Opinião
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13 de dezembro de 2022
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09:36

Vitória épica assediada pela tragédia assassina (por Tarso Genro)

Lula e Alexandre de Moraes, durante diplomação no TSE. (Foto: Ricardo Stuckert)
Lula e Alexandre de Moraes, durante diplomação no TSE. (Foto: Ricardo Stuckert)

Tarso Genro (*)

No dia 12 de dezembro de 2022,  enquanto o Presidente Lula era diplomado numa histórica sessão do Tribunal Superior Eleitoral, ouvindo um épico discurso do Ministro Alexandre de Moraes, milicianos bolsonaristas atacaram a sede da Polícia Federal e incendiaram alguns veículos em Brasília. Era a nossa Cervejaria de Munich,  um “putsch” para um golpe que faliu e um  protesto pela sua derrota nas eleições presidenciais, onde toda sujeira que nela emergiu veio das suas estrebarias de “fake news”, dos órgãos de Estado aparelhados, das ações ilegais da polícia Rodoviária Federal e dos escaninhos bandidos do Orçamento Secreto. Estas ações da direita bolsonarista mostram que a vitória de Lula e da democracia ainda pendem de um forte processo político de afastamento dos restos da tragédia ancorados no porto da nossa história recente.

Votado pela base do Governo num gesto escandaloso que se tornou uma vergonha planetária da nossa decadência democrática, que se orgulhava do seu isolamento internacional, do negacionismo genocida e dos ataques sistemáticos às instituições da Constituição de 88, este “orçamento” só poderia ser composto por uma aliança marginal das religiões do dinheiro com o que tem de pior no fisiologismo das elites empresariais do país. Foi a unidade da barbárie contra a democracia, do fisiologismo com o espírito miliciano, de grande parte das classes médias com as instituições “sacras” do espírito-santo monetarizado na corrupção política.

Assim ele foi votado, para arrasar a paridade de armas nas eleições, em que o surpreendente foi a vitória de um homem supostamente aniquilado por uma conspiração midiático-judicial, que voltou com coragem e energia moral para reerguer um país dilacerado pelo ódio, obra de arte do fascismo que já percorreu no mínimo dois séculos da história ocidental. Aqui ele assumiu abertamente – com Bolsonaro – a paixão necrófila do negacionismo e a naturalização da dor alheia pelo deboche planejado. Milicianismo e grupos políticos, milicianos e religiões do dinheiro: armas e gestos, assassinatos e naturalização da morte, do racismo e da misoginia, compuseram o dicionário da enciclopédia fascista nacional que quase nos levou ao sucídio.

O fascismo e o nazismo são siameses, ora acolhidos pela maioria das classes dominantes e das classes populares manipuladas pela política da extrema-direita. Ambos são anti-sistema, propõe revoluções “pelo alto e “por baixo”, que reconhecem na barbárie uma substância permanente contida no Humano: “não um acidente infeliz da História” (…), como disse Simone Weil, mas “o bárbaro lamaçal da alma”, “um caráter permanente e universal da natureza humana”, esperando as oportunidades críticas para se manifestarem pela violência e pela negação da solidariedade e da justiça. (“A barbárie interior”, Jean-François Mattei,  ED. Unesp 1999).

“Casta – as origens do nosso mal-estar”  (Isabel Wilkerson, Zahar, 2021) lança luzes potentes sobre a formação da sociedade americana e sobre a sua estrutura de poder institucionalizada a partir do Século 19. As castas organicamente montadas em torno das “plantations” e a criação da identidade “negra” – como coisa – em contraposição à identidade branca dos colonos europeus, liberaram uma épica forma de exploração do trabalho. Ali se formavam as novas bases de acumulação – material e cultural –  especificidades de um novo sistema capitalista em expansão, cujas tendências hegemônicas em escala global já eram visíveis.

Modernização e barbárie, ciência e técnica, política e ideologia, assim estão harmonizadas:  moldam o império que se torna – ao mesmo tempo – exemplo do liberalismo político e também exemplo de convívio das suas liberdades com a barbárie. O Século 20 condensa e integra, promove cisões e repulsas, na nação em crescimento, que são vividas tanto nos “partidos” da barbárie como entre os “partidos” da democracia moderna, moderadores da violência, cuja tendência seria adjudicar ao Estado normas mínimas de civilidade, que realizadas bloqueariam os excessos impeditivos de formação da nação.

