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28 de janeiro de 2019
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17:29

Igreja Anglicana celebra primeiro casamento LGBT do Rio Grande do Sul

Igreja Anglicana celebrou união de duas mulheres neste sábado | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Igreja Anglicana celebrou união de duas mulheres neste sábado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

“Quem não ama não conhece Deus, porque Deus é amor”. 

As palavras proferidas pela reverenda Elaine Nascimento, uma das ministrantes da cerimônia, resumiram o tom do primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo realizado pela Igreja Episcopal Anglicana no Rio Grande do Sul, que oficializou a união de Isabella de Vargas Gross e Kauana Rosa Rodrigues. Na noite deste sábado (26), a Catedral Anglicana da Santíssima Trindade, localizada na Rua dos Andradas, foi decorada com as cores do arco-íris, e uma bandeira LGBT estava colocada ao lado do altar.

Elaine e o reverendo Jerry Santos, deão da Catedral, falaram por cerca de 30 minutos, a partir de textos retirados do Livro de Oração Comum, principal publicação da liturgia Anglicana. Ele leu versículos de Eclesiastes, um dos livros poéticos do Antigo Testamento bíblico, falando sobre companheirismo, referindo-se às noivas por “Isa” e “Kau”. A cerimônia em muito se parecia com um casamento cristão comum, mas em alguns momentos era possível perceber o caráter único da situação.

As madrinhas, que eram a maioria, usaram roupas azuis, enquanto os padrinhos se vestiram de rosa. Ao perceber as cores das vestimentas, o reverendo comentou: “é mais um sinal da nossa resistência”. “Esse Deus é de amor, por mais que muitas pessoas usem o nome dele para desautorizar, para dizer que não está certo”, disse, referindo-se a manifestações de ódio na sociedade atual. “Com esse gesto, vocês estão testemunhando que vale a pena acreditar no amor”, colocou.

As jovens tiveram sua união abençoada e oficializada pela Igreja. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Emocionadas, as noivas – que vestiam preto – deixaram o altar ao som dos aplausos dos amigos e familiares presentes. Kauana, que vem de uma família anglicana, foi quem apresentou a comunidade à Isabella. “Eu nasci e cresci na Igreja Anglicana, então eu cresci vendo casamentos acontecerem e eu ao mesmo tempo sempre me perguntava se algum dia eu poderia estar ali casando”, relata Kau.

Com o passar dos anos e por já conhecer a Igreja, que tem posições progressistas em geral, ela passou a ter esperanças de que o casamento igualitário seria aprovado. Em junho de 2018, as eleições nos Sínodos Gerais, com a presença de bispos de todas dioceses brasileiras, aprovou com expressiva maioria a alteração do cânon. Um mês depois, a diocese anglicana de Porto Alegre realizou sua própria votação e se tornou a primeira do Brasil a autorizar a união.

Para os clérigos da Igreja, a mudança representa mais um passo natural para uma religião que já há anos tem bispas mulheres – a irmã de Kauana foi a primeira na América do Sul – e conta com pessoas homossexuais e trans entre seus reverendos e bispos. Para as recém-casadas, foi a oportunidade de oficializar o seu amor e celebrar a comunidade que as acolhe, especialmente diante de um momento político com ameaças de retrocessos.

Isa (E) e Kau (D) celebram a união: “Essa aceitação é uma oportunidade para muita gente” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Eu acho que o momento em que a gente descobriu que aquele relacionamento tinha que se oficializar, honestamente, foi no dia da eleição. Eu fiz uma postagem no Facebook dizendo que os casais tradicionais trocam mensagens de amor e a gente estava trocando fotos chorando. Foi um acordo de que a gente precisava oficializar antes que mais direitos nossos fossem retirados, e um direito tão básico como o casamento”, relata Kau, que afirma que a família e a igreja sempre aceitaram sua sexualidade.

Para Isabella, foi surpreendente conhecer uma Igreja tão aberta para a diversidade. “Foi inesperado, ainda mais hoje em dia, que as coisas estão bem difíceis. Essa aceitação é uma oportunidade para muita gente, muitas pessoas LGBTs que agora podem realizar o sonho de casar”, reflete.

A preocupação com a inclusão é tamanha que, na placa em frente à Catedral onde consta os horários dos cultos, lê-se também “uma igreja sem preconceitos! Todos são bem vindos”. “Nós temos uma rede de proteção, de ajuda. Até porque pelo fato da Igreja Anglicana aceitar as pessoas como elas são, muitas pessoas que acabam vindo porque se sentem acolhidas. Acaba criando uma rede de pessoas nas mesmas circunstâncias”, afirma Kau.

Essa rede de pessoas passou a ser construída de forma mais intensa pouco depois da aprovação do casamento igualitário, quando foi criado um coletivo para acolher pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais dentro da própria Igreja, o Anglicanxs+ (fala-se “anglicanes”). Com cerca de meio ano de existência, o grupo ainda busca se firmar como um espaço acolhedor para todas as pessoas, especialmente as que não se sentem pertencentes a outros ambientes.

Criado no catolicismo, Henrique encontrou aceitação na Igreja Anglicana | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O coordenador do grupo, Henrique Klein, foi uma das pessoas que entrou em contato com o anglicanismo justamente após a mudança do cânon que permitiu a união LGBT. Oriundo de uma família católica, ele buscava conciliar sua fé com a sua sexualidade. “Estive alguns anos afastado da igreja em certo momento, especialmente pela questão da sexualidade, porque a partir do momento em que descobri a minha identidade, percebia que era um espaço que de certa maneira me negava”, relata.

Mesmo assim, por ter uma espiritualidade muito forte, ele sentia falta do contato com uma comunidade de fé: “Eu não me sentia à vontade no espaço que eu frequentava antes. Por já ter um histórico de caminhada religiosa, comecei a trilhar um caminho de descobertas, de buscar entender que espaço eu poderia entender como próprio para frequentar, mas que também não ferisse meus princípios, e naturalmente fui chegando aos poucos da Igreja Anglicana”.

Quando soube do casamento igualitário, teve certeza de que este seria um espaço em que não apenas ele próprio poderia se casar, mas também que o aceitaria plenamente. É com essa ideia que surgiu o Anglicanxs+, que une diversas pessoas de famílias anglicanas, mas também vindas de outras religiões, como ele próprio. Apesar de se tratar de um grupo ecumênico, o objetivo principal é promover um espaço de segurança para as pessoas LGBT, segundo Henrique. “Somos um espaço seguro numa comunidade cristã, que também abraça outras fés, ou a não-fé. Nossa expectativa é ser um espaço de acolhida na sociedade, para qualquer pessoa, seja qual for”, resume.

Igreja estava decorada com bandeira LGBT | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O coletivo se reúne mensalmente, mas tem a ideia de também realizar eventos, dialogar com movimentos sociais ligados à causa LGBT e com órgãos cristãos para se tornar um ponto de referência para essa comunidade. “A gente tem uma ligação muito forte com a fé, porque foi onde surgimos como coletivo, mas absolutamente atentos à questão política e social, especialmente nesse momento”, menciona Henrique, acrescentando que sabe que a própria existência do grupo é “um ponto totalmente fora da curva” dentro do contexto do Cristianismo.

“Sabemos que vamos ouvir coisas horríveis por parte de pessoas que discordam da nossa existência, mas isso também faz parte do nosso testemunho, de criar um espaço seguro para essas pessoas. Essa é a principal missão do coletivo. Aquilo que a sociedade não consegue dar hoje é o que queremos trazer”, garante.

Para o reverendo Jerry, esse acolhimento é natural considerando as posições da Igreja ao longo de sua existência. “A Igreja Anglicana sempre foi de vanguarda. Séculos atrás, na Inglaterra, lutou contra a escravidão, já há décadas ordena mulheres no seu sacerdócio. A questão da sexualidade veio à tona também porque está muito em pauta atualmente, mas essa discussão já vem há pelo menos duas décadas. Há sempre uma preocupação em acompanhar esses sinais e não ficar estagnada. Este é apenas mais um sinal e certamente vão ter outros”, afirma.

Assim como Kauana, Jerry também veio de uma família anglicana, por isso considera que não “conheceu” a Igreja, mas sim já nasceu nela. “Eu amo essa Igreja e exatamente por todas essas questões e situações, não posso me imaginar vivendo a minha fé em outra comunidade. Não é a melhor igreja, mas é a melhor para mim”,  coloca.

Reverendos Elaine e Jerry ministraram a cerimônia de casamento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ele contesta as ideias de quem usa o Cristianismo como forma de expressar opiniões preconceituosas contra pessoas LGBTs. “A Bíblia é um livro bastante complexo, se ela for lida literalmente nós não teríamos escapatória para muitas outras coisas e outras situações que a nossa sociedade, e mesmo as igrejas cristãs, aceitaram nos últimos tempos. Alguns desses assuntos têm mais a ver com a questão social do que a teológica, a questão bíblica acaba servindo como pano de fundo para respaldar alguns preconceitos que a sociedade já tem”, acredita.

Nesse sentido, ele aponta que a Bíblia precisa ser entendida dentro do seu contexto, considerando “para quem ela foi escrita, em que época e porque ela foi escrita e o que o determinado assunto queria dizer para as pessoas daquele tempo”, sob o risco de, voltar a acreditar que “a terra é plana” caso ela seja lida de forma literal.

Mesmo antes da aprovação do casamento, a Igreja já realizava bençãos para casais homoafetivos, mas que não tinham o status de matrimônio. “Não podia registrar no livro, não podia realizar dentro do templo. Agora é uma cerimonia como qualquer casal, não há mais distinção de gênero. A liturgia é exatamente a mesma, as mesmas palavras, sem nenhuma alteração”, afirma Jerry, relatando também que a própria liturgia anglicana atualmente é escrita com linguagem inclusiva.

Para ele, deixar de tratar de forma diferente casais hétero e homossexuais é algo muito natural dentro da própria fé: “Uma das coisas que faz sentido na aprovação é exatamente validar o amor de duas pessoas, sem distinção do seu gênero. É dizer que toda forma de amor vale a pena, e que essas pessoas são amadas por Deus e dessa forma recebem também a benção. Não são seres estranhos aos olhos de Deus, foram criadas por ele, são reconhecidas por ele e amadas por ele”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
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