Opinião
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16 de janeiro de 2023
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18:06

A arquitetura da felicidade (por Jorge Barcellos)

Detalhe do projeto do 4 D Complex House no bairro Floresta, Porto Alegre (Divulgação)
Detalhe do projeto do 4 D Complex House no bairro Floresta, Porto Alegre (Divulgação)

Jorge Barcellos (*)

A crítica arquitetônica é uma parte da critica em geral, e como a critica literária, implica num julgamento estético e social. Esse julgamento consiste numa avaliação individual da obra arquitetônica, de seu compromisso ético de melhoria da sociedade, aprimoramento do gosto artístico e adequação da obra ao seu entorno. Compreender os sentidos que tomam grandes empreendimentos verticais na cidade, como o exemplo do 4D Complex House, significa explicitar se uma obra aprimora ou piora a cidade que a abriga, se constrói uma funcionalidade distributiva e social ou aprofunda a exclusão, se estabelece uma relação positiva com o contexto urbano, o lugar e o meio ambiente da cidade e, finalmente,  que tipo de signo encarna.

O principal inimigo da crítica arquitetônica é arquitetura do capitalismo tardio que faz com que tudo se torne produto de consumo e que cada novo projeto se apresente como “novidade sem precedentes”. No debate envolvendo verticalização da cidade, o vereador Ramiro Rosário defendo a liberação absoluta das alturas do prédio e o  professor Marcelo Träsel criticou a política de urbanização do Prefeito Sebastião Melo. Agora, em tréplica de Eduardo Fonseca, publicada em DOC ZH (14 e 15/1), temos o exemplo claro de como se expressa a ideologia neoliberal em arquitetura. O 4D Complex House, empreendimento privado teve as alturas liberadas pela Prefeitura no Quarto Distrito, provocou a fúria dos arquitetos e defensores do patrimônio da cidade defensores do bem comum, é o cavalo de tróia de um projeto de exploração econômica que busca o lucro na cidade com base na verticalização absoluta, produto do interesse individual e não da vontade coletiva. Aqui no embate entre interesses públicos e privados, substituiu-os interesses do “cidadão” pelos interesses do “consumidor”.  Josep Montaner em Arquitetura e Critica (Olhares, 2022, p. 24) lembra que Manfredo Tarfuri afirma que “toda obra de arquitetura tem uma missão ideológica”. 

Aqui, o exemplo do 4D Complex House revela a missão ideológica dos novos projetos urbanos, o de ser a faceta arquitetônica de nossa “happycracia”. O modelo ideal de bom cidadão agora estende-se ao bom proprietário de imóveis. O interessante da réplica de Fonseca está não no que ele diz sobre o empreendimento que defende, que é seu legítimo direito, mas no que revela sobre o tipo de promessa que faz ao cidadão, o de oferecer um lugar onde ele possa ser feliz. A felicidade deixa de ser produto  da forma coletiva de luta pela resolução dos problemas urbanos de uma região mas de forma individual, por um investimento que isola o cidadão do conjunto social em um lugar onde os problemas supostamente não existem. Assim, o empreendimento é apresentado como o lugar ideal de morar do bom cidadão, a solução mágica para os problemas urbanos mas sua ideologia oculta o fato de que só pode alcançar nele a felicidade um tipo de pessoa: individualista, otimista e indiferente aos problemas das demais classes sociais. É, portanto, um lugar sem solidariedade. E que, é claro daqueles que tenham dinheiro. 

Isso ocorre porque a arquitetura descobriu que a busca da felicidade está no topo também das prioridades urbanísticas, nada mais do que a velha psicologia positiva aplicada à venda de imóveis. O problema é que a felicidade prometida pelo empreendimento é limitada pelos atributos definidos pelo próprio empreendimento, sempre individuais e nunca coletivos. É sua forma de promover a si mesmo pela simples adoção de um ponto de vista positivo sobre seu projeto arquitetônico que é ideológica: o que suas promessas ocultam são os seus efeitos estéticos e sociais no entorno. A sua promessa de recuperação patrimonialista do entorno possui sempre uma condição: de que tais lugares sejam espaços de consumo. A própria felicidade que propõe de morar está cheia de falhas:   quem pode ser feliz num apartamento de dimensões diminutas. Hoje são16 m2, mas não se preocupe,  nossos incorporadores logo chegaram aos apartamentos de 9m2 comuns em Tóquio, que, vendendo a facilidade de morar perto do trabalho, oferecem diminutos apartamentos. 