O impulso da democracia americana, todavia, permanece atado ao sistema de castas, já orgânicas nas classes sociais em renovação, cuja política – a partir do Estado – promoveu tanto a democracia como o martírio de milhões, para a glória da civilização ocidental. Este conflito entre barbárie e civilidade democrática está expresso, também, nas lutas de resistência – vitoriosas ou derrotadas – contra o nazismo e o fascismo. E na luta entre as ditaduras e os defensores das bases constitucionais das democracias na América Latina, hoje uniformemente assediadas pelo fascimo, que retorna com diversos modelos formais em escala planetária

Não é muito divulgado na historiografia do racismo e do “apharteid” americano, que os intelectuais e cientistas “sociais” do Partido Nazista estudaram com muito interesse as estratégias de purificação social e racial nos EEUU, tais como as zonas proibidas para a comunidade negra – tanto no espaço social como geográfico – bem como a probição dos casamentos entre brancos e negros, nas origens da formação democrática americana. A eleição do Presidente Biden, que é o oposto de Trump e da Klan nesta matéria, permite uma reflexão mais ampla e profunda sobre este tema vital do futuro das Américas

Na verdade, a afirmação do modelo americano dentro do sistema de poder mundial foi um gigantesco laboratório de conciliação entre barbárie e humanismo moderno, no qual a força da barbárie que está viva e forte, foi recentemente testada na tentativa de golpe do Presidente Trump no assalto ao Capitólio. A escolha do local ocupado pelos milicianos bem remunerados não foi gratuita, pois ali estava o símbolo da democracia liberal que incorporou, processualmente, a vasta comunidade negra do país nas proteções do Estado de Direito que foram formalizadas nas leis, como ideia que a nação queria fazer de si mesma.

Comparar a situação do ascenso do fascismo, na Itália, com os episódios políticos nacionais que foram gradativamente dando forma política legítima ao bolsonarismo (protofascismo), que vai lentamente se unificando com estratos relevantes do capital financeiro e com os setores mais marginais da burguesia mais “aventureira”, faz sentido: trata-se de compreender o processo de sucessão, entre as suas “elites”, que refletirá tanto na estratégia política dos setores populares, como nas mudanças necessárias para adaptação do capitalismo a um novo ciclo de acumulação.

Gramsci no cárcere em 1926, quase dois anos depois de eleito deputado (em “Americanismo e Fordismo”, Ed. Hedra, 2008) escreveu em plena era fascista que “os elementos da nova cultura e do novo modo de vida (…) são apenas as primeiras tentativas (…) iniciativa  superficial e simiesca”,  para interferir no que hoje “seria chamado de americanismo”: é  crítica preventiva dos “velhos estratos que  serão descartados” (…) “e que já estão tomados por uma onda de pânico social, reação inconsciente de quem é impotente”, para alavancar – nos processos de mudança do sistema do capital – os aspectos que lhe interessam. O fascismo seria, assim, uma vitória reacionária com aparência de revolução.

A grande síntese histórica deste complicado processo político de formação do Estado Americano, dentro dos parâmetros da modernidade liberal democrática – um Estado imperial e de ocupações militares no seu exterior “vital” – está refletida em dois  fatos históricos exemplares na atualidade, que dizem respeito ao que ocorre em nosso país: de um lado, o Exército americano negando-se, formalmente, a participar de um golpe contra as instituições da democracia iberal; e de outra, seu Presidente tentando descaradamente este golpe, manipulando suas marionetes fascistas no  Brasil, para comporem um arco de alianças na extrema-direita dos EEUU, que vitoriosa refletiria seu poder fascista e racista em toda a América Latina.

A diplomação do Presidente Lula ontem foi a vitória de uma ampla frente democrática, que tem demandas diferentes sobre o Estado e diversas pretensões de futuro. Ela encerra um ciclo heróico de resistência e ofensiva democrática, pautada pela unidade em torno do Estado de Direito. E ela não foi somente civil, pois a falta de apoio majoritário ao golpismo de Bolsonaro dentro das nossas instituições armadas, pode estar indicando um novo ciclo virtuoso da nossa história republicana.

Sua confirmação só poderá ocorrer, todavia, se o peso da Lei Penal – dentro dos rituais democráticos do Estado de Direito – caírem por inteiro sobre os fascistas, os milicianos e os seus dirigentes políticos, que ainda no dia de ontem mostraram que o terror e a barbárie são suas armas principais contra a República e a Democracia. Quem viver verá: vivemos e veremos!

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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