Opinião
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8 de outubro de 2021
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10:06

Capelania religiosa desrespeita liberdade de consciência e de crença nas escolas da rede municipal de Porto Alegre (por Karen Santos)

Vereadora Karen Santos (PSOL) (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Vereadora Karen Santos (PSOL) (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Karen Santos (*)

Na última quarta-feira, dia 06 de outubro, foi aprovado um Projeto de Lei (PLL 029/20), de autoria do vereador Hamilton Sossmeier (PTB), que cria o Serviço Voluntário de Capelania Escolar. O projeto fere a autonomia e é uma afronta à luta por direitos das comunidades escolares.

De imediato, é importante afirmar a laicidade do Estado e, na prática, o projeto aprovado coloca para dentro das escolas – espaço público e laico – religiosos para oferecerem serviços de “apoio espiritual” e “aconselhamento”. Um evidente desrespeito e uma manobra para enxugar gastos frente problemas históricos das comunidades como a ausência de profissionais de saúde pública e de assistência social com vínculos com a escola, de locais de lazer, além de necessidades básicas urgentes como alimentação e emprego para as famílias.

Em segundo lugar, o projeto é de uma violência em relação a diversidade e ao direito à liberdade de crença, assegurada pelo Art. 5º, inciso VI, que afirma ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença”, e será aplicado justamente no ambiente escolar, em que crianças e jovens em processo de formação vivenciam uma importante ampliação de referências e tem contato com a sistematização dos conhecimentos produzidos pela ciência. Ao ferir esta liberdade, o projeto atenta contra um dos elementos fundamentais da democracia.

Além disso, o projeto que cria a figura do capelão interfere na organização do Estado pois este trabalho não será realizado por um/a professor/a de ensino religioso (com formação pedagógica, fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais e que responde diretamente ao poder público). Será uma interferência externa ao corpo docente. Ao não passar pelo crivo da administração pública, estará fora da estrutura organizacional da educação no município de Porto Alegre, indo contra a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre.

Outro ponto que questionamos frontalmente é que para estar apto/a a exercer a capelania voluntária, a pessoa precisará de um “curso em capelania escolar de no mínimo 180 horas”, com certificado expedido por entidade representativa estadual ou nacional (Art. 2º). Nem seria necessário perguntar, mas vamos lá: a quais vertentes religiosas respondem as instituições com cursos de capelania? As Igrejas. Isso confirma, novamente, o cerceamento à liberdade de consciência e de crença, pois a intenção do projeto é inserir uma determinada concepção de mundo, uma determinada instituição religiosa no seio das escolas da rede pública municipal.

Para piorar, foi retirado do PL o único artigo que afirmava que o projeto de capelania deveria passar pela comunidade escolar e pela direção da escola. Ou seja, o PL dá autonomia total para religiosos dentro das escolas. Um espaço que deve estar a serviço do trabalho educativo e da formação intelectual e social do estudante a partir de um projeto político pedagógico. Temos todo o respeito a religiosidade de cada um/a, mas como pode auxiliar em algo um projeto que não está inserido no contexto escolar, que não consulta as famílias, que não tem vínculo profissional das pessoas e muito menos se tem a convivência com estudantes?

As comunidades escolares de Porto Alegre denunciam os seus problemas há muitos anos. Problemas que foram aprofundados pela pandemia e que não tem nada a ver com capelania escolar. Como pode a Câmara de Vereadores ocupar seu tempo para aprovar um serviço desse tipo?

As reais urgências das escolas passam por condições de ensino remoto, segurança alimentar, saneamento básico nas comunidades, política de emprego e renda. Faltam quase 5 mil vagas em creches em Porto Alegre. Ainda não temos de volta o transporte público e os ônibus alimentadoras nas comunidades. E esses problemas, ou as “dores” causadas por esses problemas, como coloca o vereador, não são resolvidos com capelanias nas escolas. Só podem ser resolvidos com investimento real, com políticas públicas, com mais trabalhadores/as concursados/as que possam articular educação, saúde, moradia e assistência e incidir na qualidade de vida de estudantes e famílias.

A realidade grita em cada unidade escolar. É preciso construir um plano que dê conta do que os estudantes deixaram de aprender durante a pandemia. Ao invés disso, o projeto privatista de Melo e de sua base aliada é tirar ou diminuir disciplinas fundamentais à reflexão e leitura de mundo como filosofia, ciências, história, geografia e línguas estrangeiras e inserir a religiosidade como a solução.

Querem se utilizar da fé do povo trabalhador para dizer que a religião vai resolver os problemas na escola “gratuitamente”. Mas a verdade é que a religião é escolha de cada um/a e o que os governos fazem é fantasiar soluções mágicas que já nascem falidas. Ao mesmo tempo, apostam em um modelo de educação mínima para os/as filhos/as do povo trabalhador, que forma para a subserviência, para obedecer e que não permite ampliar o olhar e a compreensão crítica de mundo.

É preciso lutar contra esse projeto de escola que tenta retirar dos/as estudantes a possibilidade de sonhar e apostar em seus sonhos. As resoluções para os problemas da educação passam por investimento real em políticas públicas, profissionais qualificados e valorizados, pela garantia de direitos e pela construção de um projeto de educação que aposte na coletividade e na força da classe que está na batalha e sustenta esse país.

Nem militar e nem religiosa. Por uma educação 100% pública, de qualidade, que ajude a pensar e não a obedecer.

(*) Vereadora de Porto Alegre pelo PSOL

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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