Opinião
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9 de agosto de 2022
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07:20

Qual a nossa responsabilidade no enfrentamento do racismo? (Coluna da APPOA)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Priscilla Machado de Souza e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Este movimentado mês de julho marcou a entrada em um dos semestres mais importantes da recente história do Brasil. Estamos há menos de uma centena de dias para decidir um novo rumo para o país, seja para o estancamento do retrocesso nas bases democráticas, seja para o aprofundamento ainda maior dessa barbárie que insiste em destituir a nossa dignidade. Diante do sério risco de golpe que nos espreita, é nossa responsabilidade sustentar uma posição em defesa da vida, da liberdade e do Estado democrático de direito. Isso requer, também, o enfrentamento de toda e qualquer atitude racista. 

Apesar desse cenário de ventos indefinidos, atrocidades se misturam a boas notícias que renovam esperanças, como a da expulsão por racismo do então doutorando em Filosofia pela UFRGS – Álvaro Körbes Hauschild. Essa é uma decisão inédita que responde de forma assertiva ao clamor de boa parte da comunidade acadêmica, demonstrando-nos que não podemos assistir passivamente, como numa espécie de cumplicidade cínica, qualquer ato de racismo. Como aponta o nosso colega Edson de Sousa, em seu último livro Furos no Futuro: psicanálise e utopia, a função de testemunha é como uma fresta que pode reativar a força da vida, lá onde ela foi silenciada. Portanto, não se pode silenciar diante da tirania racista que insiste em destruir as possibilidades de pensarmos num mundo melhor.

O ex-aluno partilhou seu racismo em ambiente virtual, quando ao transbordar o seu ódio e sua ignorância, tentava dissuadir uma colega branca a se relacionar com seu namorado negro. Evidentemente, é uma notícia ao mesmo tempo triste, uma vez que mostra não só a falência dos ideais humanísticos como um todo, mas também no seio da própria Universidade. Álvaro foi aluno da UFRGS desde 2013, tendo cursado graduação, mestrado e parte do doutorado.

Haja vista que a implementação do sistema de cotas se dá em 2008, essa expulsão não deixa de assinalar o que escutamos em nossos consultórios por parte de alunos negros e negras: as cotas, embora fundamentais no processo, não cessam com o ciclo de violência a qual os jovens negros estão expostos. Estamos diante de uma situação análoga à promovida pela Lei Áurea, quer dizer, o anúncio dos direitos sem a garantia de acesso aos mesmos. A presença das cotas é a condição de ingresso, não de permanência. É imprescindível que a comunidade universitária – ou qualquer outra instituição que trabalhe na direção de políticas afirmativas de inclusão – preveja a revisão histórica e subjetiva da branquitude.

Há poucos meses, em entrevista no podcast de Mano Brown, Suely Carneiro fazia referência ao texto do historiador gaúcho Tau Golin: “Os cotistas desagradecidos”. Golin, um homem branco, relembra quais foram as condições de acesso de alemães e italianos no estado. Para esses não houve começo do zero. 

A expulsão do aluno foi um Ato que além de assumir uma posição de não compactuar com o horror do racismo, resgata a nossa humanidade e renova as nossas esperanças de viver num país menos racista e preconceituoso. Talvez, isso ajude a muitos que assistem calados na condição de espectadores emudecidos a saírem da apatia e sustentarem a sua voz para colocar um basta nisso. 

Apesar de reconhecermos a extrema importância dessa decisão da universidade, temos muito trabalho pela frente, pois como observou Dodô Azevedo, em artigo publicado na folha, em 29 de julho de 2022, “Nunca existiu Estado de Direito de fato para negros no Brasil”. O autor, ao comentar o manifesto publicado pelos alunos da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP): “Cartas às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de direito!”, que já consta com centenas de milhares de assinaturas, propõe a seguinte ideia: “Que tal uma carta em defesa do Estado democrático de direito para o povo preto? Ora, por que se faz necessária essa indagação”? Certo que nos últimos anos a democracia, as instituições e o Estado de direito estão em risco, mas, os pretos estão ameaçados há séculos neste país. Assim, não caberia neste artigo expor os diversos dados que justificam essa verdade vergonhosa, apenas alguns detalhes: 7 a cada 10 mais pobres no Brasil são negros, a cada três presos 2 são negros, 8 a cada 10 pessoas mortas pela polícia são de pele preta….

No entanto, o primeiro dado lançado por Azevedo no artigo aponta que a renda de 33 milhões de mulheres negras é superada por apenas 705 mil homens brancos. Se lembrarmos que a esmagadora maioria das mães solo e/ou chefe de família é negra, por si só, esse dado já justificaria toda e qualquer política pública e marcos regulatórios em âmbito privado que garantisse ações afirmativas. 

Contudo, é preciso ir além. No último final de semana de julho, o casal de artistas Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso perceberam mais uma vez que apenas seu dinheiro e posição social não são suficientes para a proteção de seus filhos adotivos – duas crianças negras retintas. A adoção dessas crianças por parte do casal perde o tom de bom mocismo quando a mãe, Giovanna, parte para cima de uma agressora racista em Portugal. Depois do episódio, em entrevista, Giovanna compreende a importância de seu papel como mulher branca no antirracismo ativo, mas reconhece que é sua condição de branquitude que a possibilita de ser escutada sem ser tachada de louca ou irracional, como tantas mães pretas. Mulheres que vêm desistido da maternidade, inclusive, por não suportarem a ideia de colocar no mundo mais uma criança negra.

Enfrentar, combater e não tolerar o racismo é responsabilidade, intransferível, de cada um que acredita na luta por um mundo mais justo.

Priscilla Machado de Souza é Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Autora dos livros: A função po-ética na psicanálise: sobre o estilo nas psicoses (Criação Humana, 2018) e do Infantojuvenil: História da menina poesia (Giostri, 2020).

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr é Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos seguintes livros Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019; Ensaio sobre as pedofilias. São Paulo: Editora Escuta, 2021.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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