Opinião
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9 de janeiro de 2022
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19:05

Entre ameaças bolsonaristas e realidades trumpistas (por Tarso Genro)

Donald Trump e Jair Bolsonaro (Divulgação/PR)
Donald Trump e Jair Bolsonaro (Divulgação/PR)

Tarso Genro (*)

O jornalista Bernardo Mello Franco disse recentemente na sua conta twitter que “há uma linha tênue entre a profecia furada e a cascata deliberada”, sobre Fernando Schüller, o cientista político que, em janeiro de 2021, considerou do alto da sua modéstia analítica, “incrivelmente tedioso” discutir se o bolsonarismo ameaçava a democracia, considerando pessoas como eu – por exemplo – que temia sim esta possibilidade, alarmistas e teóricos do caos.

Fernando entendia que Bolsonaro era apenas “um parlamentar polêmico, não uma ameaça real.” Sempre considerei Trump, também, como uma ameaça real, mas jamais pensei que ele teria a petulância de tentar promover um golpe de Estado, embora não o tenha designado como um direitista moderado. Arrisco, com certa margem de erro, não uma cascata, mas apenas uma opinião mais radical sobre o futuro do Brasil, se Bolsonaro não for derrotado ou deposto.

Ou derrotamos o bolsonarismo protofascista nas próximos eleições ou seremos a vanguarda mundial, dentre os países que não compõem o bloco orgânico do sistema capitalista global, da primeira experiência completa de formação de um Estado não-democrático, obscurantista, anti-iluminista radical e pós-neo-colonial, destinado a ter uma larga duração no século 21. Um Estado que contando com imensos recursos naturais, um povo diverso e unificado pela língua, universidades de nível e uma posição geopolítica privilegiada (num vasto continente dominado pela pobreza) poderá ser a retaguarda de um novo bloco político-militar de confronto com a civilização capitalista do Estado de Direito clássico, cuja crise das suas instituições tradicionais, pode estar chegando a sua fase terminal. É evidente que a solução Trump-Biden -extrema direita e centro moderado – nos EEUU – vai interferir decisivamente neste futuro.

A problemática nacional-brasileira, do ponto de vista político, passa pela solução da frente histórica possível para governar de forma progressista com equilíbrio, de uma parte; e, de outra parte, passa por uma sequência de “primeiras medidas” de conteúdo social e econômico, capazes de restaurar a fé na democracia, recompor o sistema de Saúde Pública, reequilibrar a Federação na distribuição do recursos do Estado, fazer a abertura de um manto de proteção social para combater a fome, encaminhar soluções estratégicas para o equilíbrio ambiental e jogar, no terreno internacional, um jogo de soma “com +”, sem nos subordinar a qualquer dos esquemas de interesse dos países hegemônicos, que querem ver no Brasil uma oportunidade de deitar mão, em definitivo, na América do Sul.

Não é uma tarefa fácil, mas um jogo ciclópico num ambiente de guerra civil não declarada, legada pelo bolsonarismo. A restauração de direitos fundamentais assassinados pelos estragos das reformas escravagistas, uma nova tutela para a prestação de serviços “autônomos” controlados pelo resultado e uma maioria parlamentar, associada a uma maioria social mobilizada, seriam ideais a serem alcançados já na celebração dos resultados eleitorais. Será isso possível, no olho do furacão distópico, que é a jóia da coroa dos grandes interesses nacionais dos países ricos? Mas o que vai ocorrer, ao norte do México, “tão longe de Deus” e tão perto da desgraça colonial-imperial”?

Um artigo de Thomas Friedman, de 4 de janeiro, intitulado “Como parar Trump e evitar outro 6 de janeiro”, induz à tentação de fazer uma analogia entre a atual situação da democracia política nos EEUU, com o que ocorreu na crise alemã dos anos 20, que redundou na escória nazista no poder (janeiro de 1933) e em todas as consequências históricas que conhecemos. Analogia não é igualdade, mas semelhança. Trato, portanto, de uma semelhança preocupante, não da repetição de fatos históricos com pautas e repercussões idênticas na política mundial, embora os seus efeitos trágicos possam ser, no futuro, equiparados.

