Opinião
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27 de julho de 2021
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10:07

Razões econômicas para o veto ao ensino domiciliar (por Marcelo Milan)

Foto: Jorge Araujo/Fotos Publicas
Foto: Jorge Araujo/Fotos Publicas

Marcelo Milan (*)

A decisão do executivo gaúcho de vetar o PL 170/19 sobre o ensino domiciliar (homeschooling no inglês neocolonial) foi acertada. Além da justificativa jurídica que fundamentou a interdição pelo Piratini, educadore(a)s apresentaram fortes razões pedagógicas para rechaçar a proposta. E existem também motivações de ordem econômica para o veto, como se discute a seguir. 

Antes de arrolar estes argumentos, cabe uma nota de advertência. Não sou conhecedor de questões envolvendo a economia política da educação. Em contribuição anterior para este Sul21, apresentei aspectos associados à divisão do trabalho que considero relevantes para falar com alguma propriedade sobre assuntos complexos como a educação. O mais próximo que cheguei deste tema foi por meio da leitura de um livro escrito em 1976 por meu ex-professor de economia na Universidade de Massachusetts, Samuel Bowles. O livro Schooling in Capitalist America: Educational Reform and the Contradictions of Economic Life se tornou uma obra muito conhecida e gerou muitas controvérsias (embora, na minha opinião, um outro artigo dele, de 1975, seja mais importante, por defender a irrelevância do conceito de capital humano como termo substituto para a educação ou formação). Quanto às questões pedagógicas, durante o período em que lecionei economia na Universidade de Wisconsin pude contribuir com um capítulo para um livro sobre os desafios da diversidade no ensino superior, Diversity in the College Classroom: Knowing Ourselves, Our Students, Our Disciplines, que seria publicado anos depois. Assim, a divisão técnica do trabalho requer um conhecimento detalhado sobre dados educacionais, organização do trabalho no ensino básico, evolução institucional, políticas educacionais, questões sobre aprendizagem, transformação das capacidades individuais etc., que não possuo. A exposição a seguir precisa ser tomada cum grano salis, portanto.

É trivial apontar que as instituições de ensino e o sistema educacional vêm se transformando desde que surgiu a primeira escola sobre a qual se tem notícia, 2.000 anos AEC. E estas mudanças não representam apenas avanços. Se na Era de Péricles (455-431 AEC) as cidades-estado gregas já dispunham de sistemas escolares, e as escolas Romanas desenvolvidas entre 200 e 50 AEC proporcionavam educação primorosa (para uma minoria), na Era das Trevas a cultura greco-romana e a educação conheceram retrocessos. O elemento importante para a discussão em tela, contudo, é a oposição polis-oikos da sociedade grega. A Polis enquanto cidade, espaço público para discussão Politika e interação sobre os seus assuntos, e a Oikos enquanto vida privada, do lar. A propósito, a palavra economia vem do grego oikonomos (administração do lar). O ensino domiciliar representa um retorno ao oikos na dimensão educacional, mas sem muita sustentação econômica ante a consolidação da educação de massas dos últimos dois séculos, com a urbanização e a secularização. 

Uma crítica econômica ao ensino domiciliar já foi levantada: as despesas com a administração de testes de comprovação de absorção de conteúdo para quem não frequentar as escolas. Contudo,  taxas poderiam cobrir tais gastos. Os elementos econômicos mais importantes dizem respeito ao custo por estudante e ao conteúdo lecionado em termos de divisão social e técnica do trabalho (neste caso há importante sobreposição das questões econômicas com as pedagógicas).

Para ilustrar o primeiro aspecto, tome-se como exemplo a escola privada, na qual o ensino assume a forma de mercadoria (e que poderia ser mais afetada pelo ensino domiciliar). Analisando da perspectiva da produção de serviços educacionais, uma parte do dinheiro investido é paga para o(a)s educadore(a)s e equipes de apoio na forma de salários. Há investimento de outra parte do dinheiro em capital fixo, com as instalações feitas para abrigar crianças e jovens nas atividades pedagógicas, culturais e de práticas esportivas. A depreciação deste capital é diluída pelo número de estudantes (e o tamanho ideal da sala de aula do ponto de vista econômico possivelmente é maior que o número ideal de estudantes do ponto de vista educacional e logo do valor de uso efetivo gerado pelo trabalho na educação). Quanto menor o tamanho, maior o custo unitário. Uma outra parte do dinheiro se transforma em capital circulante, com materiais didáticos diversos, alimentação, água, eletricidade etc. O ensino domiciliar redireciona parte dos estudantes para fora deste sistema de geração de valor, elevando a ociosidade e logo os custos unitários da produção, embora reduzam despesas de transporte escolar. Analisando a questão do ponto de vista do consumo desses serviços mercantilizados, o mesmo valor de uso criado diretamente pelo trabalho do(a)s educadore(a)s e das equipes de apoio se distribui de forma coletiva entre o corpo discente. O mesmo valor de uso é consumido simultaneamente pelo(a)s aluno(a)s. A educação de massa é assim muito mais econômica. Para não mencionar o que a economia da proximidade e das aglomerações permitem, como facilitar o transbordamento de conhecimentos e experiências.

Há uma questão potencial de escala de produção, portanto. E se o argumento da escala não se aplica aqui porque seriam pouco(a)s estudantes no ensino domiciliar, não afetando a estrutura de produção educacional vigente, nem os custos correspondentes, então não faz diferença legislar sobre o assunto. Aqui se mostra a necessidade de levantamentos estatísticos sobre público atual e público potencial do ensino domiciliar. Se o público for relevante do ponto de vista quantitativo, contudo, o modelo contribuiria para diminuir a efetividade na produção regular de serviços educacionais por estudante. O ensino domiciliar, no mínimo, duplica desnecessariamente o processo de geração destes valores de uso para alcançar um(a) estudante que poderiam absorver, sem vazamentos, o mesmo valor em uma escola regular. O ensino domiciliar é redundante e mais caro, portanto. A ociosidade aumenta e reduz a efetividade do ensino no sistema tradicional, sem garantia de qualidade na modalidade domiciliar, como se argumenta abaixo. Um possível jogo de perde-perde.

O mesmo argumento de escala e consumo coletivo (ou em grupo) se aplica com relação ao sistema público de ensino, com a diferença que não há excedente de valor apropriado de forma privada e o muda o nexo contrato de aquisição-consumo do valor de uso. No modelo privado, os pais contratam das instituições educacionais as mercadorias produzidas nas escolas pelo(a)s educadore(a)s assalariados que serão consumidos pelo(a)s filho(a)s. No sistema público, o contrato é de mutualização, com os contribuintes proporcionando de forma difusa a arrecadação ao Estado para construir escolas e contratar o trabalho do(a)s educadore(a)s que serão consumidos pelo(a)s estudantes. Neste aspecto contratual, o ensino domiciliar promoveria a desmercantilização da educação, mas não pela expansão do ensino público.

O segundo elemento remete à divisão social e técnica do trabalho aludida acima, e envolve uma maior complexidade. Diferente do oikos, as escolas são instituições estruturadas e especializadas, isto é, onde são exercidos trabalhos concretos, especializados, da mesma forma que em hospitais, companhias de teatro, tribunais etc.  Um aspecto desta dimensão se refere ao tempo de trabalho. O exercício de outra função principal na divisão social do trabalho reduz o tempo e a energia para se dedicar ao ensino domiciliar. Para ser efetivo, um dos pais teria de dedicar uma boa parte do seu tempo para a educação, pelo menos o mesmo tempo que seria despendido pelo(a)s estudantes na escola. Esse trabalho seria muito provavelmente feito pelas mulheres, dada a divisão sexual do trabalho. Qualquer que seja a pessoa, a capacidade e a estrutura de ensino seria muito reduzida frente ao sistema educacional. E com o agravante de que o perfil das famílias que poderiam concretizar o ensino domiciliar seria restrito, retirando o caráter universal do mesmo: Pais com baixos índices de alfabetização não poderiam ensinar. No caso do ensino médio, a diferença entre ensino amador e profissional seria substancial, dado o conhecimento especializado envolvido. Na escola, química e história, por exemplo, são ministradas por educadore(a)s com formações específicas e imbuídas de um forte compromisso profissional, caracterizada por disciplina da jornada e preparo psicopedagógico. O ensino domiciliar desvaloriza o trabalho profissional do(a)s educadore(a)s e o substitui por trabalho potencialmente despreparado e desqualificado.

Privar estudantes do trabalho especializado de uma equipe multidisciplinar representa uma evasão escolar imposta. E que não é resolvida com um teste de conteúdo concentrado em um ponto do tempo. A avaliação seria apenas pelo resultado em termos de conteúdo, deixando de considerar a qualidade do insumo trabalho, a trajetória emocional e cognitiva do(a)s estudantes e o papel das organizações criadas para educar. Um acompanhamento contínuo e periódico, que identifica dificuldades e propõe soluções baseadas em pesquisas, estruturando estratégias de comunicação de conteúdo, para além de cultivar empatia, é insubstituível. Como alguém sem qualificação e preparo pode levar jovens e crianças a um nível de excelência com base em um único teste? Um dos efeitos da pandemia foi justamente mostrar como, em função do isolamento, pais pseudo-professore(a)s tiveram dificuldade de ensinar. Algumas anedotas são úteis para ilustrar o problema potencial associado à divisão do trabalho. Por exemplo, um ex-político de toga de Curitiba ensinando em casa: “vamos soletrar cônge”… “Agora nossa aula de inglês neocolonial no sistema ‘rome xulingui’: O professor Bowles leciona em Maxaxuxes”. Ou um ex-Ministro da (des)Educação: “vamos ler o famoso autor xeco Frãs Kafta”… “e agora um ditado: çoletrem ‘imprecionante’”.

A falta de qualificação poderia ser minorada por um modelo de preceptor do século XVIII (domiciliar mas não familiar), nos moldes da relação entre Adam Smith e o Duque de Buccleuch.   Mas esse modelo não resolveria a questão da divisão do trabalho. Mesmo um pensador do quilate de Smith teria limitações frente ao estoque de conhecimento acumulado até hoje para proporcionar uma formação minimamente satisfatória. Um bom tutor precisaria conhecer toda a base curricular com propriedade (com, pelo menos, umas cinco ou seis licenciaturas…). Se for necessário mais de um tutor para complementar a grade curricular mínima, o elemento custo unitário aumenta consideravelmente, mesmo com a revolução telemática em curso. Aqui uma outra questão poderia remediar a falta de qualificação do ensino domiciliar e mesmo reverter parcialmente a desmercantilização: o surgimento de agências intermediadoras. Os potenciais ganhadores seriam então os preceptores ou as agências intermediadoras. Todavia, quem seriam os preceptores? Educadores desempregados? Professores já contribuindo para o trabalho social total, mas em busca de complementação salarial? O modelo não seria contraposto à divisão social do trabalho, mas colocaria a questão do trabalho exercido de forma residual e sua perda potencial de qualidade.  

Para além da questão da transmissão do conhecimento legítimo, o ensino domiciliar facilita potencialmente a difusão do negacionismo, terraplanismo, fanatismo religioso … que nada mais são que ignorância por opção no caso das populações adultas. O que não está impedido com o atual modelo escolar. Mas neste pelo menos há possibilidade de identificação e imunização contra a fraude. Ainda assim, por que possivelmente submeter jovens e crianças ao charlatanismo, a valores de desuso, para não mencionar o possível futuro surto de sociopatia, privando-o(a)s de aprendizado em sociedade? A proposta aponta desta forma para retrocessos na forma de sociabilidade, dando ao ensino um sentido fundamentalmente antissocial. É possivelmente anti-iluminista e pré-moderno, uma volta ao modo de produção doméstico da idade média, com a indiferenciação entre espaço de trabalho e espaço de consumo. Remete ao passado longínquo do oikos, não ao futuro da polis transformadora. 

O ensino domiciliar, assim, é um anacronismo econômico em uma sociedade que funciona em redes poliárquicas caracterizadas por uma interdependência complexa entre educadora(e)s, profissionais de apoio, estudantes, instituições sociais e familiares. O ensino domiciliar promove o oikos e assim fragmenta os elos da rede e produz pontos atomizados, desconectados, sendo pobre em inter-relações e trocas, a um custo econômico e cognitivo elevado. O veto ao projeto se mostrou acertado.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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