Opinião
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21 de setembro de 2021
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11:01

Pensando sobre o bolsonarismo (por Marcos Rolim)

Por
Sul 21
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Jair Bolsonaro. Foto: José Cruz/Agência Brasil
Jair Bolsonaro. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Marcos Rolim (*)

“O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto ou o comunista dedicado, mas as pessoas para as quais as distinções entre fato e ficção, verdadeiro e falso, não existem” (Hannah Arendt)

“Fomos eleitos com base no ‘Drenem o pântano, prendam Hillary e construam o muro’. Isso era pura raiva. A raiva e o medo é o que leva as pessoas às urnas”. (Steve Bannon)

Qual é a natureza do governo Bolsonaro e o que é o bolsonarismo?  Os analistas políticos brasileiros têm oferecido respostas muito diversas a essas duas perguntas. Conceitos como “populismo”, “autoritarismo”, “neoliberalismo”, “fascismo”, “extrema-direita”, “nacionalismo” têm sido usados de maneira intercambiável. Há um descritério nisso, mas, também a tentativa de apreender fenômenos novos antes que conceitos mais apropriados sejam criados. Caracterizar corretamente os fenômenos políticos é, entretanto, decisivo, porque, se errarmos nesse ponto, não haverá como deduzir uma linha política efetiva.  

Nesse esforço, penso que devemos começar pelo que é próprio do bolsonarismo como movimento – porque foi ele que, por sobre a miséria das análises e estratégias políticas de 2018, conduziu Bolsonaro à vitória eleitoral. 

A primeira característica é que se trata de um movimento articulado pelas redes sociais e por aplicativos que desinformam, sistematicamente e há muito tempo, milhões de pessoas. Nessa construção, uma ideologia de perfil totalitário foi sendo consolidada em nichos diversos, envolvendo militares, policiais, grupos pentecostais, empresários, latifundiários, mineradores, caminhoneiros, clubes de atiradores, grupos neonazistas, entre muitos outros. Emprego o conceito de movimento totalitário a partir de Hannah Arendt, como um tipo especial de organização das massas (contingentes não vinculados a partidos ou a qualquer organização política, formados por pessoas atomizadas), baseado na ideologia e no terror. Percebe-se no núcleo duro do bolsonarismo a disposição de extermínio dos adversários políticos, o que é a primeira condição para a instalação do terror. A situação é ainda mais grave porque o movimento possui amplos contingentes que dispõem legalmente de um arsenal, contando, assim, com uma base armada disponível, fora das instituições, o que constitui ameaça sem precedentes na história brasileira.

O bolsonarismo foi construído como movimento com a renderização de informações pessoais via Internet e seu processamento em Big Data, o que permitiu a customização de mensagens políticas em direção aos perfis influenciáveis em uma escala antes desconhecida para “a transposição do abismo entre a realidade e a ficção” de que nos falou Arendt em “Origens do Totalitarismo”. Sem as modernas Tecnologias de Informação (TI), aliás, um movimento como o bolsonarismo seria impensável hoje. Não foi a tecnologia, entretanto, mas a ausência de regulação e de mecanismos que impedissem a mineração de dados pessoais, como expropriação mesmo, realizada pelas grandes empresas da Internet, que permitiram a construção de um campo político-ideológico em espaços não públicos o que fez com que as divergências não existissem mais sobre a interpretação dos fatos, mas sobre os fatos em si mesmo. Nesse particular, o bolsonarismo é uma expressão política da era do “Capitalismo de Vigilância” descrito por Shoshana Zuboff.

Esse fenômeno subverte completamente o que entendemos por política e relega ao passado todas as formas de organização partidária e de disputas eleitorais. O que ele coloca em curso é o que Giuliano da Empoli, em “Engenheiros do Caos”, chamou de “estratégia centrífuga”, pelo qual diferentes extremismos são galvanizados e, então, somados. Ao invés das estratégias centrípetas que buscavam o centro político para alcançar a maioria, se tornou possível polarizar a partir da soma dos extremos, o que evidencia uma nova lógica de disputas demarcada por algoritmos que conformam bolhas de “interação” em processo de radicalização constante. 

O bolsonarismo possui uma conformação “revolucionária” – no sentido de vocação à ruptura violenta. Esse é um ponto importante para o diagnóstico. O núcleo militante bolsonarista é antissistema e identifica em sua liderança esse compromisso. Pouco importa o quanto Bolsonaro e os políticos que o acompanham sejam expressões da política mais tradicional e da própria corrupção sistêmica que estrutura a política brasileira. O fato é que ele mobiliza todos os valores e noções que identificam no Estado Democrático de Direito o inimigo a ser destruído, uma plataforma que só se transformou em movimento por conta da ausência de reformas que tornassem o Estado mais eficiente, menos corrupto e mais democrático. 

