Geral
|
1 de outubro de 2021
|
18:53

Para ‘dobrar população’ do Centro, Melo propõe flexibilizar regras para construtoras

Por
Luís Gomes
[email protected]
Centro Histórico está entre os bairros que ganharam projetos antes da revisão do Plano Diretor. Foto: Luiza Castro/Sul21
Centro Histórico está entre os bairros que ganharam projetos antes da revisão do Plano Diretor. Foto: Luiza Castro/Sul21

A revitalização do Centro Histórico de Porto Alegre era uma bandeira de campanha do prefeito Sebastião Melo (MDB). Quase dez meses após tomar posse, ele encaminhou na última segunda-feira (27) o projeto de lei que visa instituir o Programa de Reabilitação do Centro Histórico, promovendo alterações no Plano Diretor da Capital específicas para o bairro. O objetivo é aumentar a densificação do Centro, com meta de quase dobrar a população, dos atuais 45 mil residentes para cerca 85 mil. Para isso, permitirá a flexibilização do regime urbanístico atual com objetivo de facilitar o reaproveitamento de imóveis desocupados ou subocupados e facilitar a construção de novas edificações, que poderão ter alturas maiores do que as atuais. Em um dos cenários previstos, poderiam ser construídos prédios de até 200 m de altura.

O Sul21 conversou nesta semana com o secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos de Porto Alegre, Cezar Schirmer, titular de uma das pastas responsáveis por elaborar o projeto, sobre o que norteou o programa e como a Prefeitura pretende atingir os objetivos. Schirmer frisou que um dos problemas principais que a Prefeitura quer enfrentar é a queda populacional do bairro.

“Um dos problemas do Centro Histórico é a redução de população ao longo do tempo e também a redução de atividade econômica, e a redução de atrativos de diferentes naturezas. O que dá vida ao espaço urbano é gente e o que leva gente a morar, a frequentar ou a visitar, é um ambiente amigável, com atrativos de diferentes naturezas”, diz.

O secretário pontuou que foram identificados 115 prédios inteiramente desocupados em Porto Alegre e 85 terrenos baldios, para além de um número considerável de edificações que têm boa parte de seus imóveis desocupados, o que se verifica facilmente pelas placas de aluga-se e vende-se que há anos se proliferam pelo bairro. “Por exemplo, esse prédio inteiro do INSS atrás da Prefeitura. São vinte e tantos andares desocupados. Ali na Duque tem, no mínimo, cinco prédios abandonados. Na Andradas também tem, então, tem vários”, afirma.

Para “recuperar” esses imóveis e terrenos, a Prefeitura quer mudar o regime urbanístico para permitir que imóveis existentes sejam remodelados pelas construtoras para se adaptarem a condições consideras como adequadas pelo mercado e também permitir a reconstrução integral de edificações que não tenham interesse em reaproveitamento. “Essa proposta do Plano Diretor no Centro vai na direção de flexibilizar as questões relativas à construção, o reaproveitamento de prédios históricos, o retro fit, a questão de altura dos prédios”, diz.

Schirmer salienta, contudo, que cada caso será analisado de maneira individual. Ele cita o exemplo da antiga Confeitaria Rocco, prédio histórico de três andares localizado na esquina das ruas Riachuelo e Dr. Flores. Por ser tombado, este é um prédio que o secretário diz que terá que ser trabalhado com o cuidado de não perder suas características.

O Programa de Reabilitação indica sete imóveis tombados pelo patrimônio histórico como prioritários para a requalificação: Casa Godoy (Av. Independência, 456), Casa Torelly (Av. Independência, 453), Cine Imperial (Rua dos Andradas, 1051 e 1073), Pinacoteca Ruben Berta (Rua Duque de Caxias, 973), Prédio Andradas 1780 (Rua dos Andradas, 1780), Antiga Casa dos Leões – Instituto Zoravia Bettiol (Rua dos Andradas, 507) e Confeitaria Rocco (Rua Riachuelo, 163).

“Agora, tu pega um edifício antigo aqui do Centro, cinco andares, sem valor histórico, sem valor arquitetônico e não tombado. Por que o dono deixou deteriorar? Porque, se ele for desmanchar o prédio, no regime urbanístico atual, tem recuo lateral, tem recuo frontal, o terreno vai virar um pedacinho. Aí não tem sentido construir. Então, esse projeto de lei dá um regime diferenciado para o Centro. O cara que tem um edifício de cinco andares caindo aos pedaços, tem interesse em desmanchar e fazer um novo prédio em condições mais adequadas, com aproveitamento senão total do terreno, não um aproveitamento pequeno. É um aproveitamento que flexibiliza a possibilidade de construção, reconstrução e retrofit no Centro Histórico de Porto Alegre”, diz.

O retrofit citado por Schirmer seria permitir a mudança de destinação original do prédio. Por exemplo, possibilitar que um prédio de escritórios passe a também ter moradias, ou vice-versa, permitir que um hotel seja transformado em um edifício habitacional e mesmo que estacionamentos tenham outro tipo de uso. “Hoje, esses prédios antigos estão deteriorados, o valor de venda é baixo, exatamente porque são prédios sem os cuidados devidos, sem estímulos para uma reforma adequada”, diz.

O Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre (confira o documento ao final) apresenta 16 objetivos, são eles:

– Assegurar a reabilitação dos edifícios que se encontram degradados ou funcionalmente inadequados;

– Melhorar as condições de habitabilidade e de funcionalidade dos espaços edificados e não edificados;

– Recuperar a função residencial do Centro Histórico, incentivando a miscigenação de usos;
tecido urbano existente;

– Adoção de critérios de sustentabilidade nas edificações e nos espaços públicos;

– Produção de habitação de interesse social;

– Garantir a preservação e promover a valorização e a requalificação do patrimônio cultural;

– Promover projeto e ações culturais no território;

– Promover o desenvolvimento econômico do Centro Histórico;

– Promover projetos e ações de atendimento às demandas sociais, visando solucionar situações de vulnerabilidade social do território;

– Modernizar as infraestruturas urbanas locais;

– Requalificar os espaços abertos e os equipamentos públicos comunitários;

– Recuperar os espaços urbanos funcionalmente obsoletos;

– Promover projetos, ações e intervenções que contribuam para a segurança nos espaços públicos;

– Estabelecer um Modelo de gestão dedicado e integrado.

A Prefeitura destaca que o Centro tem, segundo dados de IBGE, 39 mil moradores em uma área de 2,44 km², o que representa uma densidade de cerca de 16.080 hb/km². O estudo compara com bairros que teriam perfis parecidos em grandes cidades do mundo, como o Leblon, no Rio de Janeiro, que tem densidade de 24 mil hab/km² e a Recoleta, em Buenos Aires, com 35 mil hab/km².

Com o Programa de Reabilitação do Centro Histórico, a Prefeitura pretende estimular a reconversão e a renovação do território. No caso da reconversão, o objetivo seria promover a “reciclagem do uso”, potencializando atividades sem incremento significativo de área construída em relação ao cenário atual. Já a renovação seria a possibilidade de substituição das edificações existentes, o que seria necessário pelas condições atuais dos imóveis ou pela subutilização do potencial construtivo. Neste caso, a Prefeitura prevê “acréscimo significativo de área construída”. A Prefeitura estima que a altura dos prédios permitida poderia chegar a até 200 metros, citando o entorno da Rodoviária como uma área para abrigar um imóvel do tipo.

No caso da renovação, em que seria permitida a construção de prédios com maiores alturas, a Prefeitura identifica as regiões das avenidas Siqueira Campos e Júlio de Castilhos como áreas de potencial de renovação muito alto.

O programa estima três cenários de aumento populacional: para 54.630 economia, 66.274 economias e 85.566. Segundo a Prefeitura, os três cenários manteriam o bairro dentro dos padrões de densidade sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas) e da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde).

A Prefeitura identificou que há, atualmente, 8.665 imóveis com potencial para ocupação que não estão sendo utilizados no Centro, dos quais 5.335 são consideradas como economias canceladas pelos dados do DMAE, 2.408 estão disponíveis para locação e 922 disponíveis para venda (no momento do diagnóstico).

Foto: Reprodução

No cenário de maior aumento populacional (para 85 mil economias), em que o Centro teria 46.982 economias a mais que hoje, 9 mil delas viriam a partir da reconversão de imóveis, 30 mil da renovação de lotes e 7 mil da estruturação dos imóveis.

Para estimular a implementação do programa, a Prefeitura está mudando o regime urbanístico do Centro e vai oferecer descontos no valor do solo criado para imóveis com edificações de interesse cultural (com exigência de restauração), imóveis que sejam destinados para a demanda habitacional prioritária e no caso da adoção de critérios de sustentabilidade no imóvel e no espaço público. Para a região das avenidas Mauá, Júlio de Castilhos e Voluntários da Pátria, cuja revitalização é considerada prioritária pela Prefeitura, o valor do solo criado será isento para projetos realizados nos primeiros três anos.

Para aderir ao Programa de Revitalização, as construtoras devem adotar ao menos quatro de uma lista de oito ações apresentadas pela Prefeitura, são elas: qualificação do passeio na frente do imóvel; qualificação das fachadas com frente para a vida pública; adoção do uso misto (residencial e não residencial); atendimento da Demanda Habitacional Prioritária; ações sustentáveis em edificações; requalificação ou restauração do Patrimônio Histórico; utilização de cobertura verde tipo Rooftop, com priorização do acesso público; ações em segurança pública nas edificações.

Na prática, o Programa de Reabilitação do Centro funciona como uma revisão do Plano Diretor, que deveria ter ocorrido no governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e foi atrasada pela pandemia, específica para o bairro. Para Clarice Oliveira, conselheira superior do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS) e professora do Departamento de Urbanismo da UFRGS, realizar um plano regional, específico para um bairro, pode ser interessante. Contudo, ela pontua que as apresentações da Prefeitura que precederam a formalização do projeto foram baseadas em dados que já são ultrapassados, como o Censo do IBGE de 2010. “Acho que é muito bom que se tenha a dimensão do bairro histórico, mas a questão é que isso não poderia ser feito dissociado de uma leitura atualizada do Centro”, diz.

