Opinião
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20 de outubro de 2022
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15:18

Ameaças à segurança global? (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Joe Biden, presidente dos Estados Unidos.
(Foto: Fotos Públicas/Divulgação/Joe Biden)
Joe Biden, presidente dos Estados Unidos. (Foto: Fotos Públicas/Divulgação/Joe Biden)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

A Segurança Nacional e a Insegurança Global

A administração Joe Biden acaba de lançar o documento “National Security Strategy 2022”, que tem por objetivo orientar as ações governamentais em torno de temas que afetam a segurança dos Estados Unidos. Particular atenção foi dada ao que se denomina de “competição estratégica para moldar o futuro da ordem internacional”. No seu prefácio, Biden reafirmou o compromisso em defender “os valores estadunidenses” e manter a hegemonia global: “… os Estados Unidos liderarão com os nossos valores … Não deixaremos nosso futuro vulnerável aos caprichos daqueles que não compartilham a nossa visão de um mundo livre, aberto, próspero e seguro.”

A competição vislumbrada pelos estrategistas estadunidenses envolve o enfrentamento das assim-chamadas autocracias, dentre as quais são destacadas a Rússia e China. Estes países teriam se aproveitado do ambiente da globalização pós-Guerra Fria para ampliar seus espaços de poder. Atraíram capitais e tecnologias das nações democráticas, utilizaram-se de seus mercados consumidores para alavancar e fortalecer suas capacidades produtivas e empresariais, beneficiaram-se dos seus sistemas de ensino e pesquisa para formar recursos humanos de alta qualidade e avançar na fronteira tecnológica, usufruíram do dinamismo dos seus mercados financeiros e das instituições que lhes dão sustentação. Por decorrência, assumiram um protagonismo que lhes permitiria contestar a ordem estabelecida.

A estratégia de segurança nacional de Biden se estrutura na premissa de que a era de inclusão das autocracias no sistema internacional dentro dos parâmetros do “internacionalismo liberal” está encerrada. Agora, haveria que se (i) conter tais países para que os mesmos não definiam o futuro das relações políticas, sociais e econômicas e (ii) buscar bases comuns para o enfrentamento de desafios que são transnacionais por definição, tais como as mudanças climáticas, as pandemias, as crises financeiras e pressões inflacionárias, o terrorismo, a segurança alimentar, energética e digital, para citar alguns. Trata-se, portanto, de em um ambiente potencialmente muito mais marcado por conflitos, nacionalismos exacerbados e disputas pela hegemonia global do que por espaços de coordenação e cooperação.

Na perspectiva dos Estados Unidos, as autocracias ameaçam a paz e a estabilidade no mundo. Tais países transformam suas amplas conexões na economia mundial em arma política. Quanto maior a sua influência sobre os fluxos de produção e comércio, maior a capacidade de contestar a “ordem global” (National Security Strategy 2022, p. 8). Todavia, ao se contrastar evidências empíricas sobre o envolvimento das grandes potências em conflitos e guerras fora de suas fronteiras, torna-se virtualmente impossível concorrer com a máquina militar estadunidense. O Relatório “Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, 1798-2022”, produzido pelo Departamento de Pesquisa do Congresso Nacional dos EUA, mostra que este país utilizou suas Forças Armadas no exterior em todos os anos que se seguiram à queda do muro de Berlim e do desmonte da União Soviética. Entre 1991 e 2022, foram centenas de ações realizadas em dezenas de países. Igualmente, é amplo o uso de instrumentos econômicos e financeiros por parte dos sucessivos governos estadunidenses para constranger rivais e aliados

O quadro abaixo reúne indicadores que buscam estimar alguns dos efeitos dos principais conflitos armados nos quais os países analisados se envolveram. Ademais, mostram aspectos da segurança interna e do desenvolvimento social.

As informações reportadas indicam que: 

  1. O número de homicídios intencionais por 100 mil habitantes nos EUA (5,1) equivale ao dobro da média observada nos países de alta renda (2,6); a China (0,7) está a abaixo e a Rússia (9,9) está acima da média dos países de renda média alta (6,8). As taxas de mortalidade em geral na Rússia e nos EUA são maiores do que a média global (7,6), sendo que a China está abaixo deste parâmetro.
  2. Os EUA lideram o ranking global de encarceramentos, com 665 presos para cada 100 mil habitantes, o que equivale ao quádruplo da média global (173). A Rússia (118) está abaixo desta referência, ao passo que a China (405) está acima.
  3. A China (78,2 anos) apresenta a maior expectativa de vida as nascer dos países destacados; sendo que tanto a Rússia (69,4 anos), quando os EUA (77,2 anos) apresentam indicadores abaixo da média dos países de alto desenvolvimento humano (78,7 anos). Já para quem atinge 60 anos de idade, a expectativa de vida saudável é muito próxima nos três países.
  4. Os países em destaque são extremamente desiguais, porém a China possui um indicador de participação dos 1% mais ricos na renda que está abaixo da média dos países de desenvolvimento humano alto e muito alto (15,5%); ao passo que os indicadores dos EUA e da Rússia estão acima. A pobreza é maior nos EUA e na Rússia do que na China.
  5. Em termos de mortos e número de envolvimentos em conflitos e guerras, os EUA têm impactos mais elevados sobre a paz global do que a China e a Rússia. Ademais, os gastos militares dos EUA são os maiores do mundo em valores absolutos e bastante superiores aos realizados por seus rivais autocratas em termos per capita.

Há inúmeras dificuldades metodológicas na padronização de dados sobre impactos das guerras. Por esta razão, estudo amplos e minuciosos de determinados conflitos acrescentam informações preciosas, mesmo não necessariamente comparáveis entre si. Neste sentido, o The Watson Institute for International and Public Affairs Institute, da Brown University, estimou os custos da “Guerra contra o Terror” promovida pelos EUA entre 2001 e 2021. No plano econômico foram US$ 8 trilhões em despesas orçamentárias já realizadas e custos previstos para atendimento de veteranos. Em termos humanitários foram 929 mil pessoas diretamente mortas no Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Iêmen e áreas próximas a tais países, além de 38 milhões de refugiados deslocados de suas moradias. Por fim, somente entre os anos de 2018 e 2020, os EUA realizaram operações de “contraterrorismo” em 85 países.

Para o caso da Rússia, Gordon M. Hahn, pesquisador sênior do Center for Terrorism and Intelligence Studies (CETIS) e autor do livro “The Russian Dilemma: Security, Vigilance, and Relations with the West from Ivan III to Putin”, estima que quase 200 mil pessoas morreram em virtude das guerras e conflitos promovidos por aquele país desde os anos 1990. A Rússia pós-soviética, especialmente sob o comando de Putin, tem, de fato, utilizado suas capacidades estatais e militares para garantir seus interesses fora de suas fronteiras. Foram mais de quarenta episódios de ação militar ou de apoio a movimentos locais de insurgência, envolvendo, inclusive, a incorporação de territórios de nações soberanas, como no caso recente da guerra na Ucrânia. 

Putin não mede esforços para corrigir o que ele denominou, em 2005, de “a maior catástrofe geopolítica do século”, vale dizer, o colapso da União Soviética com a decorrente a perda de influência da Rússia em seu entorno geográfico e estratégico. Ainda assim, a Rússia não é páreo para a máquina de guerra estadunidense. Para cada pessoa morta pela ação russa há pelo menos cinco mortos pelas forças armadas estadunidenses. Neste sentido, não parece haver dúvidas que em termos de promoção de guerras e mortes, a nação que se coloca como a defensora da democracia e dos direitos humanos no mundo é muito mais eficiente do que as autocracias que contestam o status quo.

Democracias, Autocracias e o Mais do Mesmo

Na confrontação entre o uso das capacidades militares e econômicas sobre rivais e aliados, o caso da China ganha um destaque positivo, na medida em que se revela o menos intrusivo e perturbador da paz global, o que dá sustentação aos argumentos de seus líderes. Em uma reunião recente na Asia Society, em Nova Iorque, o Ministro das Relações Exteriores da China e membro do Conselho de Estado, lembrou que: “Por mais de 70 anos desde a fundação da República Popular, a China nunca provocou um conflito, ocupou uma polegada de solo estrangeiro, iniciou uma guerra por procuração ou se juntou a qualquer bloco militar … A China está comprometida em não buscar hegemonia, expansão, coerção ou esfera de influência, e quer viver em paz com todos os outros países. Esta é, sem dúvida, uma grande contribuição para a estabilidade estratégica global.” (“The Right Way for China and the United States to Get Along in the New Era”, PRC Foreign Minister Wang Yi, September, 2022).

Isso não impede que Biden e o establishment do seu país coloquem a China no topo da lista das ameaças à segurança nacional e global. Por isso mesmo, procede a observação de Wang Yi: “Como uma nova Guerra Fria pode ser evitada, quando os EUA identificam a China como o principal rival e o desafio mais sério de longo prazo, e estão engajados na sua contenção [?]”. Não se pode descartar a priori a argumentação chinesa de que a origem dos conflitos e da instabilidade global está nos EUA. Conforme analisou Graham Allison em seu “Destined for War” é o medo de perder a hegemonia que pode produzir conflitos e não as ameaças concretas colocadas por um rival em potencial. 

É nestes marcos que se deve analisar o novo National Security Strategy. Com base nele, Biden afirma que os EUA possuem uma posição estratégica muito superior à dos seus rivais por ser uma democracia: “Esses competidores acreditam, erroneamente, que a democracia é mais fraca que a autocracia porque não entendem que o poder de uma nação brota de seu povo. Os Estados Unidos são fortes no exterior porque somos fortes em casa.”. De fato, há evidências robustas quanto ao dinamismo econômico e tecnológico do país, bem como em sua capacidade de projetar poder militarmente. Os Estados Unidos seguem como a maior economia do mundo em termos de renda corrente, e lidera ou está muito bem posicionada em termos de gastos com pesquisa e desenvolvimento, capacidades competitivas diversas, profundidade dos mercados financeiros, dentre outros aspectos. Suas Forças Armadas podem atuar em todo o globo e contam com os recursos mais modernos disponíveis.

Por outro lado, a narrativa oficial estadunidense não se revela tão robusta quando se analisa a posição de sua sociedade e democracia de forma ampla e comparativa. O desempenho dos EUA em termos de indicadores sociais específicos (educação, saúde, pobreza monetária e multidimensional, desigualdade etc.) e agregados, como o índice de desenvolvimento humano (21º no ranking global), não impressiona ou sinaliza que o país é um farol global para quem busca garantir a plenitude dos direitos humanos. Discriminação, violência e desigualdade são marcas tão fortes e estruturais, quanto o dinamismo de suas empresas e instituições de ensino e pesquisa.

O país presidido por Joe Biden sequer lidera as mais influentes bases de indicadores sobre a qualidade da democracia ou a amplitude das liberdades civis. A análise baseada no “Democracy Index”, da Economist Intelligence Unit, sugere que os Estados Unidos são uma “democracia imperfeita”, que ocupa a 26ª posição no seu ranking. No último relatório da Freedom House, os países com maior pontuação em termo de liberdades democráticas foram Finlândia, Noruega e Suécia. Os EUA emergem em uma posição intermediária, sendo ultrapassado por mais de cinquenta países (Freedom in the World 2022, p. 9).

A perspectiva estadunidense se baseia na dicotomia da luta entre o bem e o mal, democracias e autocracias. A paz interna só será plena se o inimigo externo for contigo e, preferencialmente, derrotado. Entretanto, é grande a distância entre a retórica do internacionalismo liberal estadunidense e a violência, interna e externa, praticada por seu Estado Nacional e sua elite econômica. A análise da história e das evidências contemporâneas nos permite sugerir que, em vários aspectos importantes para a preservação da dignidade humana, os resultados obtidos pela democracia estadunidense não são significativamente distintos do que os alcançados por autocracias que não aceitam a sua hegemonia.

Enquanto o National Security Strategy 2022 atualiza os desígnios da “diplomacia do porrete”, as massas não proprietárias seguem à mercê das crises políticas, econômicas, securitárias e ambientais engendradas nas disputas pelo poder global. Para os segmentos mais vulneráveis das diversas sociedades, pouco importa se a ordem internacional no século XXI será moldada pelos plutocratas de Washington, os autocratas de Moscou ou o mandarinato de Pequim. A depender da continuidade das práticas e estratégias dos EUA e seus rivais, a resultante tende a ser marcada por exclusão, desigualdade e violência. 

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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