Opinião
|
1 de julho de 2021
|
15:07

Um livro que une a academia e as realidades da população de rua (por Ana Carolina Mattos)

Divulgação: Editora Appris
Divulgação: Editora Appris

Ana Carolina Einsfeld Mattos (*)

“Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!” Gosto de pensar meu caminho acadêmico e profissional antes e depois dessa frase, rodeada de significados, que acima de tudo, trouxe um sentido na minha formação e atuação como nutricionista social. Durante a jornada da graduação, muito ouvi a frase “você é o que você come!”, e ela traduz uma formação focada nos nutrientes, no corpo enquanto componente biológico e na experienciação endurecida da nutrição, que colabora com o mercado ao assumir a ideia de um corpo perfeito, de um regramento alimentar e de uma não compreensão da totalidade que o ato de comer exerce no âmbito da vida. Não sou esteticista, não vejo um corpo e não prescrevo alimentos! Sou Ana, mulher, nutricionista, vejo pessoas, considero vidas nas suas plurais dimensões de realidade e falo de fome!

O livro “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!”, escrito por mim- @anacemattos, e lançado pela editora APPRIS, tem sido o fio condutor entre meus escritos acadêmicos e uma militância política. A obra é resultado da minha dissertação de mestrado sob orientação do professor Dr. em História Solon Viola. Como uma nutricionista pesquisadora, provoco também que esse livro atenta para diferentes provocações do obscurantismo e, para tanto compreender que recusar a pluralidade do pensamento, sonegar os recursos para a pesquisa, são políticas que ampliam os preconceitos, impedem direitos e reduzem o pensamento a uma dimensão simplória. Eu enquanto bolsista CAPES, pude me experenciar como uma pesquisadora em produção da conscientização, a partir da realidade. Na premissa de que ao assumir a conscientização moldo minha humanização. A importância de o ensino estar atrelada aos espaços de controle social e protagonismo popular.

O tema da fome atravessa a história das comunidades brasileiras e nestes inícios do século XXI – é uma questão em alta que desafia o cenário brasileiro a travar medidas urgentes para enfrentar situações indignas de vida. A fome que em vários períodos históricos – tão esquecida de si mesma, talvez por uma complexidade de propor soluções, se manteve silenciada. A fome é mais que uma questão exclusiva da população de rua, que escreve em busca de superar os limites de sua forma de viver. Limites que a humanidade pretendeu superar e permanentemente serviu à elaboração de críticas aos sistemas que não conseguiram responder uma condição de vida digna para todos. Críticas muitas vezes limitadas a simples constatação dos problemas, mas, outras tantas vezes, propositivas como aquelas do século XVIII quando o pensamento liberal – ainda em sua dimensão revolucionária – anunciava um novo modelo de organização sociopolítica no qual os seres humanos poderiam sonhar em ser livres iguais e fraternos. O ineditismo está em mostrar as imensas desigualdades sociais travados no século XXI, a problemática da fome abordada em plena contemporaneidade pelo crescimento gigantesco da pobreza e da miséria, exigem novas respostas aos dramas contemporâneos. Tempos como o que vivemos exigem das ciências humanas uma dedicação rigorosa em busca do conhecimento, a ousadia de traçar caminhos de aproximação e a ir além dos limites estabelecidos pelos pioneiros do século XVIII e XIX, e mesmo dos significativos avanços das análises do século XX. Tratar a fome a partir da presença de pessoas em condição de rua é inédito.

A abordagem empregada no livro, não se protege das densas neblinas que, com frequência constante, acobertam o desvendar desse grave problema. O livro busca respostas especialmente no campo das ciências sociais, mas incorpora dimensões históricas e das ciências políticas. Compreendo que a fome não se reduz a quem a sofre. Tem uma raiz social, uma herança histórica e uma organização política que lhe dá origem, que a preserva e que torna extremamente difícil superá-la.

O livro possui uma dimensão que vai além da academia. Tem suas raízes profundamente fincadas no solo fértil da realidade social. Embora desvele uma realidade que normalmente está esquecida – que “some” – de uma cidade do sul do Brasil, a abrangência do tema é sem dúvida internacional. O livro foi construído a partir do diálogo com a rua, e conforme diz Nilson Lopes na apresentação do Livro, ele que é representante do coletivo população de rua do município de São Leopoldo/RS : “A fome é a maior violência que se pode submeter um ser humano e nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e em um sentido tão nocivo quanto à fome. Eu sou a própria fome! Sou a fome personificada, porque a fome não está apenas no meu corpo, mas ela está na minha alma, na minha genética, na minha ancestralidade, portanto ela está em todas as dimensões da minha existência. Sou o personagem central da literatura elaborada e apresentada pela Ana Carolina, autora desta obra, e digo que os famintos do mundo precisam de mais “Anas Carolinas”, pois o espaço universitário é o lugar apropriado para denúncias e implorar para que alguma coisa seja feita urgentemente para se resolver o problema da fome. Um espaço que forma profissionais técnicos, por meio da ciência, deve também formar a consciência crítica dos seus alunos, assim como a consciência de classe, de formar seres humanos completos e não apenas formar profissionais que vão atender uma demanda do mercado de trabalho. A academia aborda o problema da fome e da miséria de forma muito suave e superficial. O tema da desigualdade social precisa de uma reflexão profunda de toda sociedade, para tanto a academia deve ir para a rua!”

A literatura científica tem abordado a temática da fome, sem dúvidas, e diversos estudos estão discriminados no livro, comprovando as investidas acadêmicas ao tema da fome. Mas, o estudo da fome atravessa diferentes projeções, pois a fome afeta de forma distinta àqueles e àquelas ao qual se depara. Tratar a fome no âmbito mais extremo que se pode imaginar em pleno século XXI nos faz perder de vista os limites possíveis para se conviver com a fome. Logo, se para as populações de rua conviver com a fome é uma condição do cotidiano, uma experiência constante de suportar a fome de alimento, mas também de moradia de saúde, de educação e de políticas públicas exige não só conhecimento prévio, mas também um envolvimento proximal. Exige, também, tecer saberes de diferentes áreas – sociologia, história, ciência política, ciências da saúde, literatura – e a audácia de construir seus saberes com uma metodologia que considere possível conviver com os pesquisados e deles conquistar a confiança e o respeito de modo que a formulação teórico-crítica se embasa na observação do cotidiano e na escuta atenta daqueles que vivem, cotidianamente, a dor e a perda das relações e dos companheiros de vida.

A grande pergunta: como é percebida a alimentação por quem se encontra em situação de rua? É de fato entendida como um direito? Para isso, é necessária outra pergunta: os indivíduos em situação de rua utilizam a alimentação no exercício cidadão de um direito próprio do ser humano? Penso que uma forma usual se torna cada vez mais cultural, em que a alimentação perde seu contexto de direito, pairando a caridade e a benevolência alheia.

Para responder, foi necessário um amplo referencial teórico, e para entender um tecido social doente e suas múltiplas causalidades é necessário discutir situação de fome. Obviamente o mal do século na área da nutrição é trabalhar a obesidade e o sobrepeso como um problema de saúde pública, contudo, a importância em discutir um tema caro para nutrição, falar de fome em pleno século XXI parece andar para traz, entretanto a fome não é um tema antigo em que hoje sua superação paira um retrocesso, a fome na verdade nunca foi sanada e embora tenhamos autores importantes frente ao tema, assim como algumas estratégias em prol do enfrentamento, de fato é um tema mais silenciado do que discutido.

Tomando o cenário atual de uma calamidade pandêmica, é correto dizer que a fome torna-se um dos temas contemporâneos que está mais em alta, isso quer dizer que em plena pandemia os problemas relacionados à ocorrência da fome são agravados, com reforço nas desigualdades sociais, a crescente progressão da miséria, do desemprego, da exclusão social, entre outras questões que evidenciam as dificuldades de acesso à alimentação e na garantia de vida saudável das pessoas e das comunidades.

A mídia e os noticiários que abordam a fome e a situação de rua estão presentes no livro. Nos anexos é possível analisar as notícias que saíram na mídia no espaço de tempo da produção escrita. São reportagens que envolvem tanto a população em situação de rua, quanto à alimentação como discussão em sociedade. Essas notícias reportam não somente a ocorrência de diversas situações relacionais à temática deste livro, como também a forma como o tema tem sido discutido no campo social. Importante perceber que entre tantas reportagens violentas, existe, por outro lado, um pano de fundo que expressa as diversas resistências.

Já a mídia cientifica trata, por sua vez, a fome em ciclos, um cenário de avanços técnicos e práticos no estabelecimento das políticas públicas de superação da fome. Ela demonstrou que em 2014 o Brasil havia saído do Mapa da Fome após reduzir em 82,1% o número de pessoas que passavam fome – Mapa mundial desenvolvido pela Food and Agriculture Organization desde 1991 que dimensiona os países que passam fome. Estudos da FAO anunciaram em 2018 a necessidade de medidas urgentes para travar a corrida do retorno do Brasil ao mapa da fome. Em 2019 dados da Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018 (POF) vieram confirmar o retorno do Brasil ao mapa da fome, apresentando que o país aumentou em 43,7% o número de pessoas em insegurança alimentar grave, ou seja, em situação de fome. Os dados da POF, entretanto, contabilizam domicílios, pessoas em condição de rua não compõe a soma apresentada, o que faz imaginar um aumento ainda maior. E em 2021 dados bastante recentes do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), apontou que, ao final de 2020 já se somava 19,1 milhões de brasileiros sofrendo com o mal da fome, 9% da população brasileira sem acesso regular e permanente a alimentos.

O objetivo máximo é que este livro se torne currículo para os cursos de nutrição e saúde, a fim de formar profissionais, e seja apreciado de maneira construtora de novas formas de pensar. Que ele sirva para a academia, e que façam dele um instrumento de aprendizado, porque dele terão conceitos reais. Espero profundamente uma apreciação deste livro como uma possibilidade de construir diálogos, como um elo entre as teorias acadêmicas e as realidades para além dos muros institucionais, como um chamamento a escuta, como um incentivar de práticas cidadãs, como um ato manifesto a todos os retrocessos incumbidos na promoção de uma vida digna. Que este livro expresse possibilidades, que recrie os discursos, que fortaleça práticas de cuidado, que instigue justiça social e que faça ecoar as diversas vozes aqui presentes em prol da alimentação como um ato político. Meu desejo com este livro não é tímido, muito menos utópico, porque acredito que é possível sermos transformadores no mundo!

Ainda é importante informar que o percentual de coparticipação do lucro advindo das vendas do livro que pertence a autora, estará sendo destinado para o coletivo População de Rua do município de São Leopoldo, por meio da Associação de usuários de saúde mental – Criativizando. Essa estratégia segue o objetivo fim dessa publicação, de fortalecer o coletivo e promover oportunidades de ações. O valor das vendas contribuirá para a redução de danos do coletivo, para a inscrição dos integrantes em processos educativos, seja em cursos profissionalizantes e/ou retorno as aulas regulares, para um processo de geração de renda, e para a continuidade de uma horta urbana construída pelo coletivo.

(*) Ana Mattos é Nutricionista Social; Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional UNISINOS; Mestra em Ciências Sociais; Presidenta do COMSEA- Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Leopoldo, e Doutoranda em Políticas Públicas UFRGS, com interesse de pesquisa frente a situação de rua, fome, desigualdades sociais, políticas Públicas de combate a fome, direito à alimentação, segurança alimentar, controle social e na perspectiva da emancipação via reconhecimento de direitos.

Interessados em adquirir o livro podem acessar a Editora Appris (@editoraappris)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora