Opinião
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10 de dezembro de 2021
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09:16

Os limites do regime de metas de inflação no Brasil e a inflação recente (por Adriano Vilela Sampaio e Maurício Andrade Weiss)

Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Adriano Vilela Sampaio e Maurício Andrade Weiss (*)

O regime de metas inflação (RMI) vigora no Brasil desde a crise cambial de 1999 e tem conseguido obter resultados razoáveis no que tange ao controle inflacionário em uma perspectiva de longo prazo. Todavia, ao utilizar como única ferramenta para o controle inflacionário a taxa de juros, esse regime se mostra pouco eficiente em cumprir seu objetivo, levando a consequências danosas para outros aspectos da economia. Isso é especialmente observável em contextos de inflação de choques de oferta, como é o caso desde a eclosão da pandemia.

Busca-se aqui não uma crítica à condução do regime, mas de seu próprio desenho. Ademais, pretende-se argumentar que o desmonte do Estado em diferentes esferas e, particularmente, de controlar a inflação com o instrumental restrito do RMI, deixou o Banco Central do Brasil (BCB) sem opções de atacar a inflação de formas diferentes, inclusive sem ser bem-sucedido em evitar que os mais pobres fossem os mais penalizados pela alta nos preços.

Analisando os dados da inflação no pós-pandemia, observa-se que até agosto de 2020 a inflação acumulada ficou abaixo do piso da meta de 2020 (2,5%). Com a posterior aceleração, o índice fechou o ano em 4,52%, acima da meta de 4%, mas abaixo do teto (5,5%). No ano corrente (2021), a inflação acumulada sempre esteve acima da meta e desde março também acima do teto. 

Sendo a taxa de juros o instrumento central do RMI e dado que seus efeitos levam alguns trimestres para afetar a inflação, o BCB toma suas decisões olhando não para valores passados ou presentes, mas principalmente pelas expectativas. Com a pandemia e a esperada recessão, as expectativas para 2020 ficaram alguns meses abaixo do piso da meta, se elevaram a partir de junho e somente em dezembro ficaram (ligeiramente) acima da meta. Portanto, considerando os valores observados e as expectativas, o BCB tinha espaço para reduzir a taxa de juros, que passou de 5% a.a. em fevereiro de 2020 para 2% a.a. em junho/2020. 

Para 2021, a média das expectativas acompanhou, em menor magnitude, a queda referente a 2020 e até janeiro de 2021 estava praticamente no centro da meta (3,4%). Foi a partir de março de 2021 que elas passaram a crescer de forma mais acelerada e desde fins de maio se situam acima do teto da meta. As expectativas para 2022 começaram a subir também a partir de março de 2021 e desde então se situam acima da meta de 3,5%, embora ainda dentro do intervalo superior [1]. Foi também em março de 2021 que o BCB iniciou o ciclo de alta de juros, que em dezembro de 2021 já estavam em 9,25% a.a. Portanto, quando são consideradas as regras de atuação do banco central no RMI, pode-se dizer que o BCB agiu em conformidade a elas. 

Todavia, a análise do índice “cheio” pode esconder detalhes relevantes, por isso é importante analisar os diferentes grupos. Em novembro de 2020, por exemplo, o IPCA estava em níveis confortáveis (4,3% a.a.), enquanto a inflação de alimentação e bebidas chegava a quase 16% e alimentação no domicílio a 19,5%. 

Em termos de participação de cada grupo no IPCA, fica evidenciado que em 2020 o setor de alimentos teve a maior contribuição, já que registrou uma alta de 14,09%, sendo responsável por 2,73 pontos percentuais do total de 4,5% do IPCA. Em 2021 ocorre uma alteração nos fatores de maior pressão, enquanto, nos primeiros dez meses do ano, a alimentação acumula alta de 7,1%, a habitação sobe 11,1%, puxada pela energia elétrica residencial (19,3%) e botijão de gás (33,3,5%). A alta nos transportes é ainda mais intensa, acumulando alta de 16,43%, puxado pelos combustíveis (39,6%). Outros setores, por sua vez, exercem pressões baixistas, tais como educação, despesas pessoais e vestuários. 

Essa distinção de inflação entre os setores fez com que a variação dos preços afetasse distintamente os diferentes grupos de renda, sendo mais acentuada para os menores níveis de renda. Embora historicamente a inflação desse segmento seja maior, essa diferença nunca foi tão alta e duradoura. Entre agosto de 2020 e janeiro de 2021, a inflação do grupo de renda baixa foi pelo menos duas vezes maior que a do grupo de renda alta, sendo que o maior valor da série histórica nessa relação havia sido de 1,6. 

Ao longo de 2021 essa diferença entre a inflação das rendas foi sendo reduzida, ainda que permaneça significativa, pois no acumulado de 12 meses, com referência ao mês de outubro, a inflação para a classe muito baixa registra 11,4% contra 9,3% da renda mais alta (IPEA). Isso se deve, como mencionado acima, pelo arrefecimento da elevação dos alimentos e aceleração da inflação dos transportes e habitação, que atingem de forma mais ampla os diferentes níveis de renda. 

Essa discrepância da inflação entre as diferentes camadas de renda é um exemplo flagrante de como uma política como o RMI pode negligenciar questões extremamente relevantes. Diferenças tão grandes nos índices dos diferentes grupos de renda não deveriam ser vistas como uma particularidade indesejável dentro do objetivo principal de cumprimento da meta. A meta de inflação em 2020 foi cumprida (ficou mais perto do centro que do teto da meta), mas desconsiderar seus efeitos sobre os diferentes segmentos de renda, mostra a limitação do RMI em tratar inflações que não sejam de demanda.

Como mencionado acima, a inflação desde 2020 é decorrente majoritariamente de choques de oferta. Sem ter a pretensão de detalhar as causas, as quais podem ser observadas em Sampaio e Weiss, pode-se destacar como fontes inflacionárias as altas nos preços das commodities, em especial o petróleo e as alimentícias, a crise hídrica, a depreciação do real e os desarranjos de oferta global. 

Argumenta-se que o desmonte do Estado em diferentes esferas e, particularmente, de controlar a inflação com o instrumental restrito do RMI, limitou o raio de ação do BCB em particular e do governo em geral para combater a inflação. No que que se refere à inflação dos alimentos, esta deveria ter sido combatida com maior vigor e urgência, independentemente do cumprimento da meta e/ou da ancoragem das expectativas, já que ela tem impacto pronunciado sobre os mais pobres. Agir sobre grupos específicos de bens, em detrimento do índice de referência, implicaria necessariamente se desviar do RMI e adotar uma ação bem mais discricionária do que prevê sua operacionalização. Uma opção seria usar estoques reguladores para estabilizar preços. No entanto, o que se viu desde 2015 foi o virtual abandono da política nacional de estoques reguladores. Ou seja, na prática, o governo não teria condições de adotar uma política dessa natureza, porque renunciou a ela há alguns anos, foi uma limitação autoimposta.  

Os preços dos combustíveis, por ser um grupo de grande difusão na economia, têm sido um dos principais agravantes da inflação em 2021. Dada essa importância, o governo não deveria ter abdicado de ter algum controle sobre eles, mais especificamente, a política de preços de combustíveis deveria prever períodos de acomodação da variação de preços internacionais, como era feito anteriormente com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE). É preciso manter a saúde financeira e capacidade de investimento da Petrobras, mas a política atual significa desistir de controlar um preço chave da economia. Novamente, se trata de uma opção de não ter um instrumento de política. 

O mesmo vale para as tarifas de energia, outro “vilão” da inflação de 2021. A majoração de tarifas pelo acionamento das termelétricas ocorre por conta dos maiores custos. Uma opção seria, como no caso dos combustíveis, constituir um fundo nos períodos de menor custo para ser usado quando estes se elevassem. Tanto no caso dos combustíveis como no da energia, o que se vê são políticas que privilegiam o lucro em detrimento do uso de estatais como instrumentos de política econômica. 

A própria estrutura industrial condiciona a capacidade do controle da inflação. Os gargalos nas cadeias de produção global desde o início da pandemia, que podem se estender até 2023 (Valor), por exemplo, acabam afetando mais os países cujas cadeias produtivas têm grande dependência de bens importados. Defende-se que o Estado desenvolva capacidade de mapear e agir de forma coordenada para evitar rupturas nas cadeias domésticas. A busca por maior resiliência nas cadeias produtivas, internalizando setores e revertendo cadeias globais de valor, o chamado reshoring, tem sido uma tendência mesmo antes da pandemia (UNCTAD, 2020).  

Medidas discricionárias temporárias como isenções tributárias e taxação de exportações de bens essenciais também poderiam ser usadas em momentos de rápida elevação de preços, principalmente quando os mais pobres são os mais afetados. 

Uma outra forma de controle da inflação teria sido a intervenção para reduzir a forte depreciação cambial deflagrada com a pandemia (27,1% entre fevereiro e maio de 2020), dado que a taxa de câmbio é apontada como o principal mecanismo de transmissão da política monetária no Brasil [2]. Se, por um lado, o BCB agiu corretamente em não elevar os juros, por outro, o país dispunha de expressivos estoques de reservas internacionais e poderia ter feito uso de swaps cambiais, instrumentos considerados market-friendly. A opção do BCB, no entanto, foi de intervir aquém de sua capacidade, principalmente quando se considera o volume proporcionalmente baixo de reservas utilizadas. 

Vale observar que a alta recente ocorre justamente após as maiores elevações na taxa de juros, o que evidencia a complexidade da relação juros e câmbio no Brasil, principalmente pelo real possuir um mercado de derivativos cambiais muito superior ao à vista. Cabe ainda frisar que o país tem acumulado saldos positivos no balanço de pagamentos. Ademais a possibilidade de adiar indefinidamente a internalização de recursos de exportação faz com que haja uma divergência entre o saldo exportador e os efeitos sobre o câmbio (ou, entre câmbio contratado e “embarcado”).

Retomando o argumento, buscou-se mostrar que o RMI é insuficiente como política anti-inflacionária e que novos instrumentos devem ser buscados. De forma geral, as medidas expostas, especialmente pelo caráter discricionário destas, vão de encontro à própria lógica RMI, um regime via regras. Outros aspectos caros ao RMI são o uso de um único instrumento, a taxa de juros, e sua condução por um banco central independente. O que se defende é que o controle da inflação deva lançar mão de políticas de diferentes naturezas, inclusive fiscais, e da coordenação entre diferentes órgãos do governo, atuando também do lado da oferta. Ao agir de forma isolada e somente via taxa de juros, o Banco Central tem que usar uma dose excessiva de um remédio pouco eficiente e que compromete o crescimento. 

Referências bibiliográficas 

PIMENTEL, D.M.; LUPORINI, V;  MODENESI, A.M. (2016) Assimetrias no repasse cambial para a inflação: uma análise empírica para o Brasil (1999 a 2013). Estudos Econômicos, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 343-372.

SERRANO, F. (2010).  Juros, câmbio e o sistema de metas de inflação no Brasil. Revista de Economia Política,  30 (1).  

O presente artigo é uma versão resumida do artigo elaborado pelos autores para o Boletim do Grupo de Financeirização e Desenvolvimento da Universidade Federal Fluminense. (FINDE)

Notas

[1] Em 05/11/21 estavam em 4,7% a.a.

[2] Ver Serrano (2010) e Pimentel, Luporini e Modenesi (2016)

Adriano Vilela Sampaio é Professor da UFF e pesquisador do Finde.

Maurício Andrade Weiss é Professor da UFRGS e pesquisador do Finde.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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