Opinião
|
7 de fevereiro de 2021
|
11:22

A biblioteca inconveniente (por Gerson Almeida)

Por
Sul 21
[email protected]
A biblioteca inconveniente (por Gerson Almeida)
A biblioteca inconveniente (por Gerson Almeida)
Biblioteca da SMAM vai dar lugar a escritório de licenciamento. (Foto: Sérgio Louruz/SMAMS PMPA)

Gerson Almeida (*)

A prefeitura de Porto Alegre determinou o fechamento da mais bonita e funcional biblioteca da cidade, onde há um dos mais apreciados acervos sobre a questão ambiental e sustentabilidade do país, em especial sobre o desafio da construção de políticas de gestão ambiental urbana. Além da melhor bibliografia nacional e internacional sobre o tema, há um valioso registro sobre o processo local das lutas ecológicas, no qual entidades como a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e seus líderes históricos como Lutzenberger e Carneiro, assim como Magda Renner e Giselda Castro, da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG) são referências permanentes.

Esse pioneirismo foi decisivo para que Porto Alegre fosse a primeira capital do país a ter uma secretaria do meio ambiente. As lutas pela sustentabilidade urbana são uma resposta à degradação produzida pelo acelerado crescimento da urbanização do país e a total ausência de regramento às atividades econômicas. É o que explica absurdos como a permissão para a instalação de uma fábrica de celulose que despejava seus dejetos industriais no principal manancial da região metropolitana, que já recebia os esgotos não tratados da sua enorme população.

A Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM) foi idealizada como o correspondente institucional destas lutas e na sua biblioteca estão os registros desta história. No acervo é possível encontrar as soluções “inventadas” localmente e que se tornaram referência para as demais cidades. Exemplo disto foi o inovador arranjo institucional que permitiu à Porto Alegre construir uma rede de fibra ótica pública – que permite fazer amplas políticas de inclusão digital – sem precisar investir recursos próprios, em pleno processo de privatização do setor de telecomunicações no país.

Essa “invenção de gestão pública” só foi possível pelo processo de municipalização do Licenciamento Ambiental, pela intensa participação dos cidadãos na vida pública da cidade e na decisão sobre a aplicação dos recursos por meio do Orçamento Participativo. A inovação da gestão pública não é resultado do uso de novas tecnologias e sim de uma cidadania atuante, com agenda própria e com poder decisório, sem o que só os interesses privados dominam a cena pública.

O Parque Germânia, por exemplo, só existe em razão da capacidade institucional e técnica desenvolvida juntamente com o esforço de conhecer cada vez mais a cidade, os seus processos sócionaturais e seu desenvolvimento urbano. Esse conhecimento ampliada possibilitou ao poder público propor soluções novas aos empreendedores, já que naquela região não havia previsão de um Parque Público, mas de apenas várias pequenas praças. A prefeitura apresentou a ideia de reunir o conjunto das áreas destinadas para praças, além das áreas de preservação de curso d’agua existentes e, assim, viabilizar um novo Parque Público na cidade. Algo que gerou um profícuo processo de diálogo com o empreendedor, com os órgãos de controle social, mostrando ser possível encontrar soluções urbanas nas quais todos ganham.

Nos governos da administração popular, no auge do processo de participação social na cidade e de construção do Orçamento Participativo, a secretaria do meio ambiente foi completamente reorganizada e recebeu o seu maior aporte de recursos, que foram investidos na aquisição de novos equipamentos, recuperação de todas as capatazias e na construção da nova sede da secretaria, encaminhada como demanda institucional e aprovada pelo Orçamento Participativo. Não por acaso, a biblioteca ocupa um lugar de destaque na nova sede. Ela não era vista como um espaço físico, pois no conceito de gestão ambiental integrada desenvolvido naquele período, haviam quatro eixos estruturantes:

  1. O conhecimento do sistema urbano-social-ambiental e suas relações locais e globais com o sistema natural;
  2. A gestão urbana-social-ambiental pública necessita de capacidade técnica para desenvolver programas estratégicos e integrados com a sociedade e economia;
  3. A educação e a informação devem possibilitar aos cidadãos desenvolver o pensamento e a inteligência para a sustentabilidade;
  4. A participação dos cidadãos na construção da gestão do sistema urbano-social-ambiental exige um governo profundamente democrático, humanista e culturalmente tolerante.

Ou seja, o conhecimento e a participação dos cidadãos nas decisões da gestão pública deve ser compreendido como condição para a sustentabilidade urbana. Não por acaso foi neste momento virtuoso da cidade que algumas das mais inovadores políticas foram realizadas e até hoje são referência de gestão ambiental urbana e reconhecidas internacionalmente.

Pois bem, apesar de ser pioneira e ter sido a vanguarda em gestão ambiental urbana no país, desde o final dos governos da administração popular o sistema de gestão construído tem sido gradativamente desmontado na cidade, ao ponto do governo Marchezan enviar projeto de extinção da secretaria aos vereadores. Mesmo não sendo aprovado, em razão da forte resistência da sociedade, a secretaria acabou por ser esvaziada de forma implacável.

Foi eleita uma nova gestão, mas a política para o meio ambiente continua a mesma. O prefeito Mello decidiu concluir o desmonte e determinou o fechamento da biblioteca da SMAM, sem qualquer compromisso de manter à disposição de todos os interessados acesso ao conhecimento acumulado que seu acervo representa – do qual o Atlas Ambiental de Porto Alegre é uma síntese perfeita – sempre.

Os argumentos utilizados para tal violência são tão desprovidos de verdade quanto a cloroquina distribuída pelo prefeito é eficaz para a Covid-19. Nada pode ser mais simbólico. No lugar da biblioteca, um escritório de licenciamento. Ao dissociar o conhecimento do processo de licenciamento, a atual administração parece querer retirar qualquer regramento sério à degradação ambiental e entregar a cidade aos interesses econômicos.

A determinação em fechar a biblioteca é o desejo de apagar da memória social da cidade as provas de que é possível fazer gestão ambiental urbana, desenvolver a cidade e avançar na qualidade de vida. Ao permanecer lá, a biblioteca funcionava como um testemunho silencioso e poderoso de que outra cidade é possível. Por essa razão ela passou a ser uma biblioteca inconveniente.

(*) Sociólogo, ex-secretário do meio ambiente de Porto Alegre.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora