Opinião
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29 de março de 2022
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07:18

O fracasso como ética (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

Só o fracasso produz histórias interessantes. 

Os bem-sucedidos geralmente não têm nada novo para contar – a narrativa deles se confunde com o vazio do lugar de objeto que ocupam frente às demandas da Cultura. Aliás, este é talvez um dos mais graves efeitos da lógica neoliberal: ao reduzir-nos a meros consumidores, acabamos por vezes substituindo os nossos mitos individuais pela ideologia dominante. Este apagamento do passado íntimo coloca a todos nós – mesmo os que nos supomos menos alienados – como profundamente endividados aos valores que não encontram lastro em nossa história familiar ou em nossa narrativa de vida. A lógica de mercado expropria-nos de nós mesmos, privatiza e terceiriza os nossos desejos. A busca por reconhecimento social acaba tendo como efeito colateral a hipoteca da vontade.

 Exemplo disso são as celebridades: por encarnaram os ideias sociais, acabam se apagando na efemeridade de uma notícia de tabloide ou de um post viral. Os célebres são profundamente chatos, não nos contam nada além da sua pequena narrativa de submissão à lógica da visibilidade e fama. A revista Caras é um anúncio daqueles que logo mais desaparecerão e serão substituídos por outros absolutamente iguais. Há toda uma poética ao avesso deste empuxo a se tornar não só objeto dos estandartes da cultura, mas também um produto a ser apreciado e, porventura, consumido. Monetização de si mesmo que é, por muitas vezes, o mote das propagandas até dos lugares em que nos julgávamos a salvo, como no caso, por exemplo, das faculdades que oferecem não um ensino qualificado, mas um “lugar no mercado de trabalho”.

Lembro aqui de um punhado de versos de Fito Paez, da música “Al lado del camino”: “En tiempos donde siempre estamos solos / Habrá que declararse incompetente / En todas las materias del mercado / Habrá que declararse un inocente / O habrá que ser abyecto y desalmado”. Declarar-se incompetente como prática emancipatória, mas também como retorno à possibilidade de construção de um mito próprio, uma narrativa que acene ao passado de que somos herdeiros e não ao presente que faz de nós “abjetos e desalmados”. Conjugar a alma no passado aspira à construção de um futuro menos abjeto. 

Enfim, difícil ter paciência com os bem-sucedidos.

Mas os fracassados, estes sim me dizem algo.

Gostaria que o leitor percebesse que não me remeto aqui a algum fracasso transcendental ou metafórico. Não creio que seja sempre necessário escutar a voz dos grandes filósofos ou dos intelectuais refugiados em suas torres de marfim. Há muita erudição que só pode ser enunciada em palavras comuns, no nosso dialeto cotidiano. Esta reflexão sobre o fracasso não me surgiu a partir de algum filme cult ou algum seriado obscuro. Ora, ainda que eu tenha feito toda uma ode àquilo que não se resume à ideologia proposta pelo neoliberalismo, não creio que possamos deixar de lado o fato de que, mesmo críticos, somos também filhos de nossa época, e isso implica dizer que nós também somos constituídos a partir do discurso organizador do nosso laço social. Como psicanalista, mas também como alguém interessado pelo mal-estar da minha época, me sinto convocado a não ignorar as produções culturais e artísticas de massa – afinal, talvez seja nelas que esteja expresso aquilo que nos constitui como cultura. À arrogância da performance de intelectualidade, prefiro a honestidade da circulação pelo espaço comum. Digo isso porque, como eu apontei antes, não foi uma obra lá muito erudita que me permitiu pensar sobre estas questões, mas sim um programa que acompanha o brasileiro há mais de vinte anos, o Big Brother Brasil

A única participante realmente interessante desta edição do programa, a meu ver, é a Linn da Quebrada. Linda, quebrada. Ela mesma se apresenta como o desvio: “Sou o fracasso. O fracasso de tudo que queriam que eu fosse. Não sou homem, nem sou mulher, sou travesti”. O detalhe de ser “o” fracasso e não “um” fracasso não é só preciosismo gramatical. Na escolha pelo artigo definido, Linn encarna o que há de “quebrado” em uma cultura em que tudo tem de estar no seu devido lugar: as partes do corpo, os compromissos na agenda, os tons combinantes. A perfeição é uma forma de amortecimento da aspereza criativa. 

Somos uma sociedade profundamente polida, lustramos um espelho em que vemos refletidos os nossos ideais, e não nós mesmos. Paradoxalmente, esta imagem que vemos é praticamente a mesma para todos.

Em uma cultura em que o sucesso se confunde com adequação, todos somos intercambiáveis. A melhor série do mundo da última semana é esquecida no mês seguinte. Quando todos estamos olhando para o palco, esquecemos que há muita coisa acontecendo nas coxias, “al lado del camino“. No mundo do desempenho, da exatidão e da precisão, fracassar é uma das poucas formas que ainda temos de resguardar a nossa singularidade. Cada um de nós fracassa de uma forma diferente, íntima, intransferível. Lina “fracassou” em se adequar ao que era esperado de si – e foi só a partir deste fracasso que pode constituir um mito singular, todo seu, a partir do qual faz laço com os outros e com o mundo. 

A psicanálise, como outras poucas expressões do propriamente humano, é uma ética do fracasso. Nos interessa, enquanto analistas, a palavra que escapa, o sintoma que insiste; a inibição que impede de nos adequarmos ao incestuoso convite de satisfação protética do neoliberalismo. O simétrico não nos interessa – a simetria é uma das declinações do devir-objeto.

O fracasso, muitas vezes, é a voz rouca do desejo negligenciado. Quase sempre são só os quebrados, como a Lina, que escutam essa voz e fazem dela uma ética de vida.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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