Saúde
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18 de junho de 2022
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08:58

Ministério da Saúde extingue Rede Cegonha e cria impasse na política de atenção à gestante

Por
Luciano Velleda
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Nova Rede de Atenção Materno-Infantil é criticada por voltar a centrar o parto na figura do médico. Foto: Lela Beltrão/ Coletivo Buriti
Nova Rede de Atenção Materno-Infantil é criticada por voltar a centrar o parto na figura do médico. Foto: Lela Beltrão/ Coletivo Buriti

Sem qualquer pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), o Ministério da Saúde (MS) anunciou, no dia 4 de abril, a criação do programa Rede de Atenção Materno-infantil (RAMI). Com ênfase na atuação do médico obstetra, o novo programa substitui o Rede Cegonha, em vigor desde 2011, e tem sido criticado por gestores de saúde por não contemplar ações e serviços voltados às crianças e à atuação dos médicos pediatras, além de excluir o profissional enfermeiro obstetriz.

Três dias após o anúncio do governo federal, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) emitiram nota conjunta pedindo a revogação da Portaria nº 715/2022, que institui a Rede Materno e Infantil (RAMI). Além de criticar a decisão unilateral do Ministério da Saúde em criar um novo programa de atenção à gestante sem acordo prévio com estados e municípios, os órgãos alertam para os problemas que tais mudanças causarão na assistência à saúde das mulheres.

“Os dois Conselhos lamentam o desrespeito ao comando legal do SUS com a publicação de uma normativa de forma descolada da realidade dos territórios, desatrelada dos processos de trabalho e das necessidades locais, tornando inalcançáveis as mudanças desejadas: qualificação da assistência à saúde das mulheres, gestantes e crianças do País”, afirma trecho da nota do Conass e do Conasems.

Lançada pela ex-presidente Dilma Rousseff em março de 2011, a Rede Cegonha nasceu com a missão de ampliar a rede de assistências às gestantes e aos bebês na busca de reduzir a mortalidade infantil e materna. Com o programa, ligado ao SUS, as unidades de saúde recebem recursos para fazer testes rápidos de gravidez, consultas pré-natal e exames. O programa ainda prevê a criação de casas da gestante e do bebê ligadas às maternidades de alto risco, atua nos dois primeiros anos de vida da criança e tem como diretriz incentivar o parto normal.

“Estamos no limbo”, diz, desolada, Gisleine Lima da Silva, coordenadora da Divisão das Políticas dos Ciclos de Vida, ligada ao Departamento de Atenção Primária e Políticas de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde (SES).

O “limbo” se refere ao fato do programa Rede de Atenção Materno-Infantil (RAMI) ter sido oficialmente criado pelo governo federal, substituindo a Rede Cegonha, mas na prática ainda não estar operando. Após publicar a portaria no começo de abril, o Ministério da Saúde tinha 45 dias para divulgar novo documento especificando o formato dos recursos financeiros, porém o prazo passou e nada foi feito ainda.

Com a situação indefinida, Gisleine diz que a orientação da Secretaria Estadual de Saúde (SES) é manter a atuação conforme os princípios estabelecidos na Rede Cegonha. “Na prática, a gente continua trabalhando na Rede Cegonha, mas legalmente, nos documentos, ela foi substituída”, explica.

O impasse levou a Comissão Intergestores Bipartite do RS a decidir não aderir às portarias do Ministério da Saúde que não sejam pactuadas com a Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Resolução do dia 7 de junho, assinada pela secretária estadual de Saúde, Arita Bergmann, deixa isso claro ao “deliberar que no âmbito da gestão do SUS no Estado do Rio Grande do Sul, não serão pactuadas adesões às Portarias publicadas pelo Ministério da Saúde (MS), que não forem pactuadas nas reuniões mensais da Comissão Intergestores Tripartite – CIT”.

