Opinião
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15 de outubro de 2022
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07:27

Brasil vota pelo futuro do planeta (por Baltasar Garzon)

Baltasar Garzon (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)
Baltasar Garzon (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)

Baltasar Garzon (*)

É cada vez mais evidente que estamos testemunhando uma crise de civilização, caracterizada entre outras coisas por uma nova guerra na Europa (algo impensável até muito recentemente); o retorno do fascismo a nível global; a mudança climática que está se tornando cada vez mais presente (sendo já inegável a menos que você seja um terráqueo plano ou algo assim) ou a crescente desigualdade e concentração da riqueza mundial em cada vez menos pessoas. Tudo isso sem mencionar a pandemia que já superamos praticamente, mas com a certa ameaça de algum fenômeno semelhante em um futuro não muito distante.

Nesse contexto, nada encorajador, e embora à primeira vista possa não parecer assim, o que for decidido em breve no Brasil pode condicionar o futuro imediato de toda a humanidade.

O Brasil aguarda o segundo turno das eleições, em que deve ser decidido quem será o próximo presidente do país, seja Luiz Inácio Lula da Silva ou Jair Bolsonaro. A vitória do progressista por seis milhões de votos, mas insuficiente para ultrapassar os 50% sobre a extrema-direita em 2 de outubro, torna essa nova votação marcada para o dia 30 obrigatória, de acordo com o sistema eleitoral do país. Nessas eleições, os brasileiros decidem muito mais do que a escolha de um nome ou outro: valores tão essenciais quanto o respeito às liberdades fundamentais, a proteção dos povos indígenas e o cuidado com o meio ambiente e, claro, o próprio conceito de democracia estão em jogo. É evidente que um admirador aberto de Pinochet como Bolsonaro implica uma regressão em muitos aspectos, e isso tem sido demonstrado nestes anos por sua própria gestão governamental.

Abrigado nas redes sociais, algo típico da extrema direita, o presidente e o candidato manipulam informações à vontade e perturbam a mensagem quando diz: “O que está em jogo neste momento é o futuro do nosso país, é hora de unir forças para proteger as liberdades e dignidade do povo brasileiro e impedir que o grupo que agrediu e quase destruiu o país volte ao poder”. Ele acusa Lula, quando a corrupção o inunda, e é o último obstáculo para parar o socialismo, quando quem deve ser preso é ele por seus tons autoritários.

Uma ameaça

Em sua propaganda, apresenta como o diabo reencarnado outros líderes progressistas latino-americanos: Alberto Fernández, Gabriel Boric e Gustavo Petro. Lula, por sua vez, sem abandonar sua conta no Twitter, se mistura com as pessoas que percorrem cidades, deixando-se ser visto ao vivo e estabelecendo alianças com outras formações para impedir que a ultradireita continue a liderar o Governo.

Bolsonaro representa uma ameaça óbvia para suas políticas agressivas de desmatamento e agressão contra a Amazônia, por atacar os povos indígenas, minar o sistema eleitoral e enfraquecer o Estado de Direito. Em seu relatório mundial de 2022, a Human Rights Watch (HRW) enfatiza essas más práticas típicas da extrema direita e do neo-fascismo. Durante a pandemia, o governo Bolsonaro espalhou informações falsas e, como documentado pelo Senado, a corrupção ocorreu na compra de vacinas. Mais de 600.000 pessoas perderam suas vidas para o vírus, enquanto o negacionismo bolsonarista reinou irracionalmente. É verdade que a memória dos eleitores é frouxa às vezes, mas não tanto a de esquecer tudo isso e derrubar o equilíbrio em favor do desastre. Desde o retorno à democracia, nunca os direitos humanos passaram por tempos tão terríveis como com políticas agressivas contra indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e a própria liberdade de expressão; O aumento da violência institucional, que atingiu seu maior nível desde 2006.

Lawfare

Somam-se a tudo isso os ataques contínuos ao Judiciário e seu uso para fins políticos. O processo contra Lula, que passou 580 dias na prisão, impedindo-o de participar das eleições de 2018, deve ser enquadrado nesta verdadeira guerra judicial ou lawfare. O braço executor foi o juiz Sergio Moro, que usou os mais diversos truques em uma instrução atormentada por graves irregularidades, posteriormente descoberta. No ano seguinte, Bolsonaro o conduziu ao Ministério da Segurança e Justiça. Agora, como senador, nessa viagem de ida e volta, ele dá seu apoio ao seu benfeitor. As acusações e condenações contra Lula foram anuladas em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal por considerarem que as garantias do devido processo legal foram violadas, mas o prejuízo para Lula e para todo o país tem sido irreparável.

Se Bolsonaro ganhar, pode imaginar quanto esforço ele vai fazer para desmantelar o Supremo Tribunal Federal que ainda resiste a ele? Ele voa sobre o exemplo do presidente húngaro Viktor Orban, que marchou com o presidente da Suprema Corte Andras Baka porque, segundo o próprio juiz, “ele criticou reformas incompatíveis com o direito europeu”. Você vê: Montesquieu e o princípio da separação de poderes despedaçados no golpe de uma caneta.

