Opinião
|
25 de maio de 2022
|
09:11

O ‘criptocrash’: o fim do sonho da moeda digital privada? (por André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo)

As criptomoedas nasceram sob a inspiração libertária de se retirar do Estado o poder de monopólio da emissão monetária (Imagem: Pixabay)
As criptomoedas nasceram sob a inspiração libertária de se retirar do Estado o poder de monopólio da emissão monetária (Imagem: Pixabay)

André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo (*)

Em 2022, os mercados financeiros estão em baixa persistente. As incertezas sobre os rumos do conflito militar na Europa, a aceleração inflacionária, a perspectiva de menor crescimento da renda, os conflitos geopolíticos derivados da tentativa de os Estados Unidos e seus aliados conterem a ascensão de novos poderes globais, dentre outros fatores, contaminam as decisões dos gestores da riqueza privada. Nem mesmo os generosos estímulos monetários dos últimos anos conseguem reverter a onda de pessimismo.

Dentre os segmentos mais afetados, o de criptoativos é que o mais se destaca. Entre o final de 2021, quando sua capitalização se aproximou dos US$ 3 trilhões, e meados de maio, verificou-se uma perda acumulada equivalente a US$ 1,5 trilhão (-54%). Para se colocar em perspectiva, o mercado global de renda fixa, que é cem vezes maior (seu valor atingiu US$ 136 trilhões, em abril de 2022), experimentou -6% de variação naquele mesmo período. No mercado acionário, os índices globais revelam variações acumuladas ao redor -20%: S&P Global BMI (-16%), MSCI (-18%), FTSE (-16%); assim como as principais bolsas de valores ao redor do mundo. Se há um movimento mais geral de fuga do risco e de busca de proteção, o comportamento específico do mercado de criptoativos revela uma maior aversão por parte dos investidores.

Em artigos anteriores, procuramos argumentar que as criptomoedas nasceram sob a inspiração libertária de se retirar do Estado o poder de monopólio da emissão monetária. Instrumentos como o Bitcoin passaram a representar a possibilidade de os indivíduos se libertarem das amarras impostas pela regulação. Não à toa, este mercado passou a atrair toda a sorte de estratégias para viabilizar pagamentos internacionais e, quando aquele se tornou mais robusto, realizar ganhos de arbitragem. Indivíduos e empresas que não conseguem demostrar a origem dos seus recursos, porque derivados de atividades ilícitas, representaram o estímulo inicial ao aumento na capitalização dos criptoativos. Este movimento, por sua vez, passou a atrair especuladores e, mais recentemente, pequenos poupadores. 

Fabio Panetta, do Banco Central Europeu (BCE), ao olhar tal evolução e a proliferação de instrumentos, concluiu que eles apresentam mais problemas do que vantagens para o conjunto da sociedade. Não são úteis como moedas, agridem o meio ambiente e apoiam atividades ilícitas. Diz ele: “…os criptoativos, especialmente os não lastreados, não são úteis como dinheiro … (ademais) são amplamente utilizados para atividades criminosas e terroristas … cerca de 23% de todas as transações estão associados a atividades criminosas. Criptoativos também podem ser usados ​​para evasão fiscal ou para contornar sanções. Criptoativos baseados em blockchains … também podem causar enormes quantidades de poluição e danos ao meio ambiente. Eles são criados em um processo de mineração descentralizado, que utiliza uma enorme quantidade de energia. Estima-se que a mineração na rede bitcoin consome cerca de 0,36% da eletricidade mundial – comparável ao consumo de energia da Bélgica ou do Chile.”

A retração em curso produziu perdas que já chamam a atenção das autoridades das economias mais influentes. A Secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, tem sido clara sobre a opacidade no mercado de criptoativos e de que os mesmos precisam de maior regulação. Em depoimento ao Senado afirmou que: “É realmente necessário um arcabouço regulatório para nos proteger dos riscos”. Já a presidente do Banco Central Europeu e ex-Diretora Gerente do FMI, Christine Lagarde, deixou claro que “criptoativos são altamente especulativos, ativos muitos arriscados”. Para ela: “… minha percepção é de que eles não têm valor real. Estão alicerçados no nada, baseados no nada e sem ativos que os sustentem e, assim, que os ancorem de forma segura.”. Em seu último Relatório sobre a Estabilidade Financeira, o Federal Reserve comparou o risco posto pelos criptoativos àquele experimentado nos fundos dos mercados monetários, quando da crise financeira global (2007-2009).

David Gerard e outros especialistas em finanças e em ativos exóticos há muito alertam para o fato de que os fundamentos dos criptoativos são tão sólidos quando a fumaça expelida pelo escapamento de veículos movidos a combustíveis fósseis. Warren Buffet, o “Oráculo de Omaha”, disse que não pagaria nem US$ 25 por todos os criptoativos do mundo, pois eles não produzem nada. Fabio Panetta, do BCE, compara este mercado ao Velho Oeste. Sam Bankman-Fried, fundador da FTX,  plataforma de negociações de cripatoativos, admite que os problemas ambientais gerados pela “mineração” e as ineficiências da descentralização dificultam a utilização de tais instrumentos como base para pagamentos. No limite, para viabilizar alguma moeda privada digital haveria de se lastreá-la em algum ativo real, como o ouro, além de se ampliar a eficiência em rede de sua geração e utilização. Em entrevista ao Financial Times, o bilionário do mundo virtual admite que não tinha a mais remota ideia do que eram criptoativos, mesmo quando ganhava fortunas com operações de arbitragem neste segmento.

O Colapso dos Criptoativos e a Ilusão Libertária

A desconfiança ganhou intensidade com a crise da TerraUSD (LUNA), uma das assim-chamadas “moedas estáveis” (stablecoins). Estes instrumentos surgiram para enfrentar um problema estrutural dos criptoativos: a volatilidade associada à ausência de colaterais reais e de contrapartes centralizadas. Em geral, tais stablecoins mantêm um lastro em moedas estatais consideradas seguras. Assim, por exemplo, estabelece-se uma paridade de 1:1 com o dólar estadunidense. Em tese, para cada unidade criada desta “moeda estável” haveria de ser ter um dólar reservado e creditado em uma instituição financeira. Esta faria a custódia dos valores equivalentes em dólares estadunidenses dos criptoativos criados. Nesta categoria destaca-se o Tether (USDT), que ocupa o terceiro lugar no ranking de capitalização dos criptoativos reportados pelo CoinMarketCap, atrás apenas do Bitcoin (BTC) e do Ethereum (ETH). 

A despeito das promessas de “estabilidade”, conversibilidade e transparência, a empresa responsável pela emissão do TerraUSD responde a processos judiciais por acusação de fraude e manipulação do mercado. Ademais, jamais ofereceu aos investidores balanços devidamente acreditados por auditores independentes. A transparência nunca foi um forte dos criptoativos, nem mesmo nos que se pretendem estáveis. Outras “stablecoins” populares, tais como o Binance (BUSD), o Gemini (GUSD), o Coinbase (USDC), para citar algumas, compartilham daquelas características.

No dia 09 de maio, em meio a um movimento baixista mais geral dos criptativos, iniciado em novembro de 2021, e que ganhou intensidade nos últimos três meses, a TerraUSD (LUNA) entrou em queda livre. Em uma semana, sua suposta paridade derreteu e seu valor transacionado nos mercados, que atingira o pico de US$ 120 no mês de abril chegou a US$ 0,00018. No começo de abril, a capitalização total da TerraUSD era de US$ 41 bilhões. Atualmente, é de pouco mais de US$ 1 bilhão. A crise do TerraUSD foi o gatilho que acelerou a queima de ativos neste mercado, cujas perdas nas últimas quatro semanas atingiram US$ 830 bilhões. Os US$ 40 bilhões perdidos na capitalização do TerraUSD representam apenas 5% daquele montante, o que nos indica que a desconfiança não está localizada neste instrumento, mas em todos os ativos criptográficos.

“Manias, pânicos e colapsos” financeiros são recorrentes ao longo da história, como nos demonstraram os trabalhos seminais de Irving Fisher, Charles Kindleberger e Hyman Minsky. Dificilmente os colapsos acontecem de forma isolada ou casual. Eles representam o ponto culminante de trajetórias prévias de euforia especulativa, onde os investidores assumem que é possível eliminar o risco e ganhar sempre e para sempre. Se, em sua origem, os criptoativos surgiram do desejo de contrapor o poder estatal, sua evolução e a sua crise atual se assemelham aos movimentos especulativos experimentados em outras crises financeiras.

As manias especulativas nascem da combinação de vários elementos, tais como as condições de elevada liquidez nos mercados monetários, as posturas dos investidores diante do risco, a expectativa de ganhos acima dos padrões normais, a alavancagem dos agentes e a maior exposição relativa às mudanças abruptas dos mercados, para citar alguns. Nestes marcos, o sistema financeiro como um todo vai se tornando cada vez mais vulnerável, na medida em que cresce o volume de dívidas de curto prazo assumidas junto aos bancos, usualmente com taxas de juros baixas. Tais dívidas se direcionam para a aquisição de ativos com retornos de prazos mais longos e cujos fundamentos não são necessariamente sólidos. Seus preços de mercado sobem por razão das decisões maciças de compras, e não pela sua qualidade e capacidade de gerar resultados operacionais compatíveis com as expectativas dos especuladores. No caso dos criptoativos, tal movimento é claro, mas com uma especificidade: não há quaisquer fundamentos reais ou resultados operacionais a serem avaliados. É a especulação em estado puro e lastreada apenas nas promessas de ideólogos libertários e no comportamento de gestores de investimentos que vendem terrenos na Lua como se fossem conseguir entregá-los.  

O desejo de se livrar do Estado, da regulação, dos impostos e das perguntas sobre a origem dos recursos criou uma enorme bolha especulativa, cuja implosão deixa um rastro de destruição, particularmente entre os jovens investidores, que, fascinados pelo mundo virtual, foram engolfados mais facilmente nesta mania especulativa. Não são poucos os casos de quem imaginava estar rico antes dos 30 anos e agora se vê diante da dura realidade de ter perdido todas as economias. Antes da crise em curso, estimava-se que mais da metade dos investidores em Bitcoins perderam dinheiro neste mercado de alto risco. Em algum momento do futuro, quando os desdobramentos do movimento atual estiverem mais claros, será possível estimar, com maior precisão, o número de mortos e de feridos desta guerra libertária. 

 Ainda não estamos vivendo uma crise generalizada nos mercados financeiros, mas uma correção importante em vários dos seus segmentos. No caso dos mercados de criptoativos, pelo menos única coisa está em alta: a desconfiança de poupadores e reguladores.

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora