Opinião
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22 de novembro de 2021
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15:15

Olhar o Chile como clareira e Lula como uma estrada (por Tarso Genro)

Luiz Inácio Lula da Silva, falando no Parlamento Europeu (Foto: Divulgação)
Luiz Inácio Lula da Silva, falando no Parlamento Europeu (Foto: Divulgação)

Tarso Genro (*)

 Preocupados com o Chile e nossos irmãos chilenos todos estamos e devemos estar: “a preocupação é o mundo do sujeito. O indivíduo não é apenas aquilo que ele próprio crê, nem o que o mundo crê; é também algo mais: é parte de uma conexão em que ele desempenha um papel objetivo, supra-individual, do qual ele não se dá conta necessariamente”. (Kosik). O Chile se debate entre a afirmação da democracia e sua crise final, neste período de prova do liberal-democratismo, que derrotou uma das mais tirânicas ditaduras da história da latino-américa. O ato heroico Allende, oferecendo seu corpo ao golpe necrófilo de Pinochet e sua matilha, ainda paira como exemplo de revolucionário libertário, ao lado de Chê Guevara e do Arcebispo Oscar Romero.
 O que destrói a democracia é a fome e a violência que cresce no seu rastro. E o que destrói a República e amortece o seu rol de direitos históricos -humanos e civis- é o desprezo à política e a falta de confiança do povo na sua capacidade de auto emancipar-se. Ambas  são principalmente um arranjo cultural de reconhecimento, para dispor dos direitos básicos de sobrevivência, visando um equilíbrio mínimo nas relações reais de poder. Não ter fome é o primeiro momento constitutivo de uma ordem republicana e democrática, pois a  satisfação do “direito a não ter fome” é o que nos retira da necessidade animal e abre o campo do pensar como seres racionais: quem é jogado na deserção da fome, do frio, do desamparo, não pode nem deve ter compromisso contratual com a ordem vigente.
 O terceiro colocado na eleição do Chile em primeiro turno, Franco Parisi, é talvez a prova mais cabal do triste fim do período de democracia liberal, posterior ao ciclo das ditaduras latino-americanas que iniciou nos anos 60. Neste fim de ciclo, que se projetou por mais de 30 anos em todo o Continente, Parisi alcançou 13% dos votos nas eleições presidenciais chilenas , encarnando o  momento mais decadente da sua democracia lieberal. Ele não mora no Chile  – mas nos EEUU – não pisou no país  para fazer campanha eleitoral e tem processos pendentes de execução, na Justiça chilena, por ser devedor de uma pequena fortuna em pensões alimentícias. E fez mais de 800 mil votos!
  Apenas 40% do eleitorado votaram neste primeiro turno das eleições chilenas e os votos de Parisi compõem esse percentual pela extrema-direita, neste momento, que pode levar o extremismo de direita chileno – de caráter claramente nazifascista –  novamente ao poder. Desta feita, pelo voto popular, retomando assim o sistema sangrento do regime de Pinochet, que parece não ter deixado marcas negativas suficientemente fortes no povo chileno, de modo a criar uma unidade de princípios majoritária contra o totalitarismo fascista e suas políticas  necrófilas.
 A desestruturação  das classes tradicionais do capitalismo industrial, mesmo aquele periférico, aniquilou não somente o sistema político de representação, que lhe dava uma certa estabilidade, mas também desvalorizou a democracia: os Governos se alternaram, mas as suas políticas – com raras exceções – tinham apenas diferenças “de grau”, umas das outras. No que tange à dissolução ou proteção dos direitos históricos dos trabalhadores e dos setores médios-pobres, Lula é uma exceção épica, não porque se oponha à tortura e ao “negacionismo”, poições  que sempre lhe caracterizaram como político classes trabalhadora, mas predominantemente porque combateu a fome: ofertou educação e moradia e desaguou recursos do Estado para os mais pobres se alimentarem melhor.
 O que resta de apreço à democracia nos setores mais pobres e socialmente excluídos no Brasil se deve a isso, não ao discurso iluminista em defesa dos direitos humanos e aos direitos civis em abstrato. É simples e elementar: para prestar atenção na democracia, para respeitar, entender o jogo da política, suas pobrezas e grandezas, para ter paciência para avançar solidamente, as pessoas precisam estar alimentadas, libertar-se das necessidades mínimas para integrarem a vida comum e pensarem que têm um futuro a conquistar dentro da ordem. Essa foi a grandeza de Lula, que lhe coloca como antítese do voluntarismo bolsonarista cheio de ódio, disseminador da fome e de todo tipo de preconceitos.
  Kast, o primeiro colocado na eleição chilena – também de extrema direita – com 28 %, e Boric (de esquerda), com 26% dos votos, que certamente terá o apoio de Marco Enríquez Ominami (que chegou a 7,5% no turno inicial da eleição), decidirão os destinos do Chile num pleito que – como o brasileiro e o venezuelano – vão influir decisivamente na história do Continente, nas próximas  décadas. Esta influência, todavia, é diferente daquela exercida em eleições “normais” na América Latina, posteriores à sequência de regimes ditatoriais.
  No ciclo de eleições atuais não ocorrerá mais uma disputa entre mais, ou menos liberais, mais – ou menos conservadores – mas sim, uma disputa que resolverá se a democracia liberal representativa tem chances de renovar-se e sobreviver, para enfrentar a máquina de ódio e de morte do fascismo. Esta máquina já conquistou uma boa parte das classes populares, mas a energia demoníaca e destrutiva do fascismo, – como se viu na Itália – também poderá despertar uma capacidade de resistência que, mais além de uma necessária soma de pautas identitárias importantes, poderá ir “além do capital” financeiro e dos seus operadores de mercado. O Chile poderá abrir uma bela clareira e nós, à Frente com Lula, Dino, Boulos, Freixo e tantos outros, uma nova estrada de redenção democrática.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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