Entrevistas
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6 de novembro de 2022
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09:04

Pochmann: O papel da legislação é não consolidar a precarização e a exploração do trabalhador

Por
Luís Gomes
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Economista Marcio Pochmann | Foto: Divulgação
Economista Marcio Pochmann | Foto: Divulgação

Em diversos discursos feitos ao longo da campanha, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu a necessidade de proteção para trabalhadores de aplicativos e informais. “O que nós queremos é que esse trabalhador tenha direitos, que ele possa ter Natal, Ano Novo”, disse Lula, em outubro, no Rio de Janeiro.

Contudo, Lula não explicitou exatamente quais são os seus planos para a questão trabalhista, se passarão pela revogação da reforma trabalhista feita pelo governo Michel Temer, em 2017, ou se ocorrerá uma atualização, criando regras novas e diferentes daquelas que existiam anteriormente. Para entender melhor como está a discussão interna no Partido dos Trabalhadores sobre o tema, o Sul21 conversou nesta semana com o economista Marcio Pochmann, professor aposentado da Unicamp e atualmente presidente do Instituto Lula.

Em uma breve entrevista, Pochmann destaca que, no partido e entre aliados que participaram da campanha de Lula, há pelo menos duas visões a respeito da questão trabalhista: uma de que todos os trabalhadores devem ser convertidos em assalariados e, portanto, estarem regidos pelas regras da CLT, e outra de que é preciso garantir proteção e direitos aos trabalhadores por meio de outros mecanismos, como complementos de renda.

“Se aqueles que acreditam que é possível transformar todos esses trabalhadores em assalariados, então já tem a CLT, é uma questão só de melhorá-la. Mas pode ser que talvez esse assalariamento não vá existir mais e, portanto, é preciso pensar num fundo novo que dê conta de proteções, como é o caso esse de acidente de trabalho, mas também o próprio envelhecimento, a aposentadoria desse trabalhador, não deixar apenas a ele esse encargo da aposentadoria”, diz.

Pochmann deixa claro que não há uma definição ainda no partido e entre aliados de qual caminho seguir, mas defende que o papel da legislação é impedir a consolidação da precarização e da exploração dos trabalhadores. “Seria muito importante, e há experiências em outros países, assegurar uma espécie de patamar mínimo de direitos, de renda, em que, independente do tipo de ocupação, ele teria esta identidade de pertencimento. Eu penso que o Estado deve fazer isso, porque não virá do mercado, muito menos da própria organização dos trabalhadores que estão submetidos a uma concorrência de natureza individual que dificulta muito a formação de um sujeito social coletivo, uma consciência em si a respeito do quadro ao qual ele está submetido”, diz.

Uma das possibilidades que ele diz que pode ser estudada é a de uma espécie de CLT digital para trabalhadores de plataformas. “Ou seja, uma legislação que dialogasse com esta nova perspectiva, que não é mais a era industrial e agrária, é uma era nova, digital. Nesse novo mundo, dificilmente o assalariamento seria tão importante e central como fora no passado. Nós não temos representação do ponto de vista do sujeito social dessa nova classe trabalhadora, então, nesse sentido, seria um outro tipo de regulação diferente do assalariamento e há algumas possibilidades nesse sentido. Então, vai ser preciso saber o papel que venha a ter o Ministério do Trabalho”, afirma.

A seguir, confira a íntegra da entrevista com Marcio Pochmann.

Sul21: Como estão os debates sobre as novas regulamentações trabalhistas dentro do PT e com os demais partidos que compõem a aliança?

Marcio Pochmann: Há uma certa dificuldade de tratar, do ponto de vista da aliança que elegeu o presidente Lula e mesmo a visão que o presidente Lula vai, de certa maneira, explicitar no seu próprio governo, porque foi uma eleição de caráter mais plebiscitário, em que o futuro foi pouco tratado, desenvolvido. O tema sobre o trabalho foi apresentado inicialmente como sendo um problema relacionado à reforma trabalhista feita em 2017 que, sob o argumento de superação do desemprego através da redução dos direitos, colocou  o trabalho na encruzilhada entre escolher emprego ou direitos. Esse tema tem, de uma parte importante, aqueles que acreditam que é necessário superar essa reforma. Outros acham que é possível ela ser atualizada. Então, tem um debate em torno da temática regulatória.

Há outro debate em torno da questão redistributiva. Isto é, os que já têm trabalho e mesmo que não têm trabalho deveriam ter uma complementação de renda. Nós tivemos então esse debate que foi associado, no caso do governo atual, inicialmente a algo que não estava na agenda do governo Bolsonaro, que foram os programas de complementação de renda. Isso ganhou um impulso muito grande na pandemia, não por força do governo Bolsonaro, mas em virtude da realidade do País, em que chegamos a ter em 2020 cerca de 40% da população brasileira recebendo alguma complementação de renda proveniente do governo federal, do orçamento federal. Isso é algo que tem a ver com uma trajetória que o Brasil seguiu desde a transição da ditadura para a democracia, em que há uma ampliação de programas de transferência de renda de vários tipos, mas que tem conexão evidentemente com o trabalho. Então, tem um segundo aspecto relacionado à questão redistributiva.

E tem um terceiro tema que diz respeito à problemática da geração dos postos de trabalho, que remonta mais especialmente ao tipo de crescimento econômico que o País possa vir a ter. Quer dizer, não é uma discussão redistributiva, não é uma discussão regulatória, mas é, de certