Opinião
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20 de novembro de 2022
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07:12

O Dia da Marmota brasileiro (por Marcelo Jugend)

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Marcelo Jugend (*)

No filme “O Feitiço do Tempo”, um repórter vai cobrir um festival dedicado à marmota, no interior dos Estados Unidos. Algo inexplicável acontece, e então todas as manhãs ele acorda no mesmo dia, e tudo se repete indefinidamente.

 Na vida real, o Brasil se encontra mergulhado em uma situação muito semelhante. Algo aconteceu, e temos que reviver nossa história novamente, uma, e outra, e outra, vez.

A diferença é que no caso do Brasil há uma explicação perfeitamente identificável para o fenômeno. Ela responde pelo nome de covardia.

O poeta e filósofo hispano-americano George Santayana ensinava que o progresso humano decorre principalmente da capacidade de retenção das experiências vividas. É dela que nasce a possibilidade de melhora e aperfeiçoamento de qualquer coisa. Ele escreveu: “Quando a experiência não é retida (…) a infância é perpétua”. E arrematou o raciocínio com a mais célebre de suas frases: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. (“A Vida da Razão, ou As Fases do Progresso Humano”, 1905, volume I, capítulo XII).

Pois bem. Quando se trata de consolidar um verdadeiro processo democrático, o Brasil jamais consegue ultrapassar os primeiros estágios. A democracia brasileira é uma espécie de Peter Pan: nunca chega à idade adulta.

E a razão é bem aquela apontada pelo filósofo: não aprendemos a lição das más experiências vividas, para evoluir evitando que se repitam.

Nosso País sofre de um desvio renitente, que é o vício incontrolável dos militares em se imiscuir nos assuntos políticos. Isso é assim desde a própria proclamação da República, que não passou de uma quartelada. 

Não é um desvio inédito. Durante milênios a cultura humana foi balizada pela lei do mais forte. Quem tinha armas mais eficientes mandava. Só que a civilização evoluiu. Nos dias atuais a relação força/poder está longe de ser automática.

Mas esse estágio específico ainda não chegou a estas plagas. 

Nos 133 anos que se passaram desde o 15 de novembro de 1889, são inúmeros os episódios em que os homens cuja função deveria ser zelar pela segurança e soberania da Pátria em face de ameaças externas se julgaram no direito de interferir nos destinos domésticos da mesma, partindo do princípio absurdo de que sabem mais do que o resto da sociedade o que é melhor para todos.

Seja porque ameaças externas hostis não há, seja porque com as outras, que consideram “amigáveis” (mas não são!), eles preferem colaborar, o fato é que por aqui, ainda hoje, quem tem armas pensa poder tutelar quem não tem.

O grande problema é que, provavelmente por medo dessas armas, em nenhuma dessas ocasiões o corpo da sociedade brasileira teve a coragem de enfrentá-los e colocá-los no seu devido lugar. Dessa imunidade/impunidade resulta a persistência do vício e, com ele, do desvio.

Estamos, hoje, vivendo um novo recomeço. Agora bastante mais dolorido, porque entre 1985 e 2016 o Brasil desfrutou do mais longo e estável período contínuo de democracia da história. Pode-se até dizer que desta vez quase conseguimos chegar à adolescência.

Mas, parafraseando a profecia do imortal Drummond, no meio do caminho havia um quartel.

Nas décadas de 60 a 80 do século passado todo o cone sul da América do Sul esteve sob o jugo de ditaduras militares. Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, todos experimentaram a selvageria insana de tiranos nascidos nos quarteis.

Nos anos 80 esses regimes, um a um, foram caindo. Com a restauração de suas democracias, cada um dos países responsabilizou, de uma forma ou de outra, os criminosos fardados. Menos o Brasil, que os anistiou e os manteve, mais uma vez, impunes.

Aqui foi necessária a formação de uma enorme frente política, reunindo forças das mais variadas vertentes, para conseguir uma transição democrática que, mesmo assim, só foi possível após negociações que implicaram em concessões enormes às exigências que, graças às fraquezas dos democratas, os tiranos ainda tinham força para fazer.

Hoje, com a possível exceção da Bolívia, que sofreu um solavanco logo superado, todos os demais são democracias consolidadas, nas quais os militares não interferem, limitando-se conscientemente a seu papel constitucional. Inclusive os da Bolívia. Enquanto isso nós, por aqui, nos vemos novamente às voltas com as tropelias da milicada.

Ou seja, voltamos à primeira infância democrática. De novo.

Já se sabe que os militares brasileiros tiveram ativa e efetiva participação no golpe que destituiu a presidente constitucional do País, Dilma Roussef, em 2016. Naquela ocasião eles já estavam em plena e aberta – e ilegal – campanha para tomar o poder através de Jair Bolsonaro, desprezando, inclusive, em prol de seu interesse, o fato de que décadas antes este cidadão havia sido expulso do exército por terrorismo, e que foi classificado como “mau militar” até mesmo por um dos líderes da ditadura, o General Ernesto Geisel.

A raiz desse “revival” em particular foi o ressentimento estúpido dos generais porque o governo federal, sob Dilma, “ousou” instituir uma Comissão da Verdade, unicamente com o objetivo de restaurar a memória da ditadura. Nunca houve intenção de punir ninguém. Tratou-se, tão somente, de uma iniciativa absolutamente necessária a qualquer Nação que deseje fazer as pazes consigo mesma após um trauma daquela magnitude, no sentido de jogar luz sobre seu passado.

Aqui nem isso podia. Era um “ultraje” sequer insinuar que os milicos que sequestraram, torturaram e mataram haviam feito qualquer coisa errada, os pobrezinhos.

O resto é história. Intimidaram abertamente o STF para não deixar Lula concorrer em 2018, e apadrinharam a construção de um governo de extrema-direita responsável por um período de verdadeiro terror fascista.

Então, foi necessária a formação de uma nova frente amplíssima para, a duríssimas penas, tirá-los do poder. E começar tudo de novo. Do zero.

Pois bem. Se, ainda por esta vez, formos covardes, não dando ao passado a devida atenção, é quase certo que o repetiremos e viveremos outra vez o mesmo ciclo. Já estão expostos à luz do dia, para quem quiser ver, inúmeros elementos mostrando isso.

O próprio processo eleitoral recém-findo foi fortemente contaminado pela esdrúxula pressão vinda dos quarteis, a qual, diga-se de passagem, enfrentou quase nenhuma resistência oficial.

Proclamado o resultado, os derrotados passaram a tentar sabotar a vida do país através de manifestações golpistas, ilegais e, mesmo, criminosas, sob a omissão e o beneplácito cúmplices do governo, que ainda comanda as instituições que deveriam combatê-las.

Dias atrás os três comandantes das Forças Armadas se deram ao desfrute de emitir uma nota claramente política, total e descaradamente violadora dos limites legais aos quais deveriam estar obrigatoriamente circunscritos. Nela, velada mas afrontosamente, fazem críticas ao Poder Judiciário, apoiam abertamente as manifestações criminosas, ancorados em uma interpretação no mínimo cínica (e no máximo mal-intencionada) do conceito de liberdade de expressão e, pior de tudo, sem meias palavras, reafirmam expressamente a perigosíssima mentira de que seriam titulares de um poder moderador, figura jurídica inexistente no Brasil desde, justamente, a proclamação da República.

Os “veneráveis” Valdemar da Costa Neto e Marco Feliciano, porta-vozes de tudo o que há de mais desprezível na sociedade brasileira, e donos de duas das mais tenebrosas folhas-corridas da República, já lançaram e trabalham freneticamente pela candidatura de Bolsonaro para 2026, campanha para a qual não serão poucos os seus potenciais aliados.

Resulta de tudo isso que, se quiser evitar novos retrocessos democráticos que os canalhas de toda laia já tentam colocar no horizonte, a grande frente que conseguiu derrubar do poder, por enquanto, essa quadrilha de facínoras, tem um caminho dificílimo pela frente. 

O ovo da serpente há muito já foi chocado, sem encontrar obstáculos significativos. Hoje o réptil se encontra à solta, agindo incessantemente para sabotar o avanço do Brasil rumo a uma democracia minimamente séria e madura.

Por isso não é possível mais contemporizar. Ou se lhe corta a cabeça de uma vez por todas, ou em breve estaremos às voltas com grande possibilidade de novo retrocesso.

Dito de outro modo, agora será necessário agir com rigor contra todos os criminosos, fardados ou não. Os militares golpistas deverão ser severamente responsabilizados, e as Forças Armadas além de expurgadas de todos os desvios e vícios que as têm caracterizado precisam, de uma vez por todas, ser enquadradas pelo poder civil, conforme prega a nossa Constituição e, a propósito, a de todos os países civilizados do mundo. 

Bolsonaro, por outro lado, sequer poderá se candidatar na próxima, ou quiçá em qualquer outra eleição, pois os crimes que cometeu deverão levá-lo à cadeia, e por muito tempo. O mesmo quanto a inúmeros de seus asseclas, ocupem ou não qualquer cargo público.

O desafio consiste em dotar as forças do novo governo da vontade política necessária que, para tanto, não pode ser menos do que férrea, radical e irredutível.

A dúvida que surge, inevitável, é se, dada sua evidente heterogeneidade, essas forças poderão manter-se unidas diante dessa tarefa, unidade sem a qual, mais do que difícil, ela se configurará impossível.

E então, fatalmente voltaremos ao Dia da Marmota. 

(*) Advogado

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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