Opinião
|
2 de maio de 2022
|
08:27

Recuperação parcial do mercado de trabalho (por Flavio Fligenspan)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Flavio Fligenspan (*)

Passados dois anos de pandemia, algumas coincidências impressionam na análise da evolução do mercado de trabalho brasileiro. Comparando-se o primeiro trimestre de 2022 com o último de 2019 – ainda antes dos efeitos da pandemia –, e tendo por base as informações da PNAD Contínua (IBGE), chama atenção, por exemplo, a taxa de desocupação que voltou ao nível anterior (11%), o número de desocupados que é praticamente igual ao do fim de 2019 (12 milhões) e o número de ocupados que também retornou ao ponto de partida (95 milhões). Todos os números estão arredondados, para facilitar a leitura e são tomados diretamente da Pesquisa do IBGE, sem ajuste sazonal.

É sabido que há uma diferença histórica significativa no comportamento do mercado de trabalho entre o primeiro e o último trimestre de cada ano, o que levaria, naturalmente, a algum tipo de tratamento da sazonalidade dos dados. No entanto, a dinâmica da pandemia alterou completamente os padrões, o que diminui o “ganho” do uso de dados com tratamento estatístico. Só para referir uma alteração de padrão, não houve neste início de 2022 uma grande dispensa de pessoal como se verifica normalmente, visto que a redução do distanciamento social e a continuidade da retomada das atividades atuou no sentido contrário, principalmente no setor de Serviços, sabidamente um grande empregador.

A análise gráfica corresponde ao que se esperaria de um fenômeno sanitário em escala mundial, com a semi paralisação das atividades econômicas entre o segundo e o terceiro trimestres de 2020 e a lenta retomada a partir dali. A taxa de desocupação cresceu muito na pandemia, chegando ao máximo de 15%, o número de desocupados cresceu junto, alcançando 15 milhões há um ano, e o número de ocupados chegou a seu menor nível no meio de 2020, com 83 milhões. Como referido anteriormente, hoje voltamos à faixa de 95 milhões de ocupados, uma diferença significativa em relação ao ponto de mínimo desta variável. Ou seja, o gráfico da ocupação tem um formato parecido com o da letra “U” e a taxa de desocupação e o número de desocupados tem o formato inverso, cresceram bastante e rapidamente e depois caíram e voltaram ao ponto anterior à pandemia.

Examinadas as coincidências, aqui entendidas como variáveis que tiveram forte alteração entre meados de 2020 e 2021, mas voltaram ao ponto de partida, vale agora observar as variáveis que não retomaram seus níveis; e sequer há qualquer indicação de que isto possa ocorrer logo a seguir. A mais importante delas é o rendimento médio real dos ocupados, hoje 8% abaixo do que foi no período pré pandemia. O rendimento sofreu uma variação curiosa no período, elevando-se mais de 6% no início do segundo semestre de 2020, em pleno caos sanitário, o que surpreendeu muita gente. Ocorre que naquele momento haviam deixado o mercado de trabalho os trabalhadores de rendimentos mais baixos, inclusive muitos que tinham ocupações informais, ocasionando um efeito estatístico na variável (efeito composição). Isto é, pela necessidade de isolamento, a retirada do mercado de trabalho das pessoas com os piores rendimentos fez aumentar a média, mas isto não poderia ser interpretado como elevação de rendimentos de quem permaneceu ocupado.

À medida que o distanciamento social foi relaxado e os ocupados na informalidade foram voltando ao mercado com seus rendimentos muito baixos, a média voltou a cair. Mas não foi só isto que puxou a remuneração real para baixo. Três outros efeitos somaram-se: (i) o aumento da inflação, que retirou poder de compra dos trabalhadores; (ii) a criação de postos de trabalho com rendimentos mais baixos, dadas as mudanças da legislação desde a reforma de Temer e a própria dinâmica da economia e do mercado de trabalho, que coloca milhares de pessoas em busca de poucas vagas, pressionando os ganhos para baixo; e (iii) a taxa de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas, que chegou a mais de 8% no meio de 2021. Ou seja, as pessoas queriam e precisam trabalhar mais horas, mas a fragilidade da economia não lhes oferecia esta oportunidade.  

Junto com o rendimento real, a massa de rendimentos também caiu durante a pandemia (7%). Numa primeira etapa sua queda foi puxada pela ocupação, mas, a partir da recuperação da ocupação, os rendimentos em queda não deixaram a massa crescer. Ou seja, a massa absorveu os piores momentos das variáveis que a compõem.

Ainda ajudaram a explicar este movimento as variações de pessoal e de rendimentos de algumas categorias específicas (posições na ocupação). Uma delas é a dos funcionários públicos, tanto os estatutários, como os com carteira assinada, os primeiros com quedas de 10% de rendimento real e os outros com redução de 17% durante a pandemia. Considerando-se que o funcionalismo perfaz 12% do total dos ocupados do país, estas quedas de rendimentos afetam bastante a massa. Outro movimento que chama atenção é o aumento de 18% dos ocupados classificados como “conta própria com CNPJ”, concomitante a uma redução de 8% nos seus rendimentos reais médios, o que ajuda a explicar a queda geral da massa, especialmente quando se tem em conta que quase um milhão de postos desse tipo foram criados no período da pandemia.

O aumento desse tipo de ocupação ocorreu pari passu com um outro fenômeno que tem intrigado os pesquisadores da área, o fato de que os trabalhadores com maior grau de instrução foram os que mais perderam rendimentos nos últimos dois anos. Uma hipótese que tem sido discutida para explicar esses dois movimentos – mais autônomos com CNPJ e queda de rendimentos – é a de que muitos destes trabalhadores mais qualificados, com a experiência do homeoffice, acabaram se desligando das empresas em que trabalhavam antes da pandemia, por vontade própria ou por imposição das empresas, e passaram a trabalhar como autônomos com registro (CNPJ). Isto acabou por reduzir sua remuneração, talvez em paralelo com uma redução de carga de trabalho, o que tem vantagens e desvantagens. O fato objetivo, porém, é que a massa caiu, e junto com ela caiu a demanda de consumo em várias áreas, compondo a explicação da falta de fôlego da economia brasileira.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora