Opinião
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1 de março de 2022
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17:36

O Fórum Social Mundial 2022 e a agenda da paz (por Mauri Cruz)

Marcha de abertura do Fórum Social Mundial, em 2016 (Divulgação)
Marcha de abertura do Fórum Social Mundial, em 2016 (Divulgação)

Mauri Cruz (*)

O mundo assiste estarrecido a guerra na Ucrânia que tem sua importância global porque envolver a segunda maior potência nuclear. Mas o mundo não entrou em guerra com as operações militares russas. Há outras guerras em curso, embora não noticiadas. Começando pela ocupação desautorizada pela ONU da Palestina que, só em maio de 2021, os militares israelenses mataram 219 palestinos, dentre eles, 63 crianças. Há ainda a guerra no Iêmen que segue ceifando vidas todos os dias e com mais de 20 milhões de pessoas necessitando de ajuda humanitária, sem acesso a água ou alimento; a guerra em Myanmar onde numa manifestação pacífica, em março de 2021, foram assassinados pelos militares mais de 500 pessoas e é um conflito que mobiliza poderosos interesses econômicos, em especial, do Reino Unido, país do qual Myanmar é uma ex-colônia; a guerra na Syria que já deixou 500 mil pessoas mortas, sendo metade delas civis e que, a oposição ao governo recebe apoio bélico dos EUA e de países europeus. Além destes, há inúmeros conflitos regionais, quase todos financiados pela indústria da guerra norte-americana e de países como Reino Unido e Israel. A realidade é que o mundo vive em guerras desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Listas que circulam nas redes sociais demonstram que, desde lá, só os EUA já declararam guerras, enviando armas, blindados, helicópteros, misseis e milhares de soldados contra mais de 50 países em todas as partes do mundo.

A lógica da guerra tem como base moral a ideia de que é lícito seres humanos assassinarem outros seres humanos para defender seus próprios direitos. Por isso, pessoas, grupos, coletivos e países se armam e a própria Nações Unidas defende o princípio da autoproteção. Esta prática, no entanto, cria uma espiral de violência. Se um país se arma para “sentir-se” seguro, os países vizinhos se sentirão ameaçados e, obrigatoriamente, irão armar-se para proteger a sua segurança. A prática da guerra, portanto, é nefasta e ineficaz por sua própria lógica. Quando mais um país se arma para defender-se, mais os demais países irão armar-se e a insegurança irá aumentar, numa espiral sem fim.

A lógica nos indica o caminho inverso. A saída é o desarmamento. Mas, para isso, é preciso desmontar a indústria da guerra, principal “ativo” econômico dos EUA e de Israel. Aliás, as guerras têm tudo a ver com o capitalismo. Durante a 2ª Guerra Mundial, os EUA manteve-se “neutro” quanto pode, construindo uma poderosa indústria bélica e de insumos militares para, por assim dizer, alimentar o conflito. Após 1945, essa indústria, fortaleceu-se com a guerra fria e com várias guerras apoiadas pelos governos norte-americanos, como no Vietnã e na Correia. Lamentavelmente, o senso comum indica que, se fosse os EUA a declarar guerra contra a Ucrânia, não haveria surpresas e o evento estaria dentro a normalidade. Afinal, o governo norte-americano, com a conivência da ONU, é tratado como um exército global livre para fazer atrocidades sem represálias internacionais.

Por outro lado, apesar de potência nuclear, a Rússia não vinha tendo o mesmo comportamento. A própria anexação da Criméia à Federação Russa se deu, não por sua iniciativa, mas como resultado da guerra civil ucraniana após o golpe de 2014. Por isso, a estranheza da maioria das pessoas com a iniciativa Russa frente à Ucrânia. 

No entanto, neste caso, a Rússia escolheu o caminho errado, porque a lógica que alimenta este conflito é a lógica da guerra, onde não há lado certo. A Rússia, pela justificativa da autodefesa, quer impor à Ucrânia suas regras de proteção. A Ucrânia, numa lógica de servir como instrumento da OTAN e dos EUA, busca fortalecer seu poder bélico e político, ameaçando a Rússia. Mais que isso, nos dois países, o que alimenta o conflito é um sentimento ultranacionalista que tem como base moral a negação do outro, fenômeno que na Ucrânia, é ampliado com elementos nazifascistas.

O certo é que o desfecho desta crise não será promissor para a humanidade. Mesmo que o conflito acabe nos próximos dias, a tendência será o aumento da política armamentista em todos os países, como já decidiu a Alemanha, triplicando seu orçamento militar. Tudo indica que outros países seguirão pelo mesmo caminho. Neste momento de enormes desafios o pior cenário é o aumento das tensões militares e a desagregação das alianças globais pela paz. O mundo deveria estar mobilizado para o enfrentamento da pandemia que custa milhares de vidas diariamente, para o combate ao aquecimento global e seus efeitos sobre a vida das pessoas e do planeta, para o combate às desigualdades que geram milhões de mortes pela fome, pela falta de acesso à água, à saúde, ao saneamento, à moradia, ao trabalho e a uma renda básica. 

O FSM sempre foi um espaço privilegiado da sociedade civil de forma autônoma em relação aos seus governos e com uma perspectiva de cidadania universal. Cabe ao FSM se colocar contra todas as guerras. Contra a guerra na Ucrânia, no Iêmen, na Palestina, na Syria e em Myanmar. Promover um movimento global internacionalista em defesa da paz e por uma nova ordem mundial. Se a cidadania global não levantar-se contra seus governantes, a escalada armamentista irá dominar a agenda das próximas décadas com consequências inimagináveis. É um desafio muito grande, certamente. Mas uma necessidade que se impõe. 

Repito aqui o que já escrevi em 2012, por ocasião da realização em Porto Alegre o FSM Palestina Livre: o FSM nasceu com uma via radicalmente democrática, onde não há hierarquias institucionais que se sobreponham aos direitos das pessoas e da cidadania universal. Nasceu com uma metodologia do diálogo e do consenso, onde os mais diversos e diferentes pontos de vista têm liberdade para serem apresentados, ouvidos e criticados. Não é o lugar do pensamento único ou das verdades absolutas. No FSM muitas lutas novas despertaram, muitos sujeitos sociais saíram da invisibilidade e os horizontes dos direitos humanos e sociais se ampliaram.

É esta nova cultura política que pode oferecer uma perspectiva democrática e de diálogo como forma de enfrentamento dos conflitos. O FSM defende o direito dos povos se autodeterminarem, de construírem estados autônomos e democráticos e, da mesma forma, acredita que é possível criar um contexto de convivência pacífica entre todos os povos. Nos colocamos no campo da construção da paz. A cidadania global precisa da paz e deve mobilizar-se para exigi-la.

É preciso uma boa dose de solidariedade e empatia para entender o que se passa neste momento. É preciso buscar os pontos em comum para que o conflito se encerre e para que termine de forma respeitosa e digna para todos os lados. Defender a paz é a nossa principal missão nestes dias. Espero sinceramente que sejamos capazes.

(*) Advogado, membro da Diretoria Executiva da Abong e do Conselho Internacional do FSM

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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