A primeira barreira ao poder absoluto é a justiça, disse Baka, que foi abruptamente demitido em 2012 depois de descrever a redução da idade de aposentadoria dos juízes de 70 para 62 anos como um “expurgo camuflado” no Judiciário. Em 2016, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos concordou com Baka sobre os termos que dispensá-lo tinha a intenção de intimidar o judiciário.

Não vamos esquecer Donald Trump e suas manobras para domar a justiça. Darei apenas dois exemplos: primeiro, a proibição de entrada nos Estados Unidos em 2018 sob a ameaça de sanções a funcionários e promotores do Tribunal Penal Internacional que investiga casos envolvendo os Estados Unidos ou Israel em crimes contra a humanidade; segundo, a promessa eleitoral de Trump em 2016, mais tarde cumprida, de nomear juízes da Suprema Corte comprometidos com a causa anti-aborto. Tal manipulação nas nomeações levou, de fato, a que, em 2022, a Suprema Corte dos Estados Unidos, com a maioria dos juízes ultraconservadores, acabasse revogando a sentença que garantia o direito ao aborto, permitindo que cada Estado proibisse ou regulasse.

A mentira triunfa

Bolsonaro tem percorrido esse caminho que a ultradireita promove em cada país em que governa, como uma marca distinta. No caso brasileiro, além de Sergio Moro, é preciso mencionar o ex-procurador evangélico Deltan Dallagnol, que comandou a acusação contra Lula da Silva na operação lava jato. A demonstração de que houve manipulação política, alteração de provas e perseguição levou à anulação do processo, o que, no entanto, não impediu tanto Moro quanto Dallagnol de concorrer nas últimas eleições resultando em ambos eleitos: Sergio Moro como senador e Deltan Dallagnol como deputado federal, sendo este último o mais votado no Paraná, mesmo à frente da presidente do PT Gleisi Hoffman.

Tais resultados são desanimadores diante da confirmação de que mentiras, fraudes, fraudes de alguns meios de comunicação, o ataque aos direitos humanos e valores democráticos, bem como o uso político de órgãos judiciais, podem obter uma recompensa tão eficaz.

O objetivo final, penso, é a ascensão da extrema direita globalmente e o Brasil é neste jogo uma peça principal para o continente. Estas eleições são cruciais, porque será visto se as forças progressistas conseguirem se consolidar ou, pelo contrário, a ultradireita contrariar os avanços mais recentes da esquerda alcançados no Chile ou na Colômbia e, ainda mais, como elemento-chave nos próximos planos de Donald Trump. Mas a importância da disputa eleitoral no Brasil é ainda maior.

O que colocamos em jogo

O sociólogo e filósofo Boaventura de Sousa Santos, expressou muito bem há alguns dias: “Embora o Brasil, devido ao seu enorme tamanho, ache difícil imaginar que qualquer país ou movimento estrangeiro possa afetá-lo decisivamente, a verdade é que a extrema direita global, que hoje tem nos Estados Unidos seus maiores recursos financeiros e tecnológicos, vê em Bolsonaro um instrumento estratégico para manter sua visibilidade internacional e facilitar o retorno de Donald Trump. Para a extrema direita mundial, o segundo turno das eleições brasileiras representa as primárias das eleições americanas de 2024. Tenho chamado a atenção para as atividades da Rede Atlas, inicialmente financiada pelos irmãos Koch, magnatas reacionários americanos. Hoje conta com 500 instituições parceiras em 100 países para promover sua ideologia ultraliberal. Foram importantes na recente rejeição do projeto constitucional do Chile que buscava acabar com a Constituição do ditador Pinochet e são muito ativos no Brasil…”

O que está sendo colocado em jogo é muito. Para os cidadãos brasileiros e de todo o mundo. Do resultado das urnas no segundo turno, depende, entre outras considerações cruciais, o futuro da Amazônia, que será de destruição se for deixada no comando da extrema direita predatória de Bolsonaro, ou de recuperação, se for a visão progressista de Lula que, como Petro na Colômbia, está comprometida em proteger o pulmão do mundo. Em um momento em que a mudança climática é uma evidência esmagadora, o possível resultado desta luta presidencial leva o planeta a prender a respiração.

Em jogo no Brasil estão agora não apenas os direitos humanos de 214 milhões de pessoas, mas também o futuro de todos nós, ameaçados pela intolerância, pelo desejo insaciável de lucro, desprezo pelas liberdades e predação suicida do meio ambiente. Por todas essas razões, acho que não estou exagerando quando digo que no Brasil o futuro do planeta está sendo votado.

(*) Jurista, presidente da Fundação Internacional Baltasar Garzon (FIBGAR). Publicado originalmente em Info Libre (Espanha).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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