Opinião
|
17 de janeiro de 2022
|
08:42

A realidade que se impõe aos dogmas econômicos (por Flavio Fligenspan)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Flavio Fligenspan (*)

Sempre achei muito estranhas as conclusões com caráter definitivo em Economia, sobre ter se chegado a algum ponto em que determinada situação estaria consolidada historicamente (frases como esta lembram Fukuyama). É muita pretensão, muita arrogância, de um analista pensar que seus estudos o levaram a concluir que se chegou num momento em que o curso da história estancou. Até dá para compreender a vontade do ser humano de adquirir tal poder, e buscar, através da ciência, dominar o futuro pelo conhecimento. Mas não devemos ultrapassar esta fronteira – a vontade de dominar –, o que até é muito útil para estimular o avanço do conhecimento.

Em um momento em que se discute a possibilidade da nova variante da Covid (Ômicron) significar um abrandamento ou até mesmo o final da pandemia em escala mundial e o estabelecimento de alguma nova “normalidade” econômica, é interessante observar como os últimos anos mexeram com várias “verdades definitivas” do passado recente, desacreditando os economistas cujas análises haviam chegado a tais “verdades”.

Listo a seguir alguns dogmas que já estão ficando para trás ou mesmo que já cederam seu status para modificações em curso. Não há ordem cronológica nem escala de importância. Em muitos casos, a pandemia foi decisiva para a mudança, e em outros, apenas acelerou o que já estava por acontecer.

1) A inflação baixa que perdurou por muito tempo nas economias desenvolvidas teria vindo para ficar, na opinião de muitos economistas; o fenômeno inflacionário seria uma coisa do passado e não deveria mais ser objeto de estudo, demandando tempo e energia de estudantes e de formuladores da política econômica. Pois bem, até mesmo no início da pandemia se pensava que a inflação muito baixa iria perdurar, visto que a fraca demanda – derivada da semi paralisação das atividades e a consequente redução da renda – tiraria qualquer estímulo para a elevação dos preços.

O que não se contava era com uma inflação vinda pelo lado da oferta, em função de problemas de abastecimento de cadeias produtivas, alta de preços de commodities e do transporte marítimo. E também não se previu a magnitude da transferência da demanda de serviços para bens de consumo duráveis em plena pandemia, pressionando os mercados de peças e componentes e do transporte de cargas. Igualmente não se estimou corretamente o quanto os auxílios governamentais a famílias durante a pandemia iriam se transformar em demanda por bens e como eles poderiam mudar a dinâmica da oferta no mercado de trabalho. Estas várias pressões inflacionárias, classificadas num primeiro momento como transitórias – e bem pareciam como tal –, agora preocupam os bancos centrais a ponto de começar a se projetar um ciclo de aumento dos juros, como no caso dos Estados Unidos, cuja inflação chegou a 7% em 2021, algo impensável há pouco tempo.

2) A semi paralisação das atividades durante a pandemia exigiu dos governos, independentemente da orientação econômica, políticas fiscais muito ativas, para apoiar famílias e empresas em dificuldades. Nunca se gastou tanto dinheiro para este fim, mas a mudança não se esgota aí. Mesmo economistas classificados como conservadores já vêem a necessidade de revisar dogmas fiscais rígidos em favor de o Estado fomentar a retomada do crescimento e da redistribuição de renda, algo que seria entendido como política fiscal populista de esquerda há pouco tempo.

3) Um tema que ganhou destaque na imprensa econômica durante a pandemia e que será objeto de muitos estudos nos próximos anos é a nova organização das cadeias globais (e regionais) de valor. As interrupções de suprimento de matérias primas, peças e componentes em 2020 e 2021, causando enormes prejuízos e afetando praticamente todas as atividades industriais no mundo inteiro, trouxeram a necessidade de repensar os modelos de organização da produção, do Just in time, de segmentação regional das etapas do processo de produção, de divisão internacional do trabalho e de abastecimento das fábricas. A busca por sistemas complexos de partição das etapas produtivas, em associação com o menor custo de mão de obra, foi posta em xeque e bem pode passar a ser reduzida em favor da qualidade e, principalmente, da confiabilidade da entrega de peças e produtos finais nos prazos contratados.

4) Outro fenômeno que veio para ficar é a introdução de moedas digitais por parte dos Estados Nacionais, com avanços até relativamente rápidos da discussão sobre a necessidade destas moedas e da possibilidade delas substituírem as moedas tradicionais nas suas tradicionais funções básicas. A China é a economia de peso no ambiente internacional que mais avançou no tema, o que impõe aos demais países estudos e testes com suas futuras moedas digitais, sob pena de ficarem para trás e perderem espaço. A mudança de paradigma é tal que nenhum país pode ignorar o tema, se eximir de examinar suas implicações e deixar que os demais tomem a dianteira de forma irreversível.

5) Por fim, nesta curta lista – e apenas preliminar –, vale referir a necessidade de avançar na mudança das fontes de energia tradicionais (fósseis) para as chamadas energias alternativas e renováveis, cujo objetivo maior é a preservação do meio ambiente mundial. Este processo de mudança que já vinha em curso tornou-se mais importante com a pandemia, pela associação que os cientistas têm feito entre a forma como o homem tem explorado a natureza e a possibilidade do surgimento de novas pragas, novos vírus, super bactérias e super fungos, para os quais não há tratamentos conhecidos. Os avanços da legislação de vários países e a auto regulamentação de diversos setores e de empresas têm trazido alterações de produtos e processos, visando à redução de emissões tóxicas e, dos incrementos da temperatura mundial. As implicações econômicas destas mudanças são enormes, ora causando resistências, ora trazendo novos elementos para o processo de competição.

Enfim, se já era estranho se falar em posições consolidadas na história econômica da humanidade antes da pandemia, depois dela esta expressão passou a não ter o menor sentido. As mudanças estão na nossa porta, em grande número e a exigir revisão de qualidade de posições passadas. Quem ficar para trás, vai “perder o trem”, um bom tema para discutir em ano eleitoral, especialmente numa sociedade que tanto necessita crescer e redistribuir a renda.

(*) Professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora