Saúde
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29 de junho de 2022
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15:00

Com novos repasses, Porto Alegre passa a ter 96% das unidades de saúde terceirizadas

Por
Luís Gomes
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Unidade de Saúde Jenor Jarros, no Rubem Berta, está na lista das novas terceirizadas. Foto: Cristine Rochol/PMPA
Unidade de Saúde Jenor Jarros, no Rubem Berta, está na lista das novas terceirizadas. Foto: Cristine Rochol/PMPA

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) espera concluir nas próximas duas semanas o processo de transferência de 15 unidades de saúde para as instituições controladoras dos hospitais Santa Casa de Misericórdia, Divina Providência e Vila Nova. Com isso, o número de unidades de saúde municipais parceirizadas — termo empregado pela Prefeitura para esse tipo de terceirização — com estas instituições passa de 99 para 114, de um total de 132 existentes na cidade. Além dessas, outras 12 unidades de saúde estão sob gestão do Grupo Hospitalar Conceição e uma é gerida pelo Hospital de Clínicas, o que significa que apenas cinco permanecerão sob a administração do município, ou seja, apenas 3,7%.

As unidades de saúde que estão sendo terceirizadas são: Bom Jesus, Ceres, Chácara da Fumaça, Laranjeiras, Panorama, Passo das Pedras I, Sarandi, Vila Elizabeth, Jenor Jarros, Santa Marta, Aparício Borges, Vila Cruzeiro, Ipanema, Restinga e Pitinga, além das Farmácias Distritais Restinga, Vila dos Comerciários e Navegantes.

De acordo com a Prefeitura, a ideia não era terceirizar os serviços neste momento, uma vez que os atuais contratos com os hospitais estão para vencer no mês de agosto e há um processo de chamamento público em andamento que busca contratar organizações da sociedade civil para fazer a gestão das 114 unidades, incluindo estas 15, a partir de setembro. Contudo, o processo nestas 15 unidades foi antecipado pela não conclusão da chamada Operação Inverno, autorização que vem sendo concedida pela Câmara dos Vereadores nos últimos anos para que a Prefeitura contrate servidores em caráter emergencial para atender a demanda do inverno.

Secretário adjunto de Saúde, Richard Dias explica que Operação Inverno permite a contratação emergencial de servidores por seis meses, prorrogáveis por mais seis, mas é um processo que precisa ser autorizado pela Câmara e também internamente na Prefeitura a cada ano. Segundo Dias, os trâmites internos na SMS começaram em dezembro passado, com a pasta encaminhando em março para a Secretaria Municipal da Fazenda (SMF) um pedido para a contratação de 167 servidores em caráter emergencial. Contudo, a Fazenda não autorizou o pedido inicialmente, solicitando mais informações à SMS.

“Diferente de outros anos, nós tivemos esse ano um aumento considerável no quantitativo de servidores. De uma média de 100 servidores que nós tínhamos na Operação Inverno, passou para 167. Além disso, por causa da pandemia, o custo de saúde, tanto insumos como mão de obra, aumentou bastante”, diz Richard Dias.

O secretário adjunto explica que o aumento do número de servidores é resultado do déficit de chamamento de concursados da gestão anterior. “Sem entrar no mérito, mas a gestão anterior não estava chamando muitos concursados. Ou seja, gerou um déficit. Soma-se a isso uma pandemia, onde nós tivemos a perda de vários colegas, bem como o custo dessa mão de obra elevou bastante. Então, esses 167, além de ser um número maior do que a média, o custo dos servidores ficou muito alto. A gente teve que dar todas essas explicações para a Fazenda para que isso chegasse à mesa do prefeito já devidamente alinhado”, diz.

Contudo, o processo só chegou à mesa do prefeito em junho e a avaliação da SMS é de que “na melhor das hipóteses” levaria ao menos 30 dias para ser aprovado pela Câmara e outros 30 para que a contratação emergencial pudesse ser realizada. “Essa lacuna de dois a três meses é o que a gente não poderia enfrentar no inverno”, diz Dias.

Diante do cenário, a SMS optou então, segundo Dias, por aditar os contratos vigentes com os hospitais para permitir que eles contratassem profissionais para suprir a demanda da Operação Inverno na rede de atenção primária. Por outro lado, informa que a SMS convocou 55 médicos e 44 enfermeiros — além de farmacêuticos, nutricionistas, terapeutas ocupacionais — aprovados em concursos realizados pela pasta para suprir a demanda no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), no Hospital de Pronto Socorro (HPS) e no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul (PACS). Para a próxima semana, a SMS espera também fazer a nomeação de técnicos de enfermagem, dentistas e psicólogos. “Mesmo a gente chamando todo esse quantitativo, vimos que era insuficiente para atender a demanda”, diz Dias.

Como os contratos aditados não permitem que profissionais contratados pela Santa Casa, pelo Divina Providência e pelo Vila Nova atuem nos serviços de urgência e emergência, a Secretaria de Saúde optou então, segundo Dias, por remanejar os servidores estatutários das 15 unidades de saúde para estes serviços e terceirizar a gestão delas.

O processo, contudo, vem recebendo críticas do Conselho Municipal de Saúde (SMS). Em nota publicada na última sexta-feira (24), o Conselho informa que foi avisado pela SMS sobre o aditivo que resultou na parceirização das 15 unidades de saúde no dia anterior, em reunião da qual participaram representantes do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), do Fórum de Defesa do SUS e do Coren Saúde. O CMS diz, na nota, que vem há anos denunciando a política de sucateamento dos serviços de saúde e a falta de reposição de servidores com o objetivo de intensificar a terceirização na saúde. Segundo levantamento do órgão, nos últimos cinco anos, mais de 1 mil servidores da Saúde deixaram seus postos de trabalho, via aposentadoria, exoneração ou outras causas, mas 66% dessas vagas não foram repostas.

Por outro lado, o CMS diz que o argumento de que os recursos para a Operação Inverno não terem sido autorizados pela Secretaria da Fazenda não é compatível com a realidade das finanças do município. O Conselho aponta que os investimentos em Saúde vêm caindo gradativamente nos últimos anos.

“O relatório de gestão do 1º quadrimestre de 2022, na tabela 89, demonstra um aumento de 40% na arrecadação das receitas líquidas e impostos pelo município desde 2015 até o momento. Em contraponto, a tabela 90, que demonstra o líquido aplicado pelo município em Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), mostra que o valor investido no 1º quadrimestre de 2022 (12,03%) foi o menor da série histórica desde 2013. Além disso, os dados de contratações temporárias realizadas de 2021 até o momento, contabilizam um montante de 187 contratados no período em três processos diferentes, contrapondo a justificativa de que não teriam tido tempo hábil para utilizar desse dispositivo para a Operação Inverno deste ano”, diz nota do CMS.

 

Secretário adjunto Richard Dias conversas com servidores durante visita a unidade de saúde nesta terça | Foto: Arquivo Pessoal

Em reunião realizada após o anúncio da transferência de gestão das 15 unidades, o Conselho Municipal de Saúde decidiu acionar o Ministério Público Estadual (MP-RS) para que pressione o desembargador Eduardo Delgado, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), a dar prosseguimento à ação que julga a execução do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre MP e Prefeitura, em 2007, em que o poder público municipal se comprometia a não contratar profissionais para a área de atenção básica à saúde sem a realização de concurso público ou processo seletivo público. O entendimento da Prefeitura é de que o TAC já não está mais em vigor, mas o CMS considera que ele ainda está válido, posição que seria seguida, segundo a nota do conselho, também pelo MP, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).

“Para o CMS, a ‘parceirização’ é apenas uma nova forma, até ludibriosa, de denominar o velho hábito de repassar para terceiros a responsabilidade clínico-sanitária que é do executivo municipal. Com o agravante que na gestão do Prefeito Sebastião Melo, a proposta é estender as parcerias para quase a totalidade da rede de Saúde. Provocando a desestruturação total dos serviços e oferecendo risco à manutenção do cuidado, na medida que não existem garantias de continuidade e longitudinalidade da permanência dos profissionais e das entidades, que a qualquer tempo podem desfazer o contrato. Deixando, assim, a Rede de Atenção vulnerável e dependente dos interesses privados dessas entidades”, diz nota da entidade.

Em conversa com o Sul21, a vice-coordenadora do CMS, Ana Paula Lima, aponta ainda que a terceirização das unidades de saúde provoca a descontinuidade dos serviços de atenção primária, que teriam como principal elemento justamente o acompanhamento de pacientes para prevenção de doenças e para evitar o agravamento de condições de saúde.

“Os servidores estão há 10, 15 anos nos territórios. A principal característica da atenção básica é garantir a continuidade do cuidado. Para isso, você precisa ter permanência de profissionais, que é o que esses contratos não têm. Esses contratos têm um turnover, só de médicos, de mais de 40%. Ou seja, eles não conseguem fixar os profissionais, portanto não conseguem fazer o papel da atenção básica. O usuário vai lá numa consulta com um médico, inicia um processo, na consulta seguinte é outro médico. Isso atinge diretamente a proposta do que seria uma atenção básica efetiva”, diz.

Ela diz que a situação nestas 15 unidades é agravada pelo fato de que a troca das equipes ocorre a dois meses de vencer o contrato em andamento com os hospitais Santa Casa, Divina Providência e Vila Nova, cujo fato de serem aditados permitiu a terceirização. Como o edital de chamamento público para a parceirização das 114 unidades de saúde por cinco anos ainda não foi concluído, não há nenhuma garantia de que as equipes de saúde que estão assumindo os postos não precisem ser trocadas novamente em setembro.

“A Prefeitura entregou a principal rede de atenção a terceiros, que a qualquer momento podem dizer que não se interessam mais. Ou seja, ela ficou na mão de terceiros, quando o gestor tem que fazer a gestão e controlar”, avalia Ana Paula.

Ela pontua ainda que, para além das críticas que o CMS tem para a prestação de serviços terceirizados, a descontinuidade gera um “efeito rebote” de gastos adicionais. “Um profissional pede um exame, entra outro e pede outro exame. Os exames se perdem porque não há continuidade. Tudo isso é custo indireto que não é contabilizado. Fora da questão das pessoas adoecerem, porque, se as pessoas não têm atendimento, a atenção básica não consegue fazer o trabalho que é justamente prevenir e promover a saúde para que as pessoas não precisem chegar a outro nível de especialização”, diz.

Para Ana Paula Lima, a descontinuidade gerada pelas mudanças de equipe é uma “irresponsabilidade sanitária”. “Não tem a garantia de que vão continuar essas entidades. É algo nunca visto do tamanho da irresponsabilidade da saúde pública que essa gestão está fazendo. Nem a gestão Marchezan conseguiu ser tão irresponsável do ponto de vista sanitário como a gestão atual”, diz.

O Conselho Municipal da Saúde também protocolou na última sexta um recurso administrativo pedindo a anulação do edital de chamamento público que busca selecionar organização da sociedade civil para execução de atividades na rede de Atenção Primária à Saúde do Município para os próximos cinco anos. O CMS subsidia o pedido citando os artigos 197 e 199 da Constituição Federal, que indicam, na interpretação do órgão, que os serviço de saúde são de responsabilidade direta do poder público e que instituições privadas podem atuar de forma complementar.

O Conselho diz que é alarmante que OSC com apenas um ano de experiência em serviço de saúde possam ser contratadas, bem como o fato de o edital permitir contratação de entidades de fora do município. A nota do CMS lembra o caso do Instituto Sollus, que assumiu a gestão de todas as equipes de saúde da família durante a gestão de José Fogaça, mas acabou sendo acusado de fraude e teve o contrato rescindido após denúncias, feitas pelo próprio CMS, em 2007. A Operação Pathos, da Polícia Federal em conjunto com o MPF, revelou que eram desviados R$ 400 mil por mês durante o período em que o contrato entrou em vigor. Além disso, a investigação apontou indícios de apropriação de R$ 4 milhões destinados a encargos trabalhistas. Ao todo, os desvios superariam R$ 9 milhões.

“Quando você pega as entidades daqui, elas têm um nome a zelar, têm uma responsabilidade social frente à comunidade. Agora, quando você pega uma entidade que não é daqui, é uma empresa que só tem o objetivo de lucrar com a situação, não tem nenhum compromisso com a cidade e muito menos com a saúde. Por isso que a gente denuncia o processo de empresariamento da saúde, onde o gestor municipal, em vez de fazer a gestão da política do SUS, está fazendo fazendo a gestão numa lógica empresarial. Isso não é compatível com o SUS, é outra coisa”, diz Ana Paula Lima.

O processo de terceirização das 15 unidades de saúde também gerou preocupação entre os servidores estatutários que atualmente trabalham nestes locais. Servidor municipal de saúde e ex-diretor do Simpa, Alberto Terres diz que o processo de terceirização das novas unidades chegou ao conhecimento dos trabalhadores há duas semanas e gerou uma forte reação da categoria, em razão do fato de que passariam a ser remanejados para outros postos de trabalho.

Como resposta ao pleito dos trabalhadores, Richard Dias e a diretora da Atenção Primária na SMS, Carolina Schirmer, têm realizado desde a semana passada visitas às 15 unidades de saúde para conversar com os servidores e com membros da comunidades. Terres acompanhou nesta terça-feira as visitas às unidades dos Passo das Pedras e da Lomba do Pinheiro.

“Nós estamos dizendo que isso faz parte de um projeto político do governo de terceirizar 100% da atenção básica. Eles não negam isso, só dizem que o planejamento não era para este momento, mas até o final do ano. Eles já verbalizaram, inclusive, a intenção de ampliar o contrato da PUCRS no Hospital Presidente Vargas, no HPS e no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul”, diz.

Também nesta semana, o Simpa ajuizou um pedido ao desembargador Eduardo Delgado pedindo admissão como terceiro interessado na ação em que o MP-RS busca o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2007. Na ação, o Simpa diz que o TAC vem continuamente sendo descumprido e que isso se intensificou a partir de 2019. “Essa política se intensificou no final do ano de 2019, quando do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos recursos manejados contra acórdão proferido por este colendo Tribunal Estadual que declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 11.062/2011, que criou o Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF), consoante já relatado nos autos pelo Ministério Público Estadual.”

Lembra que, em dezembro de 2019, a SMS realizou dispensa de chamamento público para firmar termo de colaboração com OSC para a terceirização de atividades de atenção primária à Saúde, o que resultou nas parcerias com a Associação Hospitalar Vila Nova, a Sociedade Sulina Divina Providência e a Irmandade Santa Casa de Misericórdia para a contratação e formação de equipes de saúde da família, atenção básica, atenção primária, saúde bucal e unidades de saúde.

Richard Dias diz que o entendimento da SMS é de que a complementariedade da iniciativa privada na prestação de serviços não é uma previsão constitucional, mas da Lei do SUS, e que a Constituição possibilita a prestação de serviços de saúde de forma indireta, por meio de parcerias. “O que tem ficar claro é que a complementariedade é geral, não se restringe a questão primária ou a questão hospitalar, e a gente tem carências”, diz.

A respeito das reclamações dos servidores, Richard Dias reconhece que a ampla maioria não queria deixar os atuais postos de trabalho e que, a partir das primeiras visitas às unidades que estão sendo terceirizadas, a SMS decidiu adotar novos critérios técnicos para definir a ordem de prioridade que os servidores terão para escolher para onde serão remanejados e que serão garantidos, após a remanejamento, férias e pedidos de licença já marcados.


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