Opinião
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6 de outubro de 2021
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09:26

O ovo da serpente (por Baltasar Garzón)

David Carradine, em cena do filme
David Carradine, em cena do filme "O Ovo da serpente" (1972), de Ingmar Bergman. (Divulgação)

Baltasar Garzón (*)

Sábado, 18 de setembro. Um homem de 49 anos se dirige ao caixa de um posto de gasolina para pagar umas cervejas. O funcionário do caixa, um estudante de 20 anos, se nega a atender o homem pelo fato dele não usar máscara. O cliente vai embora e regressa uma hora e meia mais tarde carregando uma arma. E dispara contra a cabeça do jovem matando-o no ato. Isso ocorreu na Alemanha, no estado de Renania-Palatinado. O agressor, “movido pela ira”, segundo resumiu a polícia, não acreditava no coronavírus. Participava de fóruns extremistas e seguia líderes da extrema-direita nas redes sociais, aponta o jornal El País, a partir de informações veiculadas por diversos meios de comunicação alemães.

Mas o que leva um indivíduo que, aparentemente, se limita a negar a existência de um vírus a empunhar uma arma e acabar com a vida de outro ser humano? Muitos pensarão que, definitivamente, estamos perdendo o rumo da racionalidade, que o vírus não é somente o da covid-19, mas sim algo mais profundo e antigo que volta e meia reaparece entre nós. No exemplo citado, podemos afirmar que a Alemanha pode ser um guia ilustrativo porque esse fenômeno vem sendo observado há muito tempo. A polícia e os serviços de informação alertam sobre isso ao descrever ataques violentos contra jornalistas nas manifestações em que esses grupos acusavam Merkel de restringir as liberdades por causa da pandemia. 

Milhares de pessoas protestaram em Berlim e em outras grandes cidades do país, cada vez mais radicalizadas, embora seu número tenha diminuído. A pandemia unificou-as na desinformação, nos boatos e nas teorias da conspiração. Os serviços secretos vêem por trás disso a extrema-direita, cada vez mais violenta, que questiona a legitimidade do Estado. Isso soa familiar para você?

A extrema-direita começou a organizar-se na Europa há alguns anos sob a batuta de Steve Bannon, o próspero empresário amigo de Donald Trump, e vem conquistando bastiões de poder. Primeiro foi a Liga Norte de Salvini, felizmente minimizada e fora do poder agora, depois Hungria e Polônia, dois exemplos claros onde, desde a presidência da República, começaram a restringir direitos e liberdades até o ponto de receber advertências da União Europeia.

Na Espanha, Vox, graças às divergências e desatenções dos grupos progressistas, que não souberam ler a realidade do que acontecia para além das fronteiras nacionais, conseguiu uma representação potente no Parlamento e vem intervindo de forma decisiva em várias Comunidades Autônomas e Câmaras Municipais onde, no papel, há um mandatário do PP. E, cada vez mais, enforcam o partido de Pablo Casado com sua própria corda, levando-o para o seu terreno.

Poderíamos dizer que Vox está em estado de campanha eleitoral permanente. “Só sobrou o Vox”, repetiram seus deputados desde as cadeiras do Congresso, estabelecendo um discurso de maneira que a frase se tornasse definitiva. É o slogan que eles querem ver utilizado pelos seus eleitores atuais e também é a isca para a pesca no futuro. “Só sobrou o Vox”, disse o deputado José María Sánchez García que protagonizou uma situação vergonhosa e infame na sessão plenária em que se votava a proposta de criminalizar penalmente o assédio às mulheres que buscam clínicas de interrupção da gravidez.

Sánchez insultou a deputada que havia apresentado o projeto de lei e recusou-se a cumprir a determinação do presidente para que deixasse a sessão, após uma sucessão de faltas. A partir daí adotaram o slogan“chegou a hora de se defender”, como justificativa para o espetáculo constrangedor.

Uma tática grosseira e antissistema na chave de insubordinação contra as instituições. Porque apenas 48 horas depois do circo de Sánchez García, a conselheira de Córdoba, Paula Badanelli, no plenário municipal e tratando o mesmo tema apresentado por IU (Izquierda Unida) e Podemos, defendeu a ação dos piquetes na frente das portas das clínicas e reivindicou a liberdade para rezar onde a pessoa bem entender, concluindo sua intervenção com a Ave Maria. Parece claro que o Vox mudou suas táticas e que o caminho iniciado avança pela falta de respeito e pelo desprezo às instituições. É provável que tenham cansado de se disfarçar de democratas e estejam, agora sim, expressando o que, de fato, subjaz sob suas maneiras nunca suficientemente contidas e que recordam muito o fascismo.

O Vox aprendeu melhor do que muitos que a linguagem é uma arma poderosíssima, e a empregam com energia e acerto contra seus rivais. Desconhecem os limites, ou melhor, aprenderam que podem insultar, mentir, propagar e difundir mentiras, desqualificações e injúrias, sem que aconteça absolutamente nada. E, neste ponto, o Partido Popular não fica para trás. Por exemplo, o Governo, além de carecer de legitimidade, é “socialcomunista e filoetarra (simpatizante de separatistas terroristas)”. Quanto a seus parceiros, que são utilizados com maior frequência para estabelecer sua ideologia, são pusilânimes e melífluos. O insulto e a desqualificação levados cada vez mais longe e a insolência chula de “quero ver se diz algo contra”, de raízes em gangues, parece que vão ser as únicas ferramentas da formação da extrema direita neste novo rumo.

A estratégia de Vox vai além de nossas fronteiras. No início de setembro, Santiago Abascal chegou ao México como um novo Hernán Cortés, decidido a buscar adesões, a partir da Fundação Dissenso (êmulo da FAES do PP) que preside, à denominada Carta de Madri, que data de outubro de 2020. Apoiam essa carta diferentes políticos do continente latinoamericano de ideologia semelhante, que pretendem defender a “liberdade da Iberosfera” (sempre às voltas com a liberdade). A Carta diz que “uma parte da região está sequestrada por regimes totalitários de inspiração comunista, apoiados pelo narcotráfico e outros países. Todos eles, sob o guarda-chuva do regime cubano e de iniciativas como o Foro de São Paulo e o Grupo de Puebla, que se infiltram nos centros de poder para impor sua agenda ideológica”.

Os signatários temem que as coisas vão mais além: “A ameaça não se circunscreve exclusivamente aos países que sofrem o jugo totalitário. O projeto ideológico e criminoso que está subjugando as liberdades e direitos das nações tem como objetivo introduzir-se em outros países e continentes com a finalidade de desestabilizar as democracias liberais e o Estado de Direito”. Obviamente, não dizem nada sobre as ações e atitudes dos governos de presidentes como Piñera, Duque e Bolsonaro, entre outros, nem dos massacres em prisões do Equador, perseguição de indígenas e populações vulneráveis no Brasil. Na verdade, nem os consideram.

Com a ameaça do comunismo como bandeira, Abascal se reuniu no México com membros do PAN, partido da oposição ao governo de Andrés Manuel López Obrador, registraram a marca Vox no país, mas não tiveram demasiado êxito. O presidente mexicano resumiu assim em uma de suas coletivas de imprensa diárias, que denomina “mañaneras”: “Ontem vieram uns extremistas da Espanha, de Vox. Se reuniram com o PAN. Porque são o mesmo. Os integrantes do PAN simulavam ser democratas. Mas não. São conservadores e ultras. Quase fascistas. AMLO, como é conhecido, definiu os políticos de Vox como “autoritários, classistas e corruptos”. “É como um retorno do franquismo”, explicou a seus ouvintes.

Com ânimo conquistador, em sua cruzada contra o comunismo, Abascal visitou também Equador, Colômbia – onde contaram com o respaldo, como não, do ex-presidente Alvaro Uribe -, Nicarágua e Peru, acompanhado de seu não menos extremo escudeiro, o jornalista Hermann Tretsch, entre outros membros de Dissenso. Em declarações de imprensa a um meio alinhado, Liberdade Digital, Liberdade Digital, Tretsch disse que “Cuba é a cabeça da serpente” que está se espalhando pela Iberoamerica e também pela Europa, por meio de Podemos. O eurodeputado denunciou que a União Europeia se abstém de intervir e apontou Josep Borrell, Alto Representante da UE para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, como “cúmplice dos regimes de Venezuela e Peru”. Neste último país, no dia 23 de setembro, os representantes da fundação do Vox se reuniram com os partidos de oposição no próprio Congresso.

Para a jornalista e ensaísta estadunidense Anne Applebaum, especialista em organizações de extrema-direita, o que o partido de Abascal está fazendo é um plano de internacionalização. “Estão muito interessados em tecer alianças internacionais que ajudem a partidos deste tipo a nascer em outros lugares”, disse ela ao El País.

Os sinais, eu diria, são mostras de uma estratégia que não é espontânea nem solitária, como não o foi há alguns anos a formação de grupos neofascistas na Europa e o assalto ao poder que iniciaram em cada rincão possível do continente. Não fizemos nada então e temo que, se não agirmos agora, se tornarão mais fortes e irão conseguindo novas cotas de governo, mais autoridade. O presidente do Congresso deveria ter sido mais expeditivo para deixar claras as coisas. Não é suficiente uma advertência. O prefeito de Córdoba deveria ter cortado a palavra da conselheira insolente. A exigência de respostas que protejam a cidadania deve ser formulada por esta, não aos extremistas mas sim aos grupos políticos e governos que acreditam na democracia, o que significa trabalhar por todos, obtendo cotas reais de bem estar que hoje perdemos pelo egocentrismo político geral. Com isso, o cordão de contenção da extrema-direita será uma realidade e não um problema.

Nas recentes eleições alemãs, a extrema-direita teve uma diminuição de votos e deputados. Os analistas consideram que o cordão sanitário que o restante dos partidos e os meios informativos impuseram em torno da Alternativa por Alemanha (AfD) teve muito a ver com essa diminuição. Mais ainda, segundo os analistas, eles acabam sendo reduzidos à irrelevância ao não estarem presentes na intenção de pacto algum, como assinalou Ángel Munarriz em InfoLibre em um interessante artigo em que destacou, citando diferentes especialistas, que a principal diferença entre o espanhol Vox e a AfD radica na resposta política e institucional, no tratamento da extrema-direita como um problema para a segurança do Estado e em um compromisso da sociedade alemã.

“O ovo da serpente” é o título de um filme de 1977, de Ingmar Bergman, cujo roteiro se desenrola em Berlim durante os anos 20 do século passado. Nele, o personagem de um cientista afirmava que era possível prever o futuro da Alemanha, comparando-o a um ovo de serpente. Através da fina casca se observa o réptil. Era uma metáfora do avanço do totalitarismo nazi no horizonte frente à omissão de boa parte da população que rechaçava as evidências e se deleitava na indiferença.

O homem que tirou a vida do estudante na Alemanha há alguns dias, os deputados e conselheiros que ostentam agressividade verbal e má educação nas sedes da soberania popular, aqueles que cruzam o oceano para transmitir doutrinas amparados em uma mensagem virulenta contra um inimigo declarado, apareceram em nossas vidas em muito pouco tempo e pretendem projetar sua ideologia sobre milhões de cidadãos até agora livres de mensagens de um ódio concentrado e muito perigoso. Suas ideias e intenções não são novas. São essas serpentes abrigadas em seus ovos, prontas para eclodir e inocular o veneno da intolerância.

(*) Jurista. Presidente da Fundação Internacional Baltasar Garzón (FIBGAR). Artigo publicado originalmente no site infoLibre (Espanha)

Tradução: Marco Weissheimer

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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