Opinião
|
15 de fevereiro de 2022
|
07:15

Banzeiro Òkòtó: uma experiência arrebatadora (Coluna da APPOA)

"Banzeiro Òkòtó", de Eliane Brum (Xapuri.info/Reprodução)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. (*)

Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente. Silencia para não acordar a raiva do rio.

  O mais recente livro publicado [1] por Eliane Brum, “Banzeiro Òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mudo” (Companhia das Letras, 2021), é verdadeiramente uma experiência arrebatadora. 

  A musicalidade presente em cada página contrasta com a radicalidade de um testemunho capaz de sacudir consciências e de deixar nossa concepção de humanidade em constante estado de vertigem. Ao reconhecer a Amazônia como centro do mundo, diante do alerta de que estamos próximos do ponto de não retorno, Eliane subverte as noções de centro e periferia, produzindo, assim, o deslocamento necessário para nos responsabilizar face aos reais desafios de nosso tempo. 

  Depois de Banzeiro Òkòtó, grandes centros do império capitalista – Londres, Paris, Nova York, Hong Kong, Tóquio, Berlim, dentre outros – deixam de ser o principal foco de interesse, haja vista o risco para o planeta que a extinção da Amazônia engendra. Leitura urgente, Banzeiro é também o grito de muitas vozes que pulsam, incansavelmente, denunciando a apatia, a ignorância e a cumplicidade de muitos com a devastação da floresta, seguido do abismo climático em curso. 

  Desde a primeira nota, a autora adverte: “estranhar é preciso. O que não nos provoca estranhamento não nos transforma”. Ela realmente sabe do que está falando, pois, logo na abertura da obra, compartilha com o leitor o estranhamento do Banzeiro no seu próprio corpo e suas incidências na transformação de sua vida: “Desde que mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estomago como as outras pessoas. Tenho Banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemunho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite”. 

  É incrível como a verdade de sua escrita é capaz de transmitir os efeitos dessa transformação. Apesar de não possuir o registro do Banzeiro em meu corpo, posso afirmar que o desejo de saber se inscreveu nele no transcorrer da leitura. Poucas escritas causam experiência de corpo. Eliane faz isso com maestria e legitimidade de quem percorre as entranhas da Amazônia há mais de duas décadas, conseguindo se despir de saberes e preconceitos, ou ainda, como ela mesma se reconhece, como “escutadeira”. Desde 2017, quando decidiu ir morar em Altamira e sustentar a coragem de enfrentar os “comedores de floresta”, ela nos alerta sobre a importância de reflorestarmos a nós mesmos diante da imperativa responsabilidade com a “amazonização”. 

  Escrita de resistência, Banzeiro Òkótó carrega a força de defrontar cada um com a verdade que ora recalca, ora recusa, ou ainda, desmente. Logo, também por sustentar verdades, esse livro faz-se leitura indispensável, sobretudo porque vivemos em tempos nos quais a mentira se impõe com método, tática e estratégia de destruição.  

   Banzeiro Òkòtó é travessia para se reflorestar desde um lugar que requer transpor a ordem fálica dos valores vigentes na lógica predatória do mercado. Os homens, facilmente seduzidos pelas insígnias fálicas do poder, precisarão de maiores esforços para compreender a potência da delicadeza das palavras de Eliane: “Só compreendi a floresta como mulher ao me compreender mulher na floresta, ao iniciar o que talvez possa chamar de meu reflorestamento, no sentido de um outro jeito de me entender no mundo, com o mundo sendo mundo” (p.48). 

   Banzeiro dá voz àqueles cuja condição subjetiva de sujeitos de direitos e de desejos tende a ser desmentida pela violência das grandes empresas e mineradoras, através de sua retórica higienista do progresso e de seus sedutores ativos econômicos. Desterrados, expropriados, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, desamparados e abandonados serão dignamente reconhecidos em seu lugar de fala como humanos que, se forem ouvidos, talvez possam nos resgatar da alienação suicida à qual estamos submetidos.        

   Com firmeza e sensibilidade, Eliane vai nos banzeirando até o momento de enunciar um dos propósitos dessa escrita arrebatadora: “[…] este livro, em mais de um sentido, carrega o desejo de tornar a Amazônia uma questão pessoal para quem o lê”. Ao pegar o leitor pelas mãos, sacudindo-o permanentemente, a autora detalha a dimensão do desafio em questão, pois lutar pela floresta em pé requer estar disposto a reflorestar o próprio modo de pensar. 

  Portanto, não se trata simplesmente de reconhecer a importância da Amazônia, ou, até mesmo, admitir a nossa pertença à floresta: trata-se de colocar em questão a valorização das múltiplas formas de vida no planeta. Como diz Eliane, isso requer alianças, pois “o desafio de reflorestar a Amazônia exige uma aliança entre todas as forças da sociedade, em todas as áreas e em todos os campos do conhecimento, uma aliança contra a ignorância. A Amazônia não pode continuar a ser vista como um corpo para exploração, como um imaginário a serviço de nacionalismos de ocasião. A Amazônia é um mundo ao qual se pertence, mas não pertence a ninguém. Tudo o que fizermos daqui para a frente não será para salvar a floresta, mas para salvar a nós mesmos” (p.133-134).

 A proposta de uma aliança contra a ignorância faz-se urgente diante do caos de manipulações, mentiras e devastações em que o Brasil naufragou nos últimos anos. Por isso, ler Banzeiro Òkòtó é uma forma de fazer alianças em nome da defesa de vidas humanas e não humanas, recurso fundamental para atravessar o empuxo sombrio da destruição. 

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos livros Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019 e Ensaio sobre as pedofilias. São Paulo: Escuta, 2021.

Nota

[1] Tive a oportunidade de realizar essa travessia após ler o artigo do colega Edson de Sousa, intitulado “Banzeiro Òkòtó – Mais um aviso de incêndio no Brasil”, publicado em Psicanalistas pela Democracia (PPD) em janeiro de 2022. Fica a sugestão de uma leitura capaz de deixar o leitor inquieto a ponto de querer adquirir o livro imediatamente.  

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora