Opinião
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30 de março de 2020
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11:38

Escravo, não. Escravizado! (por Maurício da Silva Dorneles e Nilton Mullet Pereira)

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Escravo, não. Escravizado! (por Maurício da Silva Dorneles e Nilton Mullet Pereira)
Escravo, não. Escravizado! (por Maurício da Silva Dorneles e Nilton Mullet Pereira)
“O racismo não é um acidente ou uma contingência da sociedade brasileira”. Foto: Cícero R.C. Omena/ FlickrCC

Maurício da Silva Dorneles e Nilton Mullet Pereira (*)

Vivemos numa sociedade em que o racismo é estrutural, ou seja, ele não é um acidente ou uma contingência da sociedade brasileira: é seu elemento definidor e constitutivo.

Quando dizemos que algo é estrutural, em uma aula de História, queremos afirmar que algo (como a sociedade brasileira) só pode ser pensado por esse elemento (o racismo) que lhe constitui essencialmente. Logo, pensar o que somos ainda hoje, desde o período colonial, é supor uma sociedade que se organiza, que cria modos de ser e de viver, formas de olhar o mundo e, sobretudo, que produz as relações entre as pessoas e das pessoas com as instituições, a partir de relações desiguais, fundadas na ideia de raça, que, na leitura de Quijano, foi o instrumento mais eficaz “de dominação social inventado nos últimos 500 anos”. Ou seja, o que chamamos de relações sociais ̶ nossas relações escolares, de trabalho, de gênero e etc… ̶ são estruturadas desde um processo de colonização e de colonialidade, que produz desigualdades sociais e uma série de silenciamentos de práticas culturais, de existências e de modos de vida.

Nesse sentido, se não estivermos à espreita, procurando pensar historicamente as nossas relações étnico-raciais e a invenção da ideia de raça, não percebemos como o racismo antinegro se manifesta em nossas mais íntimas relações.

Por isso, um cuidado consigo, uma ética que nos permita saber sobre como nos tornamos o que somos e sobre por que enunciamos as verdades que divulgamos em nossas salas de aula, é fundamental para construir novas relações, mais abertas, democráticas e não balizadas pelas normas sociais que são estruturadas por um racismo antinegro.

Portanto, dizer que o racismo nos constitui não significa afirmar que somos pessoas más ou boas, ou ainda que não amamos ou respeitamos nossos amigos ou familiares. Denota que essa convicção produz uma normatividade das nossas relações, as quais a fortalecem e a reproduzem sem que nos demos conta. Por conseguinte, é importante que as aulas de História sejam espaços de aprendizagem do antirracismo, e que permitam uma compreensão do seu caráter estrutural.

As pessoas, em vez de ficarem zangadas quando dizemos que somos racistas, precisam pensar porque exatamente isso lhes causa irritação e como nossas relações ainda são permeadas pelo sistema de raça, construído desde o processo de colonização das Américas.

Por fim, podemos lembrar que, em nossas aulas de História, sempre abordamos o tema da escravização de povos africanos, no Brasil, criando uma identidade que chamávamos de escravo. Tentávamos mostrar, desde uma suposta generosidade, como a escravidão era terrível e como esses sujeitos a que chamávamos escravos eram submetidos a tratamento cruel e desumano. Entretanto, essa generosidade nos colocava num lugar neutro em relação aos efeitos do processo de escravização no Brasil, um lugar que nos livrava de sermos chamados de racistas, uma vez que nossa tarefa era salvadora e era generosa. Jogávamos o problema do racismo para os negros, combatíamos ferozmente os senhores de engenho e todas as pessoas que, contemporaneamente, eram abertamente racistas ou que realizam práticas racistas. Ficávamos, portanto, imunes de responsabilidade por essa estrutura desigual construída pela colonialidade e deixávamos passar nossa branquidade e nossa branquitude, sem racializar os brancos e sem problematizar o lugar de privilégio que possuem.

Desse modo, como afirma De Martini (2020, p. 06), será preciso, agora, “estudar a identidade racial branca, sua conformação, sua manifestação ou ocultamento, seus discursos e práticas, estudar os efeitos do racismo na população branca. É olhar sobre como os brancos operam as categorias de raça, racismo e anti-racismo, é situar, nomear e porque não, racializar, todos os sujeitos nas relações étnico raciais”.

Ao mesmo tempo, não desconfiávamos que nossa aula, nossos conceitos e as histórias que contávamos, faziam parte dessa estrutura. Mas, hoje nos damos conta que isso não colocava os brancos e nem nossa aula de História no lugar de uma da neutralidade ou de uma crítica ao preconceito racial, mas, nos constituíamos, em verdade, em agentes do racismo estrutural.

De fato, a identidade que construímos – o escravo – nunca existiu, senão num léxico que olhava para os africanos como passivos e desprovidos de subjetividade. Os movimentos anticoloniais, as lutas dos movimentos sociais negros no pós-abolição resistiram a essa identificação construída por uma história branca, baseada no dispositivo da branquitude. Os africanos que vieram para o Brasil eram pessoas, reis, rainhas, camponeses, homens e mulheres escravizados contra a sua vontade.

Escravo é, portanto, a produção de uma identidade fixa. Escravizado é uma contingência cruel da vida de uma pessoa, logo, histórica. Abordar em sala de aula o modo como nossa linguagem constitui os objetos de que se ocupa é central, também, na luta antirracista.

Nota 1: Com muito gosto citamos a Luisa Abrunhoza de Martini que tentou, desde o seu Trabalho de Conclusão da Graduação em História, na UFRGS, problematizar sua própria branquitude, na perspectiva de racializar o branco, e aprender como escapar do racismo estrutural. Em breve no LUME-UFRGS. DE MARTINI, Luisa Abrunhoza. BRANQUITUDE MOBILIZADA: Reflexões sobre a identidade racial branca a partir das críticas ao Teatro Experimental do Negro em jornais cariocas (1944-1949). Trabalho de Conclusão de Curso. IFCH-UFRGS, 2020.

Leituras sugeridas:

Leitura necessária o livro do Marcus Rosa: ROSA, Marcus V. F. Além da Invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-abolição. 1. ed. Porto Alegre: EST Edições, 2019. v. 1. 272p .

Leitura do artigo do Quijano: Quijano, Aníbal. ¡Que tal raza! (Tema central). En: Ecuador Debate. Etnicidades e identificaciones, Quito : CAAP, (no. 48, diciembre 1999): pp. 141-152. ISSN: 1012-1498

Leitura sobre racismo estrutural: Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

Leitura necessária: Moreira, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

(*) Maurício da Silva Dorneles é licenciado em História (2018) e mestrando em Educação. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre (UFRGS). Rio Grande do Sul.

 Nilton Mullet Pereira é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da área de Ensino de História. Professor do Mestrado Profissional em ensino de História – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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