Internacional
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3 de outubro de 2021
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13:12

A recessão democrática (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Guarda Nacional protegendo prédio do Capitólio, nos EUA, em janeiro de 2021. (Foto: Tech. Sgt. Lucretia Cunningham)
Guarda Nacional protegendo prédio do Capitólio, nos EUA, em janeiro de 2021. (Foto: Tech. Sgt. Lucretia Cunningham)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

O poder não é um meio; é um fim. Não se estabelece uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objeto da perseguição é a perseguição. O objeto de tortura é tortura. O objeto do poder é o poder”, George Orwell, 1984

A Recessão Democrática é um Vírus Global 

Em uma era de polarização, a elite política e a sociedade estadunidense encontraram pelo menos um ponto de convergência: a convicção de que a ascensão da China à condição de potência global ameaça a liderança dos Estados Unidos (EUA) no mundo. E, por decorrência, que o poder estadunidense deve ser mobilizado para evitar a vitória do “autoritarismo” e o ocaso da democracia e das liberdades individuais. Biden tem sido ativo na perseguição deste objetivo, conforme temos argumentado. Em seus discursos retomou a retórica do internacionalismo liberal e, portanto, a defesa dos “valores universais” e da posição dos EUA como seus propagadores. Na 76ª Assembleia das Nações Unidas, o presidente estadunidense foi categórico: “O futuro pertencerá àqueles que dão a seu povo a capacidade de respirar livremente, não àqueles que buscam sufocar seu povo com mão de ferro … o autoritarismo do mundo pode proclamar o fim da era da democracia, mas eles estão errados.” 

Se Biden deseja salvar a democracia liberal no mundo, talvez seu maior desafio seja resgatá-la dentro de casa. Robert Kagan, um dos mais influentes intelectuais conservadores dos EUA, argumentou que a sociedade estadunidense já transbordou os limites normais que sustentam a vitalidade das democracias liberais. Para ele, o país flerta com o perigo: “Os Estado Unidos rumam para uma crise política e constitucional dentre as maiores [da sua história], com chances razoáveis de que, nos próximos três ou quatro anos, se multipliquem incidentes de violência extrema, com perda de autoridade do governo federal, e divisão do país entre enclaves em guerra, vermelhos [republicanos] e azuis [democratas].” 

Para Kagan, a Constituição do país e as suas instituições políticas têm sido tensionadas nos últimos anos, comprometendo os processos de transição pacífica do poder e o reconhecimento da legitimidade das distintas visões de mundo. O “império da lei” e a moderação no exercício do poder deram lugar às disputas onde todos os meios são aceitos para garantir o poder. Sob a liderança de Trump, o Partido Republicano colocou-se na linha de frente da contestação dos fundamentos da democracia liberal, cuja ruptura abre cenários de violência e instabilidade. 

Os tambores da guerra passaram a soar com mais força quando quase metade da população do país acredita que uma nova guerra civil pode se tornar realidade. O notório financista Ray Dalio, fundador do Bridgewater Associates, assume esse cenário como provável, tendo em vista as desigualdades crescentes e a perda de dinamismo econômico: “Acredito que estamos à beira de uma terrível guerra civil … Estudei os últimos 500 anos de história e de ciclos econômicos: grandes lacunas de riqueza, desequilíbrios significativos nos valores [dos ativos financeiros], dívidas elevadas e desaceleração econômica produzem conflitos e instabilidade”.

Tais constatações não são novas e, tampouco, se circunscrevem aos EUA. Em um ensaio de 2014, Larry Diamond, cientista política da Universidade de Standford, tomou um termo emprestado da literatura econômica para afirmar que o mundo vivia uma “recessão democrática”. Com base em dados da Freedom House, Diamond deu lustro empírico à sua tese para concluir que: “Na última década, a democracia viveu uma recessão global e há um perigo crescente de que ela se aprofunde e se transforme em algo muito pior”. 

No caso estadunidense, as tendências iliberais se revelaram antes da era Trump. Em 2015, Diamond já observava que: “Talvez a dimensão mais preocupante da recessão democrática tenha sido o declínio da eficácia democrática, da energia e da autoconfiança no Ocidente, incluindo os Estados Unidos. Há uma sensação crescente, tanto doméstica quanto internacionalmente, de que a democracia nos Estados Unidos não tem funcionado com eficácia suficiente para enfrentar os principais desafios da governança”.

 A “recessão democrática” tem como contrapartida a expansão de regimes iliberais ou autoritários. O Instituto Variedades de Democracias deu o seguinte título ao seu relatório anual de 2021, que mapeia a democracia no mundo: “A ‘Autocratização’ tornou-se Viral”. Neste estudo, os três países que lideram o ranking de democracia são Dinamarca (1º), Suécia (2ª) e Noruega (3º). Dentre os países do G7, destacam-se Alemanha (8º), Reino Unido (14º), França (15º), Itália (21º), Canadá (28º) e Japão (30º). Os EUA estão na 31ª posição, com seu indicador tendo apresentado uma variação negativa entre 2010 e 2020. Trata-se do único país do G7 em que a democracia perdeu força. 

Em 2020, o indicador global de democracia da The Economist foi o menor desde o início da série histórica, em 2006. O periódico britânico destacou a crise nos EUA, país classificado como uma “democracia falha” (flawed democracy): na nação mais poderosa do planeta “… os níveis extremamente baixos de confiança nas instituições e nos partidos políticos; a profunda perda de funcionalidade dos governos; as ameaças crescentes à liberdade de expressão; e um grau de polarização social que torna o consenso sobre qualquer questão quase impossível de ser alcançado. … Mais preocupante ainda, a confiança do público no processo democrático sofreu um novo golpe em 2020, com a recusa do presidente [Trump] em aceitar o resultado das eleições.” (Democracy Index 2020, p. 42)

A Freedom House (“Freedom in the World 2021”) indicou que a “recessão democrática” está em curso há pelo menos quinze anos. O caso da crise na democracia estadunidense é destacado, posto que a percepção global de sua decadência gera um efeito demonstração negativo. Na perspectiva deste estudo: “A exposição das vulnerabilidades da democracia dos EUA tem graves implicações para a causa da liberdade global. Governantes e seus ideólogos em estados autoritários sempre apontaram para as falhas domésticas da América, de modo a desviar a atenção de seus próprios abusos …”.

Biden tem sido incansável em reafirmar sua defesa da reconciliação nacional, da democracia e da posição do país enquanto um farol para o mundo: “Podemos fazer da América, mais uma vez, a principal força do bem no mundo.”. Desde os primeiros dias de seu governo, o líder democrata procurou traduzir suas palavras em medidas concretas e ousadas: seus planos de combate aos efeitos da pandemia, de inclusão social e de renovação da infraestrutura atingem montantes de aproximadamente US$ 7 trilhões. Em alguns casos, obteve apoio da oposição republicana, especialmente para investimentos em infraestrutura. Em outros, dá-se o oposto, com a rejeição de gastos que impliquem no enfrentamento das desigualdades sociais ou de aumento da tributação dos ricos. 

Neste contexto, uma das evidências mais contundentes da disposição ao conflito por parte da nova direita estadunidense está na discussão sobre o teto de endividamento. A principal regra fiscal dos EUA define limites para o endividamento do governo federal. No caso de as receitas tributárias (e outras) ficarem abaixo dos gastos correntes, resta ao governo emitir dívida e tomar tais recursos emprestados do mercado financeiro. Isso é particularmente útil quando as taxas de juros reais estão abaixo do crescimento potencial do produto interno bruto (PIB), o que tem sido o caso dos EUA há mais de uma década. Atualmente, a única restrição ao endividamento é a regra do teto. Se ele não for elevado, o governo será paralisado e os credores não receberão o que esperam. Uma crise de endividamento nos EUA não é inevitável, pelo contrário. Os investidores privados seguem dispostos a emprestar ao Tesouro. 

De acordo com os dados do Tesouro dos EUA, desde 1960 houve 78 alterações temporárias ou definitivas do teto, 49 delas em governos republicanos e 29 em gestões de democratas. Na maioria dos casos, o consenso e a tranquilidade prevaleceram nos processos legislativos. Porém, os conflitos neste tema tornaram-se maiores no período recente, particularmente durante o governo Obama. A paralisação da administração federal e o rebaixamento do rating da dívida federal foram consequências das disputas políticas radicalizadas, onde o objetivo central é inviabilizar o “inimigo”. Atualmente, o Congresso avalia nova ampliação. Se a mesma não ocorrer ainda em outubro, o governo federal não poderá funcionar normalmente. Se, no passado, o teto foi flexibilizado para viabilizar os gastos de guerra, no presente a rigidez fiscal tornou-se mais uma arma da guerra política e cultural. 

Tratar adversários como inimigos que devem ser eliminados e lançar mão de todos os meios possíveis para tanto é uma das facetas mais visíveis da crise estadunidense. Os discursos de Biden não parecem ter o condão mágico de reverter o quadro de negação dos fundamentos da democracia liberal. Além dos temas fiscais, que definem a possibilidade ou não de transformar o país a partir da ação estatal, a batalha em curso envolve o controle de várias outras legislações, particularmente as eleitorais, que são mais descentralizadas. O “vale tudo” para o controle dos resultados eleitorais está minando a própria crença na democracia. Assim, os EUA seguem divididos e quase metade do país sequer reconhece a legitimidade do mandato de Biden.  

Noam Chomsky é uma das principais vozes críticas ao establishment estadunidense. Para ele, a “… própria concepção dos princípios neoliberais é um ataque direto à democracia”. O uso do poder estatal para proteger e estimular os ricos e, principalmente, para eliminar a mobilidade social ascendente para a maioria da população, solapou a confiança da população nas instituições tradicionais. Nas últimas quatro décadas, os EUA se consolidaram como o país de alta renda onde mais avançou a distância entre ricos e pobres.

Depois da crise financeira global de 2007-2009 e, mais recentemente, com a pandemia da Covid 19, os problemas econômicos e sociais estruturais se agravaram, conforme detalhamos em outros artigos [1]. A renda, a riqueza e o poder político real se concentraram em parcelas ínfimas da população, nos EUA e no mundo, deixando para trás as camadas não proprietárias. Com o neoliberalismo, as elites abandonaram quaisquer compromissos com a sustentação da democracia, conforme nos alertou o historiador Christopher Lasch (The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy, 1995).

Sem coesão social e política interna, Biden não consegue se apresentar como uma liderança global à altura de suas expectativas e promessas. Os tambores da guerra ecoam pelo mundo e sinalizam que a divisão do país está longe de ter sido mitigada. E que, ademais, as instituições estadunidenses parecem não ter força para conter um futuro ciclo de maior radicalização. Para Larry Diamond: o “… fracasso da democracia americana seria catastrófico não apenas para os Estados Unidos; também teria profundas consequências globais, em um momento no qual a liberdade e a democracia já estão sob cerco.”.

Trump se negou a submergir nas brumas do comedimento esperado para um ex-presidente. Ele já está em campanha e lidera o movimento iliberal estadunidense. Pessoas e instituições que contiveram sua tentativa de golpe em 06 de janeiro são alvos da fúria da extrema direita, inclusive as lideranças mais tradicionais do GOP. Com 74 milhões de eleitores em 2020, Trump obteve o segundo melhor resultado da história no voto popular. Ele logrou consolidar um Supremo Tribunal conservador, controla um dos dois grandes partidos do país e conduz um rebanho imenso de fiéis, os quais acreditam em tudo o que ele diz. A busca de um novo mandato, custe o que custar, está no seu horizonte e nos sonhos de outras lideranças iliberais estadunidenses.

Para os eleitores de Trump, a ciência, a mídia tradicional, os especialistas e as instituições estatais conspiram contra o “cidadão comum”, o “homem de bem”. São parte do “sistema”, da elite que conspira contra o povo. Para a salvar a “sua democracia” e as “suas liberdades”, estão dispostos a pegar em armas. Para os “patriotas” e “democratas” da direita iliberal estadunidense, lutar contra o sistema é um dever, assim como é seu destino seguir o líder que responde pelos seus anseios. As massas rejeitadas pelo neoliberalismo se revoltaram contra a democracia, já há muito abandonada pelas próprias elites. Por isso mesmo, um dos maiores especialistas na análise dos movimentos de extrema-direita, Lawrence Rosenthal, argumenta que o ressentimento é o combustível do populismo tóxico (“Empire of Resentment: Populism’s Toxic Embrace of Nationalism”, 2020). Se ele está correto, quatro décadas de neoliberalismo produziram energia mais do que suficiente para alimentar os conflitos do presente e do futuro.

Nota

[1] Ver: Biden e a rebelião das elites , A marcha da insensatez e As nuvens no horizonte da economia global  

 A versão integral deste artigo está disponível no Portal da FCE-UFRGS

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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