Friedman registra duas observações que reforçam esta tentação analógica, ao dizer – no primeiro registro- que se Trump e seu rebanho “forem capazes em 2024, de executar um golpe processual como o que tentaram em 6 de janeiro de 2021, os democratas não dirão apenas: ‘Que chato, vamos nos esforçar mais da próxima vez’. Eles irão para as ruas.” E no segundo registro diz que os líderes de empresas estão subestimando as chances de que as nossas instituições democráticas se desintegrem. E se a democracia americana se desfizer, o mundo inteiro se tornará instável -prossegue (e) isso também não será bom para os negócios.”

São limitações dos alicerces do raciocínio de Friedman: primeiro, o Partido Democrata americano é um partido do “establishment” e, por isso, não vai colocar ninguém na rua pelo seu arbítrio, para enfrentar as milícias trumpistas armadas, como aliás não o fez na tentativa de golpe, um ano atrás; segundo, os muito ricos das grandes corporações vão pender sempre para quem garantir os seus negócios no curto prazo e não para a moralidade democrática, pois esta sempre é conversível, rapidamente, em um Estado de Exceção impiedoso contra quaisquer movimentos de radicalização democrática, estando presentes nele, ou não, as esquerdas de dentro ou de fora do sistema político.

Para compreender as posições de Friedman é necessário deixar claro que ele defende um arco de alianças – para enfrentar Trump- que reúna muitos americanos de “centro- esquerda e centro-direita”, fora de uma extrema-esquerda, segundo ele, predatória da propriedade privada que “quer desmantelar a Polícia”, o que, segundo ele, seria tão assustador “quanto aqueles (‘trumpistas’) que tentam desmantelar a Constituição”. O autor, portanto, ao não reconhecer a existência de uma esquerda majoritária “dentro da ordem” (como a representada por Bernie Sanders) reconhece como “dois extremos” a serem evitados a oposição fora da ordem – anarquista ou extremista de esquerda – e Trump, num outro extremo. Não reconhece que o conflito real nos EEUU é entre quem defende a democracia e a Constituição, de um lado, e quem se apoia no fascismo ou é fascista, de outro. “Evitar os extremos” é tão falso, nos EEUU, como aqui no Brasil, pois o conflito latente e permanente hoje, em ambos os países, é sobretudo entre fascismo e democracia.

Desta falsa oposição vem o seu apelo moral às grandes corporações empresariais americanas e aos seus líderes bilionários vacilantes, citando uma fala de Dick Cheney, no domingo, que antecedeu a publicação do seu artigo: “Podemos ser leais a Donald Trump ou podemos ser leais à Constituição, mas não podemos ser leais aos dois.” E prossegue, já não citando Cheney: “Então, meu desejo de ano novo é que o primeiro item da agenda das próximas reuniões da Rodada de Negócios e do Conselho de Negócios seja: de que lado estamos?”

Friedman deveria saber que os grandes empresários estão sempre dos dois lados e se voltarão para o lado que certamente será mais fértil para os seus negócios, independente do sangue que sempre corre nos grandes conflitos em que os destinos do povo são decididos O artigo de Friedman, todavia, tem o grande mérito de demonstrar que definitivamente a democracia americana pode entrar em um grande ciclo bananeiro, com os votos de uma maioria que aceita o racismo, que é negacionista em função da pura ignorância ou do fundamentalismo religioso e que aceita o gangsterismo político como método legítimo de chegar ao poder. Se é isso a democracia americana, então não estamos tão mal assim: o nosso Trump local será sepultado em breve, politicamente, sendo o que sempre foi: uma ameaça real à democracia e um projeto de ditador não realizado.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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