Opinião
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18 de março de 2023
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08:51

Talvez você (por Ingrid Birnfeld)

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Ingrid Birnfeld (*)

A pandemia acabou com a saúde das mulheres. Mães, trabalhadoras, companheiras, cuidadoras, filhas. As rápidas e inúmeras transformações organizacionais, as dispensas temporárias e o enxugamento de recursos humanos miraram as mulheres, que são 69% das pessoas atingidas por processos de demissão em massa. Demitidas, foram pra casa. Mantidas na empresa, foram pra casa também: tudo vai dar certo e logo você vai se adaptar ao trabalho remoto. E, em casa, estavam os cônjuges, também em home office improvisado, as crianças em teleaula (uma experiência inesquecível), os idosos precisando de apoio e proteção para não morrerem, as louças na pia e as roupas pra lavar chamando a todo momento… trabalhe com um barulho desses! Depois disso tudo, volte, como se nada tivesse acontecido com a profissional que você sempre foi. Seu lugar está garantido.

Muitas não retornaram: a taxa de desocupação das mulheres no mercado de trabalho é a maior dos últimos 30 anos. Mas se você voltou, se o seu lugar estava realmente garantido, o fato é que você não é mais a mesma. 

Talvez você esteja trabalhando irritada, cansada, apática, ansiosa, triste.  Talvez você sinta dores permanentes no corpo e não veja mais sentido em tarefas que antes gostava de executar.  Talvez você seja uma profissional da saúde, tenha trabalhado com o horror da morte sempre por perto e tenha salvado muitas vidas, e mesmo tendo sido muito valente e necessária, hoje tenha dias que se sente vazia, incompetente, sem motivação para prosseguir. É possível que em alguns momentos você até sinta orgulho de se sentir assim: afinal, adoeceu porque trabalhou (e dizem que há algo de nobre nisso). Talvez você se sinta bem e bonita e também se culpe por isso, pois muitas colegas suas perderam pessoas queridas, tiveram seus casamentos arruinados e você não, você continua aí como se nada tivesse ocorrido. 

vivência pessoal de acúmulo de tarefas, de condições de trabalho precárias, de jornadas exaustivas e cumuladas com a vida doméstica, somadas ao medo que a todos assombrou, tornou ainda mais crônica a dura realidade das mulheres: ao invés de frear o crescimento de casos de adoecimento emocional, o fim do isolamento escancarou as raízes de uma cultura que as sobrecarrega física e mentalmente, responsabilizando-as pela administração da casa e da família e exigindo delas sucesso, resiliência e permanente capacidade de se reinventar.    

No Brasil, três em cada dez profissionais sofrem com a síndrome de burnout, que apresenta alguns dos sintomas acima. Pesquisas indicam que cerca de 42% das mulheres podem estar por ela acometidas, sendo que a chance dessa síndrome as afetar é 20% maior do que de acometer os homens, creditando-se essa realidade exatamente à cultura do cuidado, que exige que as mulheres sejam superhumanas, mas pouco as reconhece e as retribui.  

Talvez tanta coisa tenha ocorrido com você. Com sua saúde, com seus familiares e amigos, com a vida que tinha, com aquilo que você achava que era. Como num mergulho em águas revoltas, talvez seja a hora de você se perguntar não tanto sobre a nitidez do que está enxergando ao agora voltar à superfície, mas muito mais sobre a extraordinária força das suas pernas, essa força que não a deixou se afogar e que a impulsionou viva até aqui, o olhar nas bordas do horizonte buscando rumos coletivos de compreensão e reconstrução, todos juntos em busca de um mundo mais justo e mais solidário.

(*) Advogada, bacharel em Filosofia ([email protected]) 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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