Está clara o objetivo desta arquitetura: disponibilizar mão de obra para o mercado, reduzir custos de transporte para empresas. Falta-lhe uma concepção humanista: a de ser um lugar onde uma família possa viver. Mas para quê famílias na era do turbocapitalismo neoliberal? Pior, a defesa do empreendimento que sua propaganda comercial disponível no YouTube faz nega o que diz defender: a valorização do patrimônio histórico é substituída por uma narrativa comercial, não há problemas sociais estruturais, o bem coletivo é o próprio empreendimento em si. É que a felicidade que propõe ao consumidor é só mais outro elemento de sua ideologia neoliberal pois reforça sempre o individualismo e não o coletivismo, a noção limitada do alcance dos efeitos arquitetônicos da obra que propõe é que de fato ela contribui para a manutenção das contradições sociais que promete curar. Assalariados terão condições de acesso ao empreendimento? A desigualdade desaparecerá do bairro? É claro que não! 

Isso acontece porque agora a felicidade proposta é mais novo fetiche que o mercado imobiliário utiliza para nos seduzir na capital. Como afirma Gilles Lipovetsky em “A Sociedade da Sedução“ (Manole, 2020), é mais um elemento da proposta narcisista do capitalismo que se impõe por um ethos de sedução, que substitui o coagir por “agradar e impressionar”.  O empreendimento quer-nos seduzir por supostamente agregar valores a uma mercadoria colocada à serviço do rendimento de uma industria global: agora, para vender imóveis, é preciso emodities, neologismo formado pelas palavras emotion (emoção) e commodity (mercadoria), e dá-lhe a sugestão da felicidade que se obtém com áreas de lazer generosas, conexão do Guaíba e visão do pôr-do-sol como se não pudéssemos fazer isso em nossos bairros, em habitações populares e de caráter social para todos e sem pagar os vultuosos preços pedidos pelos empreendedores.

Em relação à estética do empreendimento, na minha interpretação de suas características, com suas linhas e o peso de sua estrutura, possui na própria arquitetura um termo para defini-lo: brutalismo. Como afirma Achilles Mbembe em obra homônima (N-1 Editores, 2022) essa é uma categoria eminentemente política, que se exerce pela força, seja pelo desejo de remodelação urbana, seja pelos atos de demolição e construção que promove. Para Mbembe, o brutalismo arquitetônico é esse trabalho de montagem, organização e redistribuição de material e de pessoas que o empreendimento promove, transformando o prédio numa espécie de “cidade dentro da cidade”. Não é exatamente essa a proposta subliminar do empreendimento? Sua existência real se dá no ponto de contato dos materiais de sua construção, na circulação ou restrição dos corpos que promove, na imaterialidade de relações sociais que incentiva ou cancela que fazem com que  ele seja mais do que um complexo arquitetônico, mas o vetor de um mundo de símbolos e linguagem que intervém drasticamente na paisagem e na vida de um bairro cujas alturas cabe às autoridades públicas limitar e não incentivar “Alçar o vertical a posição privilegiada é um dos traços concretos do brutalismo, quer se aplique a corpos ou a materiais”, finaliza Mbembe. 

Não, não devemos permitir que privatizem a felicidade. Não, não devemos permitir que empreendimentos privados afetem drasticamente a paisagem da cidade. Sou um conservador, a skyline da cidade tem uma história, e o padrão de ocupação e construção da paisagem da zona norte um perfil. Permitir que agentes privados em busca do lucro a possam alterar afeta o comum. A felicidade não existe somente no lugar daqueles que podem pagar, é direito de todos e obrigação das políticas publicas, inclusive de habitação. Esse pathós da produção arquitetônica sem limites precisa ser combatido, da liberação total das alturas precisa ser criticado, não porque os empresários não tenham o direito de construir seus prédios, mas porque eles precisam encarar a questão ética da violência simbólica que suas construções promovem em seu entorno.

(*) Historiador, Doutor em Educação, autor de O Êxtase Neoliberal (Clube dos Autores) 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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