“A gente não vai reconhecer”, afirma a coordenadora da Divisão das Políticas dos Ciclos de Vida da SES. Gisleine define como “angustiante” não haver articulação com o Ministério da Saúde, uma situação que ela conta nunca ter vivido como gestora. “Fico sabendo só quando sai alguma portaria ou quando tem lançamento de algo, como a recente caderneta de saúde.”

Em sua avaliação, a portaria que cria a Rede de Atenção Materno-Infantil (RAMI) traz mudanças que parecem ser sutis, mas não são. Como exemplo, cita a exclusão de qualquer palavra que faça referência ao aborto e ao enfoque de gênero, considerando a maior vulnerabilidade da mulher na sociedade.

Gisleine avalia ser uma grande perda o fim da Rede Cegonha, um programa amplo, com princípios da saúde da mulher desde a reprodução até a criança completar dois anos de idade. Ela pondera não ser contrária a mudanças na Rede Cegonha e avalia que havia a necessidade de qualificação, desde que fosse acordada entre União, Estados e Municípios. “É uma confusão grande, é difícil pra nós, imagina pra população”, lamenta.

Presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), Virgínia Leismann Moretto acredita que o novo programa do governo federal não vai vingar e que a intenção maior é ser uma resposta ideológica do governo de Jair Bolsonaro (PL) aos apoiadores do presidente.

Professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ela enfatiza que a política de Estado em saúde deve ter foco na ciência e em evidências científicas que visem a saúde da mulher e do bebê. Neste sentido, afirma que a Rede Cegonha foi criada como um modelo com equipe incluindo enfermeiro obstetra e obstetriz, numa concepção que vê o parto como evento fisiológico e não patológico. A nova Rede de Atenção Materno-Infantil (RAMI) criada pelo governo federal, ao contrário, volta a centrar o parto na figura do médico, um modelo que, ela afirma, está ultrapassado.

Virgínia lembra que tal modelo não incentiva o parto natural e levou o RS a ter 64% dos nascimentos por cesárea. A professora da UFRGS explica que a Rede Cegonha vinha atuando para mudar essa realidade. Em Porto Alegre, conta que apenas o Hospital Conceição tem enfermeiro obstetra e obstetriz atuando, com “resultados fantásticos”, tanto do ponto de vista clínico quanto da satisfação da mulher.

“Aqui no Rio Grande do Sul é muito difícil ter um parto normal”, afirma a presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo). Virgínia avalia que o governo federal está com pressa de lançar “alguma coisa” e o resultado é a atual confusão criada, cenário que pode agradar quem não estava satisfeito com os princípios da Rede Cegonha.

“Estamos vivendo um momento muito crítico. Parece que há ranço com a Rede Cegonha, com o parto domiciliar. Parece que tudo isso vem pra satisfazer questões ideológicas”, diz.

A professora da UFRGS insiste que a política de estado deve visar melhorias com base em evidências científicas, e a presença do enfermeiro obstetra ou da obstetriz comprovadamente reduz dano à saúde da mulher. Virgínia salienta haver pesquisas que mostram como a criação da Rede Cegonha diminuiu intervenções prejudiciais à saúde da gestante,  como a “manobra de Kristeller” (pressão externa sobre o útero da mulher para acelerar o trabalho de parto) e o corte do períneo.

Ela pondera que a Rede Cegonha foi formulada a partir de um modelo inglês, porém, na Inglaterra há ampla formação de enfermeiros obstetras, enquanto no Brasil houve apenas um período de financiamento de cursos de especialização para atenção ao nascimento. Agora, ela lamenta, nem isso há mais. Os centros de parto natural previstos na Rede Cegonha também não são contemplados no novo programa do governo federal.

Apesar do impasse e das dificuldades, Gisleine Lima da Silva, coordenadora da Divisão das Políticas dos Ciclos de Vida da Secretaria Estadual de Saúde, orienta as mulheres a seguirem procurando os serviços de atenção primária em saúde em suas cidades. Ela garante que, por enquanto, o trabalho continua igual. “Nenhuma mudança”, afirma, em que pese o “limbo” criado pelo governo federal na política de saúde da mulher e do bebê.   


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