Saúde
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12 de novembro de 2022
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06:12

Desigualdade racial no parto: Como o acesso a doulas pode ajudar mulheres negras

Por
Andressa Marques
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Arte: Matheus Leal/Sul21
Arte: Matheus Leal/Sul21

A desigualdade racial no acesso ao atendimento em saúde não é novidade no Brasil. Algumas situações, como a hora do parto, no entanto, evidenciam as dificuldades ainda maiores enfrentadas por mulheres negras. Segundo dados da Desigualdades raciais na saúde: cuidados pré-natais e mortalidade materna no Brasil de 2014 a 2020, divulgado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), na média do período de 2014 a 2019, houve aproximadamente 8 mortes maternas a mais de mulheres negras do que de mulheres brancas para cada 100 mil nascidos vivos. A Razão de Mortalidade Materna (RMM) apresenta maiores valores para as mulheres pretas comparadas às pardas e brancas em todas as regiões.

No Rio Grande do Sul, de acordo com o Boletim Epidemiológico de Mortalidade Materna, Infantil e Fetal, feito pela Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul (SES), em 2021, foram registrados 114 óbitos, isso representa um aumento de 111% em relação ao ano anterior, quando houve 54.

Conforme o relatório “Panorama das Desigualdades de Raça/cor no Rio Grande do Sul”, apresentado em novembro de 2021, a distribuição por raça na população feminina do Estado apresenta grande desigualdade, sendo 79,9% brancas, 13,9% pardas e 5,9% pretas. No entanto, ao analisar os dados de mortalidade materna com o total da população estratificada por raça/cor, é possível notar que entre as mulheres brancas o percentual de morte materna foi de 0,084%, enquanto entre as mulheres pretas esse percentual foi maior, de 0,174%, e entre as pardas, de 0,087%.

Segundo o IEPS, o caminho para reduzir as desigualdades raciais nos indicadores de acesso aos cuidados pré-natais e as taxas de mortalidade materna é fortalecer a Atenção Básica, programas relacionados à saúde da mulher e gestante e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os cuidados pré-natais incluem a promoção da saúde, o rastreio, o diagnóstico e a prevenção das doenças.

Carine de Moura Machado, enfermeira especialista em saúde da família e comunidade. Foto: arquivo pessoal

Carine de Moura Machado, 38 anos, é enfermeira especialista em saúde da família e comunidade e atua na Unidade de Saúde Parque dos Maias, pertencente ao Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre. Ela explica que o pré-natal ideal é aquele iniciado antes mesmo da concepção, quando a mulher decide gestar. Ao engravidar, a gestante precisa dispor de um número mínimo de consultar para o acompanhamento do processo, visando a redução de possíveis danos maternos e fetais, por meio de avaliações, exames que possibilitem, por exemplo, identificar precocemente doenças a fim de intervir para redução de complicações graves, como a mortalidade materna e infantil, também maior na população negra. Além disso, o pré-natal tem o papel de informar e orientar esta mulher para o autocuidado e o futuro cuidado do seu bebê.

“A partir de estudos revisados e da experiência que tenho como mulher negra e enfermeira atuante na rede pública de saúde há 10 anos e que realizou o seu pré-natal e parto na rede pública de saúde, reforço que tais diferenças são sensivelmente notadas”, diz Carine sobre a questão racial.

Para a enfermeira, o acesso dessa população aos programas de saúde ainda não atinge os níveis idealizados devido, entre outras razões, a questões culturais históricas. Na opinião de Carine, essa população acaba tendo suas condições de saúde agravadas por ser vista como marginalizada, pouco instruída sobre os seus direitos, com grau de instrução inferior, estar inserida em contextos sócio familiares desordenados e ainda por também exercer profissões de menor valor social.

“Tudo isso leva a identificarmos no nosso dia a dia de trabalho que muitas das mulheres negras gestantes que chegam até nosso serviço não aderem adequadamente aos cuidados e tratamentos durante o seu pré-natal e, pior que isso, muitas adolescentes negras acabam tendo gestações indesejadas também pela dificuldade de acesso”, afirma. 

Carine conta que já acolheu mulheres que diziam não querer incomodar ou que achavam que seu quadro de saúde não era grave. “Estas duas expressões são traduzidas por mim como aquela que se vê intrusa, inconveniente, de que realmente não quer atrapalhar o trabalho daqueles que estão ali para isto”, observa.

A enfermeira diz que esta deficiência que se tem em serviços de saúde mostra quão pouco é debatido sobre a saúde da população negra no Rio Grande do Sul, especificamente. ”Diariamente, nas discussões que levantamos visando melhorias e outras tantas coisas, isto não é notado, ou seja, não refletimos sobre o quantitativo baixo de acesso desta população ao serviço”, afirma. 

“Como mulher negra, gestante que fez o seu pré-natal e parto na rede pública de saúde, reforço que também está envolvido o racismo institucional experienciado pelos negros quando procuram por atendimento”, diz.

Para Carine, a melhora no atendimento de mulheres negras e suas famílias se dá por meio de mais espaços para discussões, ampliação da representatividade nos serviços e acolhimento desta população. “Mantendo o olhar holístico e familiar daquele ser, instrumentalizando esta população e também os profissionais para que exijam um olhar diferenciado às mulheres negras, gestantes e crianças negras”. 

A enfermeira diz que ainda são grandes os desafios para um atendimento ideal na primeira infância e na maternidade, mas vê avanços. “Muitos passos já foram dados na direção certa, mas ainda há muito a se avançar. Enquanto isso, digo a uma família negra que, ao receber o seu bebê, se fortaleça, se unifiquem como rede de apoio a esta mulher e criança”, diz. “Que a mesma possa amamentar e cuidar do seu bebê com toda tranquilidade, segurança e prazer possíveis. Que a UBS/ESF e seus profissionais estejam aqui como forma de apoio. Estamos aqui para aquele olhar empático e orientações adequadas a sua realidade”, completa.

Rachel Galon, doula e educadora perinatal da Associação de Doulas do Rio Grande do Sul (ADOSUL). Foto: Arquivo pessoal

A doula é uma profissional que tem como responsabilidade o acompanhamento da gestante durante todo o período de gravidez, parto e pós-parto. Rachel Galon, doula e educadora perinatal da Associação de Doulas do Rio Grande do Sul (ADOSUL), explica que a função primordial da profissional é dar apoio à parturiente, por exemplo, sugerindo métodos não farmacológicos para aliviar as dores, auxiliando no chuveiro ou fazendo massagens.

Durante a gestação, Rachel explica que o papel da doula consiste em fazer a educação perinatal. Em encontros com o casal ou a gestante e acompanhante de sua escolha são abordados assuntos que envolvem acolher um recém nascido. “Conversamos sobre o medo da dor, maternidade e paternidade real, amamentação, primeiros cuidados com um bebê, mudanças na vida da mulher e do casal”, explica. “Então são todos aqueles assuntos que ninguém te fala até você engravidar.”

Rachel também ressalta que um dos principais trabalhos da doula é orientar a gestante a escrever o seu plano de parto, um documento reconhecido pela OMS desde 1986 no qual cada gestante escreve o que deseja ou não deseja que aconteça em seu parto. “São inúmeros itens como não desejar induções, exames de toques quando não solicitado ou que tenha o menor número de pessoas possível na sala [de parto]”, conta. “Apresentamos isso pra gestante e ela escolhe”, diz.

A doula também conta que um dos aspectos positivos desse serviço às famílias é que a gestante e seus acompanhantes já vão muito preparados para o recebimento de uma criança e assim a assistência hospitalar também já enxerga a gestante de forma diferente, pois sabe que ela está bem informada. “Levando informações de qualidade sempre baseadas em evidências científicas, a gestante se empodera do assunto, do seu parto e da sua maternidade e assim ela consegue, com sua rede de apoio, dar limites para algumas coisas que podem acontecer nos hospitais”, explica. Após o parto, a doula segue acompanhando a família para auxiliar na amamentação e em outras orientações, como a introdução alimentar, por exemplo.

Para Rachel, a presença da doula é essencial porque a mulher deve ter direito de escolha em momentos de vulnerabilidade. “Nós somos mulheres que acompanham outras mulheres em todo o processo. A gente sabe que no Brasil acontece muita violência obstétrica. Além disso, é o país campeão em cesarianas”, observa.

Assim como Rachel, Aline* é doula e educadora perinatal, mas além disso é uma mulher preta com dois filhos. “Antes de ser doula, eu tive uma doula maravilhosa que ofereceu, para mim e meu esposo, um preparo muito rico em informações baseadas em evidências científicas e que nos deixou muito seguros para o evento do parto”, conta. 

Ela afirma que o que despertou a procura por uma doula foi a necessidade de ter uma assistência contínua, informações seguras durante o processo de trabalho de parto e alguém em quem confiasse por perto.

Aline é mãe de dois filhos, um de oito e outra de dois anos. Na primeira gravidez, ela optou por fazer seu pré-natal e parto na rede privada de saúde e relata que ocorreu tudo como esperado, justamente porque estava pagando por aquele trabalho. Já a sua segunda gravidez foi inteiramente pelo SUS e com assistência de doula.

A partir das informações que recebeu durante a segunda gravidez e por hoje também ser doula, Aline relata que percebeu o descaso dos profissionais de saúde durante seu trabalho de parto. “Eu só fui me dar conta que tive um parto desassistido um ano após ter minha filha”, diz. “A médica do plantão simplesmente me examinou às 20h e foi embora. Eu estava em trabalho de parto mas não tinha médico que me assistisse”, completa.

Como sua doula estava acompanhando por vídeo chamada, por restrições da covid-19, ela conta que durante toda a noite que passou em trabalho de parto havia apenas ela e seu marido na sala. “Passamos a noite sozinhos e vieram apenas dois enfermeiros que não tinham conhecimento suficiente para me avaliar”, afirma. “O profissional, quando vinha me examinar, falava que eu não tinha dilatação, que eu não ia conseguir, que eu estava em trabalho de parto e não tinha evolução”, conta Aline.

Ela explica que até sua filha de fato começar a nascer, os profissionais insistiram que ela deveria fazer cesariana. “Quem teve que constatar que a minha bebê estava nascendo foi o meu marido, que colocou a mão na minha vulva e percebeu que minha filha já estava coroando. Se não fosse isso, eles iriam me arrastar para uma cesárea”, afirma. 

Segundo a OMS, a taxa ideal de cesáreas seria entre 10% e 15%. No Brasil, aproximadamente 55% dos partos realizados são cesáreas. É a segunda maior taxa do mundo, atrás apenas da República Dominicana. Se considerarmos a realidade no sistema privado de saúde, a proporção pula para 86%. “Isso faz com que bebês nasçam precocemente, isso causa problemas de depressão pós-parto, causa problemas nos primeiros cuidados com o recém nascido porque a mãe está debilitada por conta de uma cirurgia de alto risco, problemas na amamentação porque está diretamente ligada ao parto normal”, diz Rachel.

A doula explica também que a microbiota vaginal materna é importante por dispor de uma maior variedade de microrganismos colonizadores, que são responsáveis por auxiliar na capacitação e melhor adequação do sistema imunológico do bebê. Segundo estudos da Revista Educação em Saúde, feita por discentes e docentes de medicina, é possível dizer que recém-nascidos por parto normal tiveram melhores respostas durante o desenvolvimento devido ao contato com microrganismos presentes no períneo materno.

Aline também relata a falta de atenção a exames importantes durante o trabalho de parto, como o ecocardiograma fetal, essencial para avaliar a saúde do coração do bebê. “Isso é uma responsabilidade muito grande porque é um exame que, durante o trabalho de parto, deve ser feito a cada 5 ou 10 minutos e a minha filha não foi escutada em momento nenhum”, diz. “Poderia ter acontecido uma tragédia com ela durante o trabalho de parto, mas só iriam saber depois que ela nascesse”, conta. 

“No meu ponto de vista, a assistência de uma doula traz mais autonomia e segurança e as famílias não necessitariam ser ‘salvas’ por um médico no dia do parto”, destaca. Ela acredita que a assistência da doula no dia do parto dentro do hospital teria lhe trazido uma experiência totalmente diferente. “É muito necessário as mulheres terem alguém que ofereça apoio e suporte contínuo, com olhar atento para ajudar, com consciência e respeito e tudo isso sabendo que aquele momento é da própria mãe e não da doula, do obstetra ou de qualquer outro profissional”, completa.

Laura Sito | Foto: Joana Berwanger/Sul21

A vereadora e deputada estadual eleita Laura Sito (PT), que integra a bancada negra de Porto Alegre, conta que a proposta de assistência de doulas em hospitais e casas de parto na Capital, de sua autoria, surgiu de uma relação com a categoria ainda durante a campanha de 2020 e se aprofundou com o mandato: “Essa relação com as doulas se somou a minha própria experiência de gestação e de maternidade”. “Este momento me fez perceber a importância da humanização do parto e de regulamentar a profissão das doulas, que desempenham uma função que cuida, protege e melhora a saúde da mulher”, completa.

A vereadora afirma que, mais do que isso, ficou evidente para ela que a pauta é maior que a regulamentação de uma profissão, pois envolve a saúde da mulher e do bebê, a liberdade e o direito sobre os corpos das mulheres e o aparato emocional da mãe e do recém nascido.

Laura também cita que a doulagem traz vantagens à saúde pública, o que é reconhecido até pela OMS. Estudos de 2017 demonstraram que a presença da doula reduz em 25% o tempo do trabalho de parto, diminui em quase metade os índices de cesariana, em até 40% o uso de hormônios sintéticos e partos instrumentalizados e diminui também a depressão pós-parto.

Para a vereadora, o projeto de assistência de doulas assegura os direitos e a humanização do parto e do nascimento para as mulheres e crianças pretas. “Além disso, contribui com a redução dos altos índices de violência obstétrica sofrida pelas mulheres negras, os corpos mais violentados na nossa sociedade”, diz. 

Laura Sito destaca que, como mãe, luta por um mundo melhor. “Me convenço cada dia mais do que Michel Odent, médico francês, disse: ‘para mudar o mundo, é preciso mudar a forma de nascer’. É isso que queremos com esse projeto, humanizar o parto e o nascimento, para um mundo mais humano”, explica. “Regulamentar a profissão e garantir o exercício da doulagem é um avanço sobre o direito e a liberdade da mulher e sobre a saúde pública”, completa.

O projeto, apresentado por Laura em março de 2021, foi aprovado na reunião conjunta das comissões e tramita atualmente na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.

*Usamos um nome fictício a pedido da entrevistada


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