Opinião
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18 de julho de 2021
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09:22

Já passou da hora de virar a mesa! O Brasil precisa de um Ministério da Alimentação (por Paulo Niederle)

Alta nos alimentos ajuda a elevar inflação. Foto: Tony Winston/Agência Brasília
Alta nos alimentos ajuda a elevar inflação. Foto: Tony Winston/Agência Brasília

Paulo Niederle (*)

O recrudescimento da crise alimentar (inflação, fome, má nutrição, insegurança alimentar) na “sociedade do agro” não deixa dúvidas de que profundas mudanças precisam ser realizadas no Estado brasileiro. Essas mudanças passam não apenas pela criação de novas políticas e institucionalidades, mas pela reforma radical daquelas atualmente existentes. Arrisco dizer que já não existem justificativas críveis para termos o atual Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Por que? Primeiro, porque a grande maioria dos recursos destinados às atuais políticas agrícolas  privilegia a produção de commodities para exportação. Essas políticas que promovem a “indústria riqueza do Brasil” abarcam basicamente instrumentos de crédito e subvenção operados por intermédio do setor financeiro. Portanto, poderiam ser geridas por uma secretaria do Ministério da Economia ou da Indústria e Comércio. Elas não justificam a existência de um ministério específico.

E as políticas de abastecimento? Todos sabem que a coalizão política à frente da pasta da Agricultura (e não é de hoje) não tem nenhum interesse em fortalecer as políticas de abastecimento. Nunca fez parte da agenda neoliberal ampliar a capacidade do Estado para regular estoques e preços de alimentos. Isso explica porque a Companhia Brasileira de Abastecimento (Conab) tem sido desmantelada e, indiretamente, explica porque os índices de fome e insegurança alimentar se agravam no país.

E as políticas para a agricultura familiar? Com exceção do Pronaf, que também se tornou basicamente um crédito bancário subsidiado que privilegia as commodities de exportação, as políticas para a agricultura familiar seguem o mesmo caminho das políticas de abastecimento, ou seja, estão sendo amplamente desmanteladas. Aliás, embora a propaganda não comente, mas esta é mais uma razão para o flagelo da fome voltar a assolar milhões de brasileiros, enquanto o agro segue batendo recordes de produtividade.

Esses e outros motivos levam à necessidade de construir espaços e institucionalidades (ministérios, secretarias, conselhos, políticas) para tratar de maneira séria e definitiva o tema alimentar – que, ademais, me parece mais relevante do que comemorar o primeiro lugar nas exportações de soja, açúcar, café ou carne. Sinceramente, não me importo com o vice campeonato na exportação de carne, nem mesmo se perdermos para a Argentina, desde que terminemos com este 7×1 na batalha contra a fome.

Por que não pensar, portanto, em um Ministério da Agricultura e Alimentação? Na verdade, gosto desta ideia. No entanto, a experiência histórica das políticas de abastecimento sugere que há uma grande chance de a alimentação nunca ganhar a devida atenção. A trajetória institucional do Ministério da Agricultura (as ideias, representações e práticas rotinizadas dos seus gestores) me deixam um pouco reticente sobre o caminho mais simples: a inclusão do tema alimentar em um espaço dominado pelo agrícola.

É por isso que tenho dito que adaptações pontuais não são suficientes. É necessário virar a mesa. Não se trata nem mesmo de colocar uma nova mesinha ao lado da grande mesa onde sentam as lideranças do agro, aproveitando um banquete farto de subsídios que alimentam as contas de poucos. A concentração dos recursos do crédito rural é estarrecedora.

Fazer da alimentação uma preocupação de um Ministério do Desenvolvimento Social também não me parece suficiente. Neste caso, a questão não é a falta de recursos. O problema é que não faz sentido criar políticas alimentares para sanar problemas gerados pela inadequação das políticas agrícolas. É necessário que as políticas agrícolas também respondam de maneira coerente a uma estratégia alimentar integrada.

Há muito tempo sabe-se que o problema não é falta de produção agrícola. Trata-se, antes de tudo, de garantir o acesso a alimentos saudáveis e sustentáveis para toda a população – até mesmo porque, junto com a fome, o excessivo consumo de alimentos ultraprocessados tem gerado uma crise de saúde pública igualmente grave. Com efeito, as políticas de controle da qualidade e segurança alimentar ou de estímulo à agroecologia e produção orgânica, por exemplo, teriam mais espaço em um Ministério da Alimentação do que atualmente encontram na pasta da agricultura. O mesmo pode ser dito com relação às políticas para a agricultura familiar, reforma agrária, comunidades tradicionais, extensão rural, compras públicas de alimentos, entre tantas outras.

Dentre todas as críticas que tal proposta pode suscitar, a que considero mais honesta e séria é aquela que destaca a alimentação como um tema transversal que deveria ser priorizado e gerido por vários ministérios e com ampla participação social. De fato, não há dúvidas que o Ministério da Saúde e as organizações sociais do campo da saúde pública, por exemplo, teriam muito a dizer e fazer. No entanto, demandar tal intersetorialidade implicaria não apenas em virar a mesa, mas em colocar a cozinha abaixo.

Além disso, a experiência recente de criação de políticas de segurança alimentar e nutricional, com o forte protagonismo do Consea – que, aliás, foi extinto pelo atual governo – revela que políticas isoladas são importantes mas insuficientes se ministérios poderosos, como é o caso da Agricultura, continuarem caminhando na direção contrária. Ou seja, não há incoerência entre criar um Ministério da Alimentação, substituindo o Ministério da Agricultura, e, ao mesmo tempo, fortalecer formas participativas e intersetoriais de governança das políticas alimentares.

Finalmente, tal proposta poderia, pela primeira vez, fazer com que o Estado repensasse a cisão cada vez mais fictícia entre o campo e a cidade, o rural e o urbano. A alimentação não é apenas um tema transversal porque envolve vários setores, mas também porque obriga a repensar o funcionamento dos sistemas alimentares incluindo o consumo e não apenas a produção. Políticas alimentares envolvem necessariamente pensar em estratégia que vão da lavoura até o prato.

(*) Professor da UFRGS e pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (Gepad)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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