas se tornavam arte pela sua estética de conteúdos arbitrários.

Vejam como Literatura e Direito podem adquirir universalidade, a partir de episódios particulares que, ao mesmo tempo incorporam momentos mais singulares ou mais universais: um episódio singular é, por exemplo, o momento  que um torturado perece nas mãos do torturador – forma jurídica dos inquéritos medievais na Inquisição –  momento jurídico particular  comum à época, que contado por um romancista de talento pode universalizar a redenção do heroísmo moderno, fazendo a fusão do Direito com a grande literatura humanista do realismo crítico.

Borges conta que, quando Gabriel Rossetti leu “O morro dos ventos uivantes”, escreveu a um amigo: “a ação transcorre no inferno, mas os lugares, não sei porque, têm nomes ingleses.” A sentença sintetiza de maneira fantástica todo o impasse do bolsonarismo, no atual período histórico de resistência ao fascismo, num país de heróis e mártires, como o Brasil, onde a reverência européia à nobreza e às famílias reais se banham em ironia e onde capitães aposentados por problemas mentais, que fariam o horror a Geisel e Castelo Branco, tornam-se líderes de uma parte significativa da nação.

Ao revelar que estava dopado pela morfina, naquele interrogatório policial que deveria ser estudado em profundidade para entendermos o subconsciente e o inconsciente do bolsonarismo e do Brasil, da imprensa, dos poderes e dos partidos, que não ficaram estarrecidos com as declarações do ex-Presidente, Bolsonaro nos alertou. Suas palavras nos apresentaram o Brasil profundo, mais perto do inferno do que dos ingleses – mais perto do caos do que da da idiotia coletiva que nos assolou, que pode restaurar por aqui modelos mais próximos dos campos de concentração do que das metáforas borgianas: mais perto da realidade da morte do que  das palavras encadeadas só como beleza, que ora cortejam a alegria da leitura, ora cortejam o desastre da mortandade coletiva.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora