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16 de outubro de 2021
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10:50

Coragem para enfrentar os automóveis? Plano de mobilidade do Centro promete priorizar pedestres

Por
Luís Gomes
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Plano de mobilidade do Centro está em elaboração e deve ficar pronto em março de 2022 | Foto: Luiza Castro/Sul21
Plano de mobilidade do Centro está em elaboração e deve ficar pronto em março de 2022 | Foto: Luiza Castro/Sul21

A Prefeitura de Porto Alegre apresentou, no final de setembro, o Programa de Reabilitação do Centro Histórico, uma espécie de plano diretor do bairro que tem o objetivo de mudar as regras para a construção civil e atrair mais moradores para a região. Paralelamente, está em elaboração um plano de mobilidade para o Centro, que terá como objetivo apresentar propostas para qualificar a circulação de pedestres, bicicletas, transporte público e veículos no bairro. Contratado no final da gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) ao valor de R$ 1.086.320,00, o plano está sendo elaborado por uma consultoria privada, a Matricial Engenharia Consultiva, em parceria com a Secretario Municipal de Mobilidade Urbana. O Sul21 teve acesso aos objetivos e diretrizes que estão sendo trabalhadas no momento e discute nesta reportagem algumas das propostas para a mobilidade no Centro.

Um dos responsáveis técnicos da secretaria, o engenheiro João Paulo Cardoso Joaquim destaca que o plano de mobilidade do Centro faz parte do Plano de Mobilidade Urbana (PMU), que é um documento de planejamento do setor obrigatório para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes. Pela legislação federal de 2012, que criou a obrigatoriedade, as Prefeituras teriam três anos para implementar o seu PMU, mas este prazo foi prorrogado em diversas oportunidades, sendo abril de 2022 a data limite no momento. Por lei, os planos devem também garantir a priorização do transporte coletivo em detrimento do transporte individual.

Caso o prazo atual não seja cumprido, a Prefeitura não poderia obter recursos públicos para projetos de mobilidade, o que afetaria projetos em andamento na Capital, como a duplicação da Av. Voluntários da Pátria.

João Paulo afirma que, apesar de não ser um documento obrigatório, o plano de mobilidade do Centro terá os mesmos objetivos do PMU, que também está em elaboração. A diferença é que não precisará virar lei. “Na verdade, ele só é uma escala menor desse plano de mobilidade, mas as diretrizes são as mesmas. Promoção de melhorias dos espaços públicos, um incentivo das pessoas caminharem, melhoria nas questões de acessibilidade, a reorganização do transporte público dentro da região central”, diz.

No momento, ele afirma que a Prefeitura ainda não está trabalhando com propostas concretas, pois o plano ainda está em fase de elaboração, mas ressalta que a ideia é que ele esteja alinhado com o programa de revitalização do Centro, apresentado pela Prefeitura no final de setembro e que tem como um de seus objetivos dobrar a população do bairro. “Vão ser ações para promover o resgate dessa presença das pessoas na área central, alinhado com essa proposta de revitalização do Centro Histórico. Não priorizando tanto o transporte motorizado, melhorando questões de calçadas, revendo situações de problemas de acessibilidade. A questão do transporte público, que a gente sabe que é de todos os ônibus chegando à área central. Será que isso é razoável no âmbito da revitalização da área central?”

A pedido da reportagem, a Matricial cedeu ao Sul21 a apresentação do Plano de Mobilidade do Centro Histórico que vem sendo utilizada pela empresa neste mês de outubro. O documento, que consiste em um pdf com objetivo, diretrizes e etapas a serem adotadas pelo plano, estabelece dois objetivos gerais. São eles: definir uma estratégia para promover o equilíbrio da mobilidade, a valorização e sustentabilidade e integrar o centro à Orla, Cidade Baixa e 4º Distrito; e desenvolver programas específicos, com ações de curto, médio e longo prazo para direcionar e ordenar a circulação, melhorando as condições de mobilidade.

Para cumprir esses objetivos gerais, o plano em elaboração elenca uma pirâmide de prioridades, que tem pedestres em primeiro lugar, seguidos por ciclistas, transporte público, transporte de carga e, por fim, carros e motos como modalidade de menor prioridade.

A Matricial lista, neste momento, seis objetivos específicos para a Prefeitura buscar a partir do plano de mobilidade do Centro: estimular os deslocamentos por transporte ativo (a pé e de bicicleta), aumentar a conectividade com a Orla do Guaíba e 4° distrito, priorizar o transporte coletivo, aumentar a acessibilidade à área central, diminuir os impactos negativos da mobilidade na área central e valorizar o ambiente histórico e cultural.

Sul21 teve acesso a apresentação elaborada pela Matricial | Foto: Reprodução

A empresa estabelece ainda uma série de diretrizes, que funcionam também como propostas de ações, ainda que a maioria delas no campo conceitual, para que os objetivos possam ser alcançados. São elas:

– Qualificar e ampliar os passeios e equipamentos urbanos visando facilitar os deslocamentos a pé;
– Qualificar a acessibilidade de pedestres, através da remoção de obstáculos, adequação do piso e construção de rampas;
– Desenvolver políticas de moderação da velocidade do tráfego visando aumentar a segurança viária;
– Qualificar a acessibilidade para o transporte cicloviário;
– Qualificar a acessibilidade ao transporte coletivo;
– Priorizar o transporte coletivo em relação ao transporte individual motorizado;
– Ampliar o atendimento do transporte coletivo junto à orla da Usina do Gasômetro;
– Reduzir da quantidade de linhas que chegam ao centro;
– Desenvolver ações para desestimular o uso do transporte individual
– Reduzir o tráfego de passagem na área central;
– Aumentar a acessibilidade nas ruas peatonais por transporte motorizado;
– Diminuir a interferência das operações de abastecimento na mobilidade.

A reportagem do Sul21 conversou com o engenheiro André Bresolin Pinto, um dos responsáveis técnicos pela Matricial, a respeito do plano de mobilidade do Centro Histórico. Ele destaca que a consultoria já tem um pré-diagnóstico sobre a situação da mobilidade no bairro, mas que o trabalho ainda está em fase de conclusão das pesquisas, ao mesmo tempo em que propostas em elaboração já estão sendo discutidas com a Prefeitura. A previsão, no momento, é de que o trabalho seja concluído em março do ano que vem.

“A empresa é aqui de Porto Alegre, então a gente conhece bem a mobilidade, já sabemos os problemas do transporte coletivo, os problemas dos pedestres, de carga e descarga, das calçadas, etc”, diz.

Apesar de o plano não estar pronto, ele confirma que um dos eixos principais da proposta que está sendo pensada para cumprir objetivos e diretrizes de dar maior integração do Centro com a Orla é a remoção do Muro da Mauá, o que poderia ser parcial ou total. No caso de uma remoção parcial, mais provável, ele ressalta que isso dependeria de estudos hidrológicos e da coordenação com o novo projeto do Cais Mauá, que está em desenvolvimento.

Questionado sobre como poderia ser feita, de forma realista, a priorização do transporte público em detrimento ao transporte individual na Capital, André Bresolin afirma que isso pode ocorrer por meio da redistribuição do espaço viário, com medidas como a eliminação de estacionamentos e transformação de faixas de uso misto em faixas exclusivas para ônibus.

Ele ainda observa que é possível adotar outras medidas indiretas para reduzir a circulação no Centro. “Aumentando a atratividade das outras modalidades de transporte através redistribuição do espaço viário (aumento de calçadas, implantação de ciclovias, implantação de faixas exclusivas para transporte coletivo e redução do estacionamento na via) e melhoria do conforto e segurança (remodelação de pontos de embarque e desembarque, bicicletários etc.). Desestímulo à utilização da área central como rota de passagem para veículos que não têm origem ou destino no centro da cidade através de medidas de moderação de tráfego (redução das velocidades nas vias da área central, transferência de parte da capacidade viária usada para automóveis para outras modalidades de transporte). Com essas mudanças, aqueles que não têm destino no Centro serão incentivados a utilizar outras partes do sistema viário existente (túnel e 3ª perimetral, por exemplo)”, afirma.

O responsável técnico pela Matricial também destaca que estão sendo pensadas propostas de mudanças estruturais para o transporte coletivo, o que impactaria não só o Centro como toda a cidade. “Quando se fala em reduzir a quantidade de linhas que chegam ao Centro não se trata de reduzir a oferta de transporte coletivo, mas reduzir a quantidade de itinerários diferentes que chegam e saem do centro da cidade. Hoje em dia, principalmente no transporte metropolitano, existem muitas linhas que têm apenas um ou dois horários no dia, o que faz com que as pessoas tenham que esperar muito e os terminais fiquem sobrecarregados fazendo com que a operação seja ineficiente e as condições de conforto e segurança dos usuários seja fortemente impactada. Para resolver isso, é necessário reorganizar o sistema com a implantação de algum nível de troncalização. Isso permitiria reduzir os tempos de espera dos usuários e em alguns casos suprimir os terminais”, diz.

Bresolin avalia que esta troncalização, que poderia ser obtida com a separação entre as linhas que atendem as grandes avenidas e outras que atendem os bairros, poderia ser alcançada, em parte, com pouco investimento, mas salienta que benefícios maiores só seriam possíveis a partir da integração do sistema de ônibus da Capital com outros sistemas metropolitanos, com a construção de terminais de transferência ao longo dos corredores e com a implantação de BRTs, o que fora prometido para a Copa de 2014 e ainda não saiu do papel na Capital. “Essas questões extrapolam a abrangência do estudo do centro que estamos desenvolvendo, mas, mesmo assim, serão abordadas como soluções de médio e longo prazos”, diz.

Por outro lado, ele adianta que serão propostas medidas mais pontuais, como o uso de tecnologia para melhorar a relação do usuário com o sistema. Isso passaria, por exemplo, pela informatização das plataformas de embarque com painéis eletrônicos que trazem informações sobre o fluxo de linhas. “Isso é medida de curto prazo, inteligência aplicada e reduz os tempos e locais de espera dos passageiros”, diz.

Outra medida que está sendo considerada é o uso dos chamados estacionamentos dissuasórios, que são locais em que o motorista deixaria o seu carro e poderia acessar um modal de maior capacidade. Com isso, poderia se permitir um acesso mais rápido ao Centro e, ao mesmo tempo, melhor circulação de pessoas.

O engenheiro ainda destaca que poderão ser propostas intervenções no entorno do Mercado Público, como a eliminação ou transferência de local dos terminais existentes e a criação de um estacionamento subterrâneo no Largo Glênio Peres, medidas que teriam o objetivo de recuperar a atratividade da área. “São medidas que impactam pouco nas contas públicas porque podem ser implementadas através de concessões ou parcerias público-privadas”, diz.

Bresolin ressalta, contudo, que o trabalho ainda está em elaboração e que propostas de maior poder de transformação e impacto irão demandar discussões com a sociedade e, inclusive, mudanças na legislação da Capital, o que passaria pela Câmara dos Vereadores.

Doutor em Transportes e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Júlio Celso Borello vê possíveis impactos preocupantes no programa de revitalização do Centro, especialmente a ideia de dobrar a população do bairro, e destaca justamente a questão da mobilidade. “A primeira impressão é de que tem uma tese aparentemente defensável, botar mais gente morando no Centro. Alguns estudos justificam essa tese como razoável, mas há uma ausência de estudos sobre o impacto na mobilidade, que, tirando a questão do saneamento, é onde a densidade mais se reflete. Movimento, estacionamentos, congestionamentos, ocupação das ruas, qualidade das ruas. Falta especificidade, está muito incipiente o papo sobre mobilidade no programa de revitalização”, diz o professor.

Borello destaca que, quando se fala em mobilidade de bairros centrais, há quatro diretrizes que são consideradas como essenciais pelos especialistas: remover todo o tráfego de passagem (aquele que não tem o Centro como destino), reduzir o estacionamento de carros nas ruas, criar zonas em que o pedestre tenha prioridade e priorizar o transporte público em modos lentos.

“É muito simples a questão. É questão de ter coragem de enfrentar quem historicamente foi privilegiado, que é o carro”, diz, ressaltando que, por outro lado, seria precisa qualificar o transporte público. “Tu aperta o carro para o cara não usar, e oferece um sistema de qualidade”.

Para o professor, há uma série de medidas que podem ser tomadas neste sentido. “Em determinadas áreas, tu não pode entrar em determinados horários. Ou dá para entrar, mas tem que pagar um estacionamento caro. Deveria ter área azul em praticamente tudo, tirando a periferia e áreas residenciais. Por exemplo, ali na frente da UFRGS, o cara pode ocupar um espaço público de graça durante o dia inteiro, num dos lugares mais nobres da cidade. Então, estacionamento pago, áreas mais restritas, mais corredor de ônibus, mais ciclovia, mais parklets, calçadas mais largas. E isso não é comunismo, são políticas adotadas mesmo nos EUA, na França, na Inglaterra, na Argentina, na Colômbia”.

Em entrevista com o Sul21 sobre o programa de revitalização do Centro, o secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos de Porto Alegre, Cezar Schirmer, destacou que a Prefeitura estava discutindo se adotaria um plano de mobilidade para o Centro que fosse mais arrojado ou uma versão mais modesta. Na ocasião, adiantou que uma das ideias era priorizar o pedestre, mas também abrir as ruas do Centro para a convivência do carro com o cidadão a pé. “Claro que esse plano discute o alargamento das calçadas, a questão do estacionamento em algumas ruas do Centro, a abertura de ruas para o trânsito compartilhado com as pessoas, por exemplo na Borges, na Andradas e na General Câmara”, disse Schirmer.

O professor Borello afirma que o conceito de ruas completas, em que há o compartilhamento do espaço entre pedestres, bicicletas e carros, é uma “moda sustentável do mundo”. “Tudo isso é uma tese bonita, mas funciona em sociedades mais homogêneas e avançadas. Aqui, o que está por trás é uma visão de manutenção dos privilégios do automóvel. Não tem nenhum prefeito até agora, e esse menos ainda, que enfrente a classe média alta motorizada, que apresente dificuldades para ele”, diz. “A chave da mudança na mobilidade sustentável no mundo inteiro é ter a coragem de atrapalhar um pouco a liberdade infinita que quem tem carro tem de ir para qualquer lugar. Enquanto pegar o carro for melhor do que qualquer outra coisa, não tem mudança”.

Ele pondera que, nos últimos anos, o que tem se visto em Porto Alegre é uma permissividade ainda maior para o automóvel. “Carros no corredor de ônibus, carros no Centro, carros dentro do parque. Agora, tu vai na Redenção, e tem carros circulando”.

Borello destaca como exemplo disso a Orla do Guaíba, em que, após a revitalização, foi priorizada a construção de estacionamentos quando, na avaliação dele, o que deveria ter sido feito é o estímulo ao acesso à região por meio do transporte público ou mesmo de aplicativos, o que poderia ter sido feito com a restrição de trechos apenas para o embarque e desembarque de pessoas. Como resultado da priorização dos carros, diz, o que se vê são congestionamentos que se formam em todos os finais de semana.

“O grande problema do Centro, eu diria, é a desorganização, no sentido de que o sistema de mobilidade, a política de moradia, de empregos, de lazer, etc, é tudo desconectado, é cada um por si. A mobilidade do Centro atende basicamente passagem, mas também tem muita chegada. Os edifícios garagem estão decadentes, porque as pessoas preferem pegar Uber em vez (de deixar o carro), então tem uma necessidade de mudança e organização, mas não é só essa coisa de encher, botar mais gente, o que vai levar é a uma mudança de perfil. O que está por trás disso é torná-lo mais atraente para a classe média e alta e para investimentos imobiliários, que hoje estão congelados porque o Centro é pobre. Reflexo da nossa realidade, nós somos pobres”.

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