Opinião
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10 de agosto de 2021
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13:28

Manifesto: Conselhos em ação

Área de 426 hectares pode virar condomínio com mais de 1.500 casas. Foto: Luciano Pandolfo/Smamus PMPA)
Área de 426 hectares pode virar condomínio com mais de 1.500 casas. Foto: Luciano Pandolfo/Smamus PMPA)

Desde a década de 1930, o Brasil tem adotado uma estrutura normativa de responsabilidades compartilhadas entre o Estado e a sociedade, partindo da concepção de que esta é a forma mais apropriada para a proteção do meio ambiente em suas diversas dimensões.

Mais recentemente, a Constituição Federal de 1988 (Art. 225) e já mesmo antes dela a Lei no 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (Art. 6o), acolheram em seus respectivos textos a concepção de compartilhamento de responsabilidades antes referida, agregando, desta forma, elevada estatura normativa aos conselhos colegiados no âmbito do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA.

Alinhado a esta matriz normativa e valorativa, o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/10, Art. 1o, parágrafo único c/c o Art. 2o, II), enquanto norma de ordem pública e interesse social que regula o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental, consagrou a gestão democrática da cidade como um axioma ao qual o Estado e a sociedade devem obediência. Por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano como uma das diretrizes gerais da política urbana, esta norma deu incontestável efetividade ao princípio democrático (CF/88 Art. 1o). A política urbana, assim, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, ao comando dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal.

Neste contexto normativo-valorativo, a cidade de Porto Alegre entrega ao Conselho Municipal do Meio Ambiente (COMAM) e ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), colegiados de caráter consultivo e deliberativo, a tarefa de cumprir não só o espírito como a determinação e, sobretudo, o projeto de sociedade traçado pela Constituição Federal e a legislação infraconstitucional. Estes órgãos, portanto, tem o dever de cumprir a sua missão enquanto instâncias colegiadas de participação direta da sociedade civil na administração pública municipal (COMAM – artigo 6o da Lei Complementar no 369/1996 e CMDUA – artigos 39 a 41 da Lei Complementar no 434/1999), nos respectivos âmbitos de suas competências.

No entanto, pelo menos do ponto de vista de boa parte da sociedade civil representada nestes conselhos, o espírito da Constituição Federal e das leis antes referidas tem encontrado pouco eco e baixíssima intensidade em sua efetiva aplicação na prática cotidiana destes conselhos. As reiteradas administrações municipais de Porto Alegre não só têm minimizado a importância, como também constantemente invisibilizado e mesmo desqualificado a ação e a legítima representatividade dos movimentos sociais e ecologistas que possuem assento nos COMAM e CMDUA, que acabam por ver suas pautas subestimadas, desvalorizadas e reduzidas a meras sublevações sem causa e propósito.

De outro ponto de vista, tanto o Conselho Municipal do Meio Ambiente (COMAM) quanto o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), carecerem de efetividade no trato dos reais problemas socioambientais da cidade de Porto Alegre, fato que tem origem na falta de compreensão e ação efetivas e profundas para conduzir o seu adequado enfrentamento por parte do poder público. Posturas acríticas praticadas pela administração pública atual, que seguem a linha da anterior, alinhadas aos interesses empresariais em regra inimigos do meio ambiente por desconsiderarem a magnitude dos impactos socioambientais dos empreendimentos urbanos que conduzem, revelam uma conduta descomprometida com a supremacia do interesse público que afronta aos fundamentos que submetem a ordem econômica, a livre iniciativa e a livre concorrência, à defesa do meio ambiente, à valorização do trabalho humano, à existência digna e os ditames da justiça social.

Tais atitudes negam vidência de forma explícita os princípios Constitucionais protetivos do meio ambiente, como já referido, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, bem como da função social da propriedade e redução das desigualdades regionais e sociais, todos alinhados no Art. 170 da Constituição Federal.

A opção míope por um modelo de desenvolvimento calcado no crescimento econômico a qualquer custo, infinito e sem limites, que na opinião unânime da comunidade científica mundial é a causa determinante da destruição do planeta, mostra-se hoje hegemônica na cidade de Porto Alegre. Esta opção do administrador público, para além de um descompasso com o que há de mais avançado em termos de modelagem de preservação e salvaguardas socioambientais em escala global, demonstra atraso, desinformação e obscurantismo epistemológico e político. Tratar a natureza como um estoque de recursos a ser indefinidamente apropriada em nome da mais valia, definitivamente é a pior opção em um cenário de sexta extinção em massa (vide o conceito de Antropoceno).

Dentre os empreendimentos urbanos mais questionáveis, sem prejuízo de outros, ganham relevo, para citar apenas alguns, o projeto de urbanização da Fazenda do Arado Velho, da Orla do Guaíba, o Cais do Porto, o Golden Lake, o Belvedere e o Inter Gigante para Sempre. Via de regra, estes negócios tem sido tratados de forma sempre mais protetiva e vantajosa aos interesses do empreendedor, sem que seja realizado um debate prévio com a sociedade sobre a sua necessidade e implicações para o interesse público. Por outro lado, não tem lugar o debate crítico sobre os efeitos a curto, médio e longo prazos destes projetos, que deixam de ser avaliados de forma criteriosa e cautelosa a partir da perspectiva da amplitude dos riscos envolvidos e de suas consequências socioambientais. Neste contexto, o direito à cidade e sua gestão democrática, entendida esta enquanto complexidade viva, tem sido um pressuposto normativo igualmente violado.

Tal procedimento tem sacrificado não só o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, como os interesses da cidade e de sua população – sobretudo a parcela mais pobre e necessitada. Como já referido mas nunca será demais repetir, posicionamse os interesses da livre iniciativa e da livre concorrência em sobreposição ao princípio constitucional da proteção do meio ambiente, em flagrante desrespeito ao inciso VI do Art. 170, combinado com o artigo 225, caput, ambos da Constituição da República.

Um exemplo concreto que vivenciamos trata do futuro da Fazenda do Arado Velho, localizada no bairro Belém Novo, região do Extremo Sul de Porto Alegre. Essa área de 426 hectares – que equivale a onze vezes o parque da Redenção – possui riquíssima biodiversidade, áreas legalmente protegidas como banhados, várzeas e matas nativas com comprovada circulação de animais em risco de extinção. O local também abriga sítio arqueológico pré-colonial tombado pelo IPHAN e a Retomada Mbyá-Guarani que demanda a demarcação da área como terra indígena. Em suma, uma imensa área que constitui patrimônio material e imaterial único e insubstituível da cidade é alvo cobiçado pela especulação imobiliária, que insiste em alterar o regime urbanístico da fazenda com objetivo de ampliar a capacidade de urbanização do local. Faz praticamente uma década que a sociedade civil vem enfrentando a inescrupulosa iniciativa de expandir a urbanização sobre áreas ambientalmente relevantes e imprescindíveis para as atuais e futuras gerações de porto-alegrenses. Após duas tentativas ilegais (em 2015 e em 2020) de adaptar as regras da cidade aos interesses da empresa proprietária da fazenda, atualmente vivenciamos nova ofensiva, desta vez encabeçada pela gestão municipal ao ignorar a vontade popular para criação de uma Unidade de Conservação na Fazenda do Arado Velho e assim promover o efetivo desenvolvimento sustentável da região.

Outro exemplo é o Cais do Porto, sua recuperação e utilização. Localizado no centro histórico, o segmento portuário conhecido como Cais Mauá há décadas não tem recebido manutenção, apesar de inúmeros projetos terem sido apresentados e de usos que se tornaram emblemáticos, como a Feira do Livro, a Bienal do Mercosul e o Fórum Social Mundial, demonstrando a vocação do lugar. Seus armazéns foram tombados pela União e pelo Município, por sua importância histórica e cultural, e o porto constitui-se o local de nascimento da cidade, dando-lhe o nome. Ainda assim, este ícone de Porto Alegre encontra-se constantemente em perigo de descaracterização e privatização, por sua localização privilegiada às margens do Guaíba e Delta do Jacuí, bem como pela edificação e implantação de empreendimentos imobiliários. No último projeto de revitalização apresentado, havia a previsão da construção de torres comerciais e de um centro comercial, esse a ser construído próximo à Usina do Gasômetro e às custas da demolição de um dos armazéns. Houve uma grande mobilização popular contrária a esta proposta de ocupação, o que, mais do que tudo, demonstrou que os cidadãos e cidadãs não tem sido ouvidos pelos seus representantes. O contrato para a execução desse projeto acabou sendo rescindido pela atual administração estadual, por conta das inúmeras irregularidades e ilegalidades, diga-se, que já haviam sido apontadas pela comunidade, mas que não encontraram apoio em conselhos municipais que, não obstante a sua relevância e importância, deveriam ser conduzidos de forma a empenhar-se em representar a sociedade e o interesse público. Agora, estamos frente a uma nova proposta de intervenção no cais, na qual há inclusive a possibilidade de lotear e vender parte de nosso patrimônio público e cultural.

Tal contexto tem tornado não só enfraquecida como sobretudo esvaziada a necessária conexão da administração pública com a sociedade civil, razão de ser que caracteriza, justifica e dá sentido ao Conselho Municipal do Meio Ambiente (COMAM) e ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA). Por outro lado, tem se mostrado recorrente a prática de ações de cunho antidemocrático, e por vezes persecutório, por parte da atual administração municipal em relação aos movimentos sociais e ecológicos que atuam no COMAM e o CMDUA, a merecer nosso repúdio.

Este modus operandi que tem negado concretude ao princípio democrático, acaba por bloquear e mesmo frustrar a crítica social propositiva, tão necessária para enfrentar com eficácia os desafios da já hipercomplexa crise socioecológica que vivenciamos. Nunca será demais referir que os movimentos sociais e ecologistas são portadores de muitas das chaves para a superação dos desafios históricos da maior parte dos gravíssimos problemas que vivemos no cenário contemporâneo.

A partir desta conjuntura, entendendo que não há mais tempo a perder para o seu efetivo enfrentamento, resolvemos agir. A articulação Conselhos em Ação que ora trazemos a público, nasce como uma coalizão de movimentos sociais, ecologistas e forças populares, todas com assento no Conselho Municipal do Meio Ambiente (COMAM) e Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), como forma de concretizar um espaço de reflexão crítica, produção científica, intervenção propositiva concreta e empoderamento sociopolítico.

Portanto, por meio do presente Manifesto, esta coalizão se propõe a fazer frente aos desafios comuns no âmbito dos respectivos colegiados que integram (COMAM e CMDUA), projetando alternativas efetivas de enfrentamento da crise socioecológica urbana contemporânea, em seus diversos planos, lutando pelo respeito radical ao princípio democrático assegurado na Constituição Federal e nas leis da República, além de estabelecer forte conexão e articulação para a troca de experiências e estratégias de ação conjunta com os demais conselhos municipais da cidade de Porto Alegre. Vamos à luta!!!

Assinam

Entidades com assento no COMAM e CMDUA

01. Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA/Guaíba)

02. Acesso Cidadania e Direitos Humanos (ACESSO)

03. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (ABES-RS)

04. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES/RS)

05. Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN)

06. Central Única dos Trabalhadores (CUT/RS)

07. Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS (CAU/RS)

08. Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/RS)

09. Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH)

10. Orçamento Participativo (OP)

11. União das Associações de Moradores de Porto Alegre/RS (UAMPA)

12. Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS)

13. Sociedade de Economia do RS (SOCECON RS)

Regiões de Planejamento com assento no CMDUA

14. Região de Gestão de Planejamento bairros Centro Histórico, Marcílio Dias, Floresta, Centro,Auxiliadora, Moinhos de Vento, Independência, Bom Fim, Rio Branco, Mon’t Serrat, Bela Vista, Farroupilha, Santana, Petrópolis, Santa Cecília, Jardim Botânico, Praia de Belas, Cidade Baixa, Menino Deus e Azenha (RGP 1)

15. Região de Gestão de Planejamento bairros Farrapos, Humaitá, Navegantes, São Geraldo, Anchieta, São João, Santa Maria Goretti, Higienópolis, Boa Vista, Passo D’Areia, Jardim São Pedro, Jardim Floresta, Cristo Redentor, Jardim Lindóia, São Sebastião, Vila Ipiranga, Jardim Itú, Jardim Europa e Arquipélago (RGP 2)

16. Região de Gestão de Planejamento bairros Três Figueiras, Chácara das Pedras, Vila Jardim, Bom Jesus, Jardim do Salso, Jardim Carvalho, Mário Quintana, Jardim Sabará e Morro Santana(RGP 4)

17. Região de Gestão de Planejamento bairros Cristal, Santa Tereza, Medianeira, Glória, Cascata e Belém Velho(RGP 5)

18. Região de Gestão de Planejamento bairros Santo Antônio, Partenon, Aparício Borges, Vila João Pessoa, São José, Lomba do Pinheiro, Agronomia, Morro Santana e Pitinga (RGP 7)

Entidades apoiadoras

01. Assembleia Permanente das Entidades de Defesa do Meio Ambiente do RS (APEDEMA)

02. Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (INGÁ)

03. Núcleo Amigos da Terra Brasil (NAT)

04. Sindicato dos Economistas do Rio Grande do Sul (SINDECON RS)

05. Marcha Mundial das Mulheres (MMM)

06. Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul (NEJ)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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