É possível, entretanto, que os valores do bolsonarismo se orientem por compromissos mais regressivos que os discursos antidemocráticos. Nesse particular, o livro “Guerra pela Eternidade”, de Benjamin R. Teitelbaum, é uma referência importante. Ele mostra como os movimentos do que ele chama de “direita radical” são os mais transformadores do século XXI porque são, explicitamente, antimodernos. Vale dizer, a perspectiva desses movimentos – identificados como “tradicionalistas” no sentido da filosofia de René Guénon e Julius Evola – seria a reconstrução de uma “idade de ouro”, berço das condutas virtuosas, por tudo oposta à “idade das sombras” representada pela “modernidade depravada”. A idade de ouro é a dos sacerdotes; a idade das sombras é dos escravos à qual teríamos chegado graças “à democracia e ao comunismo”. O que sugere uma razão pela qual movimentos extremos como o bolsonarismo e o trumpismo apresentam suas proposições em nome da “liberdade” (a liberdade do indivíduo agir sem a presença dos sistemas de controle e regulação, das políticas inclusivas e dos mecanismos de proteção e empoderamento de etnias e grupos minoritários).

Para o tradicionalismo filosófico há outro tema central que é necessidade de superar a laicidade e reverter o recuo da religião pública em relação à razão. Nesse quadro, o negacionismo de Bolsonaro diante das evidências científicas – seja quanto à pandemia, seja quanto ao aquecimento global -, pode ser interpretado em outra chave. Por certo que Bolsonaro nunca ouviu falar nos filósofos tradicionalistas, mas Steve Bannon sabe muito bem o que eles representam; assim como Olavo de Carvalho e Aleksandr Dugin, o perigoso guru de Putin. Para a filosofia tradicionalista, o mundo percorre ciclos, razão pela qual o passado seria, na verdade, nosso futuro.

Outro ponto a considerar é o fato de que Bolsonaro exerce liderança política mobilizadora. Suas características pessoais são tão repulsivas e suas limitações culturais e psicológicas tão evidentes, que somos tentados a menosprezá-lo, o que é um erro crasso. A história está repleta de palhaços que chefiaram nações e produziram todo tipo de maldades com apoio de grandes contingentes da população.  No caso brasileiro, não temos lideranças políticas na oposição ao governo Bolsonaro que sejam, ao mesmo tempo, capazes e dispostas a mobilizar a resistência democrática. Quem está disposto não é capaz, quem é capaz não está disposto. Há, nesse particular, um vazio diante do bolsonarismo em torno do qual é preciso refletir.

Bolsonaro apela diretamente à população, incitando a desobediência e propondo a ruptura com a ordem jurídica; segue praticando uma sequência de outros crimes de responsabilidade e nossas instituições são incapazes de responsabilizá-lo, o que deveria ser suficiente para que estivéssemos propondo uma agenda de reformas capazes de fortalecer a democracia como, por exemplo, mudanças que assegurassem uma composição mais criteriosa para o Supremo Tribunal Federal, novas regras para a abertura de um processo de impeachment e quarentena para ministros, secretários de Estados e Municípios seja para indicações aos tribunais seja para eleições legislativas. O tema da democracia e do funcionamento das suas instituições, entretanto, não anima os partidos e as elites políticas brasileiras, seja porque elas se nutrem dos vícios do sistema, seja porque não atribuem à democracia um valor em si. Perspectivas instrumentais quanto à democracia, como sabemos, seguem sendo muito comuns em diferentes vertentes político-ideológicas, incluindo segmentos da esquerda, o que explica a sabujice diante de ditaduras como as da Venezuela, Cuba e Nicarágua. 

Movimentos político-ideológicos articulados virtualmente podem mobilizar grandes contingentes para manifestações intensas de curta duração, mas possuem dificuldade de construir estruturas organizadas. Quando tratamos de movimentos extremistas, há também a tendência de produção de ações radicais de grupos ou mesmo de indivíduos que operem de forma independente. No caso do bolsonarismo, pode-se observar essa fragilidade e esse risco. A estrutura orgânica necessária para a ruptura, entretanto, existe como potência dentro do Estado brasileiro. Refiro-me às Forças Armadas e às polícias, destacadamente as polícias militares. O que não está claro é qual o nível de adesão que uma aventura golpista poderia encontrar nessas instituições. Por certo, há muitos militares e policiais comprometidos com a democracia, o que não se sabe é qual a força que eles possuem verdadeiramente. No mais, o governo Bolsonaro tem assegurado fartos recursos e distribuído benesses e privilégios aos militares o que sugere a possibilidade de um caminho “chavista de direita”, com a colonização dos demais Poderes e sustentação militar.

Diante dessas e outras características, beira a ingenuidade se cogitar de um processo eleitoral normal em 2022. Tudo leva a crer que teremos uma campanha eleitoral marcada, como nunca, pela violência, retórica e física, com a intimidação de grupos de extrema-direita armados, criando um clima difuso de insegurança, ameaça e caos político; segundo, que a estratégia de disputa com base na mentira alcançará novo patamar com os recursos de deep fake que permitem forjar vídeos e áudios com grande qualidade; terceiro, que Bolsonaro não aceitará os resultados que devem confirmar sua derrota eleitoral, razão pela qual tem implementado uma estratégia de deslegitimação do pleito que lhe assegure a justificativa pública para o autogolpe.  Diante desse quadro, a ideia de que Bolsonaro está “isolado”, de que “o golpe foi derrotado” ou de que a mobilização golpista de 7 de setembro “flopou” favorecem Bolsonaro, porque desarmam a população para a necessidade de se organizar a resistência desde agora com uma frente ampla em defesa da democracia e para pressionar o Congresso e os partidos em favor do impeachment já. 

(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016). Alberto Kopittke é Doutor em Políticas Públicas, diretor executivo do Instituto Cidade Segura

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