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20 de junho de 2021
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09:09

Deputados do RS aprovam homeschooling: ‘Ninguém está pensando na proteção das crianças’

Por
Luís Gomes
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"Como pensar ser interessante uma educação que fique restrita ao âmbito familiar?" (Foto: Steven Weirather/Pixabay)

No dia 8 de junho, a Assembleia Legislativa aprovou, por 28 votos a favor e 21 contrários, o Projeto de Lei nº 170/2019, de autoria do deputado Fábio Ostermann (Novo), que autoriza pais ou responsáveis a adotarem a metodologia da educação domiciliar, também conhecida como homeschooling, para seus filhos no Rio Grande do Sul. Isto é, permite que sejam educados em casa, o que atualmente é proibido no Brasil. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou no último dia um projeto de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF) que tem o objetivo de descriminalizar a educação domiciliar. Contudo, especialistas em educação ouvidos pelo Sul21 apontam uma série de problemas relacionados à liberação da prática no Brasil.

De acordo com o texto do projeto, a educação domiciliar passa a ser admitida “sob o encargo dos pais ou dos responsáveis pelos estudantes, observadas a articulação, supervisão e avaliação periódica da aprendizagem pelos órgãos próprios dos sistemas de ensino, nos termos das diretrizes gerais estabelecidas por esta lei”.

O Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) consideram crime os pais deixaram um filho de 6 a 14 anos fora da escola, prevendo que podem responder por “abandono intelectual” caso não tomem iniciativas de matricular a criança ou adolescente na escola e garantir sua frequência. A pena prevista é de detenção de 15 dia a um mês ou multa.

A legislação aprovada diz que “é plena a liberdade de opção dos pais ou responsáveis entre a educação escolar e a educação domiciliar”. Estabelece ainda que a educação domiciliar pode ser adotada a qualquer momento, desde que comunicada expressamente à instituição escolar à qual o estudante estiver matriculado. O texto do PL 170 diz que a opção deve ser declarada à secretaria de Educação do município de residência por meio de formulário que o órgão terá de disponibilizar. O preenchimento do formulário terá então o mesmo efeito legal de uma matrícula.

Em resposta à reportagem, o deputado Fábio Ostermann afirmou que a inspiração para o projeto foi o “acórdão do Supremo Tribunal Federal que decidiu que a Educação Domiciliar não é incompatível com a Constituição Federal” e os “valores liberais” que regem o seu mandato.

“Atualmente, existem mais de 60 países em que há lei específica permitindo o ensino domiciliar ou não há nenhum impeditivo legal para a prática. Os marcos regulatórios entre todos os países são bastante diverso, havendo desde legislações flexíveis e com pouca atuação de agentes do sistema regular de ensino, até modelos híbridos em que o aluno deve comparecer à rede regular para realização de determinadas atividades. A regra na educação domiciliar é a flexibilidade, permitindo um ensino personalizado e que atenda às condições e necessidades de cada família, sempre garantindo o direito à educação dos menores”, afirma Ostermann.

Segundo ele, a proposta traz um avanço importante para mais de mil famílias do Estado que já estariam adotando a educação domiciliar. “O nosso PL 170/19 busca apenas reconhecer um direito e garantir segurança jurídica para estas famílias e outras que, porventura, demonstrem a aptidão para a prática e optem por este caminho. Essas famílias cumpridoras de seus deveres não querem permanecer em uma situação precária, vivendo à margem da lei, como se estivessem cometendo algum tipo de delito. Elas buscam apenas educar seus filhos sem ter de responder a processos judiciais e gozando dos mesmos direitos das famílias que adotam o ensino escolar regular, como a possibilidade de matricular os filhos em uma escolinha de futebol, frequentar bibliotecas públicas e outras atividades que exijam comprovação de vínculo educacional. O homeschooling no Brasil já é um fato social. Cabe a nós garantirmos o reconhecimento jurídico”, diz.

Marcele Frossard, assessora de políticas sociais da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, pontua que a entidade é contra a educação domiciliar, não sendo a favor da descriminalização, nem da regulamentação. Contudo, explica que há uma diferença entre as duas situações.

Ela explica que, nos Estados Unidos, o ensino domiciliar não é criminalizado, sendo permitido às famílias educarem os filhos em casa sem restrição, mas não existe uma regulamentação. “Cada pai, cada família decide oferecer isso da maneira que quiser. Não diz quantas horas essa criança tem que estudar por dia, que materiais ela tem que usar, não existe nenhuma definição sobre isso. Porque a ideia do homeschooling é que é um direito dos pais decidirem o que os filhos vão estudar e é por isso que eles não querem os seus filhos nas escolas”, afirma.

Marcele pontua que a legislação gaúcha, e outra em discussão no Distrito Federal estão propondo a regulamentação da matéria.

Segundo ela, a principal crítica da Campanha Nacional contra todos os projetos relativos à educação familiar é que a metodologia retira das crianças e adolescentes a dimensão do convívio social que só é possível na escola.

“Os defensores dessa modalidade de ensino sempre se baseiam em questões acadêmicas, sempre defendem que as crianças que estudam em casa têm melhores resultados em avaliações, que elas sabem mais que as crianças que estudam nas escolas, só que existe outra dimensão da escola que não é só o aprendizado de conteúdos. A escola é muito mais do que o ensino de conteúdos. A escola é uma vivência, uma experiência, é conviver com a diversidade, com pessoas diferentes do que convive dentro da sua casa. É você conviver longe do olhar do seu pai e da sua mãe para desenvolver a sua própria personalidade, gostos e interesses. Tem também um desenvolvimento da autonomia dos sujeitos que começa desde a infância. Então, tem todo um desprezo por uma pedagogia, por uma ciência pedagógica, por uma técnica, por um conhecimento da educação que é muito mais do que o ensino em si, a prática de ensinar um conteúdo”, diz.

Na mesma linha, a doutora em Educação Carmem Maria Craidy, professora aposentada da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante ativa do Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioeducação (Ciess), vinculado à Faced, avalia que não há justificativas pedagógicas, psicológicas ou sociais para o homeschooling e considera a aprovação do projeto pela Assembleia um atraso.

“Negar a escola e querer escolarizar exclusivamente na família é voltar séculos atrás, quando a educação se dava no lar, não havia escola para todos, como se conquistou na modernidade”, diz. “A educação na família é naturalmente muito importante, a família é o primeiro espaço de socialização, mas a escola amplia a socialização e dá condições de formação da cidadania e de inserção da criança e do adolescente no ambiente social mais amplo. Não há nenhuma razão para confiná-la dentro da família sem a possibilidade de convivência com os pares. A convivência com os pares é indispensável, tanto na formação da inteligência, como na formação emocional e social. É indispensável para aprender a convivência com a diferença, com os diversos. Indispensável, em todos os sentidos, para o desenvolvimento pessoal”, afirma.

Para ela, a única explicação para o projeto é a radicalização ideológica. “É um grupo idelogicamente radicalizado que, em função de motivações religiosas, pretensamente de valores, busca resguardar seus filhos do mundo”, afirma.

Marcele Frossard diz que, pelo acompanhamento que a Campanha vem fazendo do tema, a defesa da educação familiar está ligado a um lobby muito forte de movimentos políticos conservadores. “Isso é o extremo do privatismo, porque você tira a criança completamente da vida pública para a vida privada. A escola é um espaço de educação pública. Mesmo que seja privada, você tem o convívio com o público, com famílias diferentes, com perspectivas diferentes, com professores e profissionais que pensam diferente da sua família. Então, colocar o filho dentro de casa sob o olhar desses pais e essa vigilância permanente é um controle muito grande. Combina com esse conservadorismo que não quer conviver com a diferença, que não quer conviver com a pluralidade e prefere se isolar e criar suas crianças sem contato com essa diversidade. De outro lado, é extremamente desvantajoso porque nenhum desses projetos, nem o do Rio Grande do Sul, do Distrito Federal ou o que está na Câmara, pensa no direito subjetivo da criança e do adolescente. Nenhum projeto está pensando no impacto disso na proteção das crianças e adolescentes”, afirma.

Para Carmem Maria Craidy, o primeiro problema da legislação aprovada no Rio Grande do Sul é que a Assembleia Legislativa não teria competência para modificar leis federais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. “Isso está dito de forma explícita na manifestação do STF, que declarou que isso infringia lei infraconstitucional e só poderia ser votado no Congresso Nacional. Então, a troco de quê a AL-RS se deu o direito de votar e aprovar essa lei?”

A promotora Luciana Cano Casarotto, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), concorda com a avaliação de que a proposta de regulamentação do homeschooling pela Assembleia é ilegal, defendendo que a regulamentação da matéria poderia ser feita apenas pelo Congresso Nacional.

Ela diz que cada promotor do MP tem a sua independência funcional, mas que, institucionalmente, o órgão é “radicalmente contra o homeschooling na forma como está hoje”. “Hoje se vê como algo ilegal, que pode, inclusive, ser passível de punição criminal, porque é um abandono intelectual de um filho deixar sem a matrícula na escola regular”, diz.

O deputado Fábio Ostermann, no entanto, avalia que a Assembleia pode, sim, legislar sobre a pauta. “Primeiramente, é necessário pontuar que a Constituição deixa claro no artigo 24, IX, que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre educação e o parágrafo 3º, do mesmo artigo, determina que na ausência de norma federal sobre o tema, os Estados exercerão a competência legislativa plena”, diz.

Ostermann diz também que o projeto aprovado não confronta a LDB, porque não versa sobre a educação familiar, mas unicamente sobre a educação escolar. “O nosso PL apenas institui o regramento necessário para que se possa acompanhar e fiscalizar a educação domiciliar, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 888.815, garantindo segurança jurídica para as famílias que adotam a prática e resguardando o direito de acesso à educação de seus filhos”, diz.

A promotora Luciana Casorotto explica que, caso a legislação seja sancionada pelo governador, caberá ao procurador-geral de Justiça do Estado, Marcelo Dornelles, analisar a constitucionalidade da lei e avaliar se o Ministério Público tomará medidas que entender cabíveis para contestar a promulgação, caso a considere irregular.

Um dos pontos destacados pelas especialistas ouvidas pela reportagem nesta matéria como mais problemáticos é a questão da fiscalização da educação domiciliar pelo Estado. O PL 170 afirma que as famílias que optarem pela metodologia deverão manter registros das atividades desenvolvidas pela criança ou adolescente e apresentá-los sempre que o Poder Público exigir. Diz ainda que estes estudantes deverão ser submetidos a provas institucionais aplicadas pelo sistema público de educação que estejam adequadas à LDB.

“O ensino ofertado na modalidade domiciliar deverá compreender os conteúdos programáticos mínimos seguidos pela rede regular de ensino. O atendimento aos conteúdos básicos deverá ser avaliado por meio de avaliações periódicas a serem realizadas pela rede pública de ensino ou pela rede privada, mediante convênio”, diz o deputado Ostermann.

O projeto prevê ainda que a fiscalização das atividades deverá ser feita pelo Conselho Tutelar, em relação aos direitos das crianças e adolescentes, e pela Secretaria Estadual de Educação e secretarias municipais, no que diz respeito ao cumprimento do currículo mínimo estabelecido. O PL encerra dizendo que a lei ainda poderá ser regulamentada pelo Poder Executivo.

De acordo com a Casa Civil, o governador ainda está estudando se irá sancionar ou vetar a legislação aprovada. Na terça-feira (15), ele se reuniu com Ostermann para tratar do tema. Em caso de veto, a Assembleia ainda teria a possibilidade de derrubar a decisão do governador e promulgar a legislação. Leite deve tomar uma decisão até o dia 1º de julho. Caso não o faça, a lei poderá ser promulgada pela presidência da Assembleia.

Carmen Craidy afirma que, do ponto de vista social, a medida não terá grande impacto, porque são pequenos grupos que defendem esta possibilidade, mas avalia que ela cria um complicador para o sistema de ensino, pois obriga o Estado a fiscalizar e avaliar a atividade escolar feita fora do sistema sem verbas específicas para isso.

“É um complicador para o sistema de ensino, que já tem falta de pessoal, não tem uma verba específica para isso e vai ter que designar professores para supervisionar os pais, controlar os conteúdos e aplicar provas. Não tem nenhum sentido uma coisa dessas”, diz. “Vai ser uma espécie de escolarização sem frequência. Estarão matriculados, terão que cumprir todos os conteúdos e fazer as provas, só que ficam em casa. Mas para quê ficar em casa?”, questiona.

A promotora Luciana Casarotto diz que o MP vê com preocupação a questão da fiscalização da educação domiciliar. “Como vai se saber qual é o aproveitamento pedagógica dessas crianças? A criança também, não saindo do ambiente doméstico, pode estar sujeita a uma série de violações que ficam mais difíceis de se modificar. Claro que as famílias, normalmente, são protetivas, mas, infelizmente, algumas não são e a escola é uma grande porta de entrada para noticiar fatos que não deveriam acontecer, mas às vezes acontecem, como a gente sabe”, diz.

Casarotto também vê com preocupação a possibilidade de fragilização da educação pública, uma vez que a implementação da fiscalização do homeschooling exigirá recursos que poderiam ser revertidos para a qualificação das redes públicas.

“Neste momento de pandemia, em que o que se quer é que as crianças estejam na escola, a grande preocupação do Ministério Público é com a evasão escolar, com a garantia de uma educação pública remota de qualidade, então a gente está trabalhando na conectividade dos alunos. Aí vem um projeto de homeschooling, um contrassenso, tirando a nossa energia para outro ponto, num universo tão limitado como são as famílias que pretendem esse tipo de ensino. Enfim, o momento é inadequado, a discussão não está no local correto, uma série de fatores que não convergem para o fim da educação pública de qualidade”, diz.

Marcele Frossard também critica o fato de que as plataformas ou outros investimentos que precisaram ser feitos para o acompanhamento e supervisão destas atividades utilizarão recursos da educação pública. “É muito fácil falar mal da escola pública para favorecer a educação domiciliar”, diz.

A assessora da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação também vê com preocupação a possibilidade das crianças em educação domiciliar poderem estar mais suscetíveis a abusos ou situações de violência, uma vez que a maioria destes dos casos ocorrem dentro do ambiente familiar. Segundo levantamento feito pela GloboNews a partir de denúncias feitas ao Disque 100, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), o Brasil registrou 95.247 denúncias de violência contra a criança e o adolescente em 2020, dos quais 67% tiveram como cenário a própria casa onde residem a vítima e o suspeito.

Para Marcele, fora da escola, as crianças perdem a proteção de órgãos responsáveis por fazer a fiscalização desses casos. “Você é um adulto, se acontece alguma coisa com você, contrata um advogado ou vai na Defensoria Pública e vai atrás dos seus direitos. Se você for criança e os pais te batem ou o professor nota que você mudou de comportamento de uma maneira muito brusca e te encaminha para o serviço pedagógica, vai ser acionada toda uma rede de proteção pública, que é o Conselho Tutelar, Ministério Público. Começa todo um processo para amparar essa criança, mesmo nas escolas particulares. Se essa criança está em homeschooling, é como se a gente tirasse toda essa rede de proteção que ampara essa criança, todas as possibilidades que foram construídas nos últimos 30 anos de defesa, amparo e garantia de direitos para crianças e adolescentes, e entregasse apenas na mão dos pais dessa criança. Ela não tem mais direitos, porque eles não falam em seus discursos no direito da criança e do adolescente neste processo, estão falando do direito dos pais de educarem seus filhos da maneira como eles quiserem. E todos eles pressupõe que nenhum desses pais vai ser abusador, que nenhum desses pais vai esmurrar seus filhos, nenhum deles vai perder a paciência num dia e vai bater”, afirma.

Ela também considera que o debate sobre a regulamentação ocorre num momento inadequado. “Isso não era para ser nem um pouco a prioridade. Era para a gente estar conversando sobre acesso à internet para as crianças que estão em casa há mais de um ano sem estudar. A gente tem mais de 5 milhões de crianças que não voltaram para a escola desde quando começou a pandemia”, diz.


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