Outra crítica que ela faz é que o programa tem como principal foco – e quase único – a mudança de parâmetros urbanísticos de lotes privados. “Acho que isso é um grande problema nesse programa. Ainda que diga nos seus objetivos e nas suas intenções que é um programa para o Centro Histórico, quando a gente vai analisar um pouco mais detalhadamente, não fica claro como será resolvida a questão da demanda habitacional prioritária, o que é considerado prioritário do programa. Não fica explicitado como serão as ações de preservação e qualificação do patrimônio histórico, não fica citado como será feita a otimização do transporte coletivo de massa”, diz.

A respeito de como a revitalização irá dialogar com o tema da mobilidade, Schirmer afirmou ao Sul21 que a Prefeitura contratou uma empresa para produzir um Plano de Mobilidade Urbana para o Centro Histórico e que este deverá ficar pronto em fevereiro do ano que vem.

“Tivemos uma reunião [nesta semana] para discutir se é um plano mais modesto ou se é mais ambicioso, mais arrojado, um projeto que seja inovador”, diz. “A ideia é que se possa fazer um plano muito arrojado, mas que ele possa ser implantando modularmente. Faz uma coisa esse ano, outra ano que vem. Claro que esse plano discute o alargamento das calçadas, a questão do estacionamento em algumas ruas do Centro, a abertura de ruas para o trânsito compartilhado com as pessoas, por exemplo na Borges, na Andradas e na General Câmara”.

Questionado sobre a questão da habitação popular, Schirmer pontuou que sua priorização está colocada como um dos objetivos do programa, mas disse: “Agora, por óbvio, não adianta trazer um morador para o Centro que não possa pagar o condomínio. Eu acho que tem que se considerar também essa realidade. Mas cada caso é um caso, ele não é um projeto excludente, pelo contrário, é um projeto de revitalização e também de miscigenação social”.

Clarice Oliveira pontua que a Prefeitura terá dificuldade para fazer uma análise caso a caso porque já teria dificuldade em relação ao corpo técnico.

Ela também questiona a estratégia de aumentar a densificação do bairro por meio da venda do solo criado — isto é, o quanto que a Prefeitura autoriza uma empresa ou indivíduo a construir em um determinado terreno. “O que fica por trás da altura dos prédios é que, hoje, a venda de estoque de solo criado no Centro já foi atingida, não existe mais solo criado à venda. Então, na verdade, o que o programa faz é estipular novos índices de solo criado para ser vendido. Tem essa ideia de que o Centro é um lugar vazio, sem vida, quando mesmo os dados apresentados pelo própria Prefeitura em diagnóstico — são dados de 2004, por isso que digo que são defasados — dizem que o Centro é o sexto bairro mais populoso da cidade e o terceiro em densidade populacional.”

A arquiteta ressalta ainda o fato de o programa apresentar um mapa de lotes com potencial de renovação e que a maioria deles está na área residencial do bairro, na Av, Duque de Caxias e arredores, uma área que já teria altíssima densidade populacional. “Tem uma retórica e uma narrativa de que o Centro precisa ser revitalizado, que as pessoas precisam ocupar o Centro, mas os dados que são apresentados não afirmam isso, esse é o primeiro estranhamento. Eu sou moradora do Centro Histórico e digo: a parte residencial tem vitalidade, tem dinâmica urbana, tem miscigenação, tem todos esses elementos que o programa coloca como objetivo. E eu vejo com grande estranheza que tem todos os esses lotes de potencial de renovação exatamente nessa área. Na verdade, é uma descaracterização. Tem esses elementos aí para discussão.”

Neste sentido, Clarice afirma que o Centro hoje é caracterizado por ter moradores de diversas classes sociais e que o plano da Prefeitura, aparentemente, busca a atração de investimentos de padrão elevado, o que poderia significar um processo de gentrificação do Centro, aumentando o valor dos terrenos e, consequentemente, excluindo parcelas dos moradores que não terão mais condições de arcar com os custos de moradia no bairro.

Outra consequência que ela teme que pode advir do programa é um impacto não planejado pela Prefeitura nos serviços, na infraestrutura e no trânsito do bairro. “A parte residencial já tem um limite, como fica isso? O programa não traz nem na parte de diagnóstico, nem na parte de propostas, nenhuma consideração sobre o impacto dessa densificação populacional do ponto de vista de outras infraestruturas, como, por exemplo, a coleta de lixo. A realidade do Centro são contêineres que não dão conta do que precisaria atualmente. Como ficaria se colocar uma torre de 200 metros?”, questiona. “Todas as infraestruturas deveriam ser pensadas para acompanhar esse adensamento, mas o projeto deixa a desejar nisso”.

Loader Loading…
EAD Logo Taking too long?

Reload Reload document
| Open Open in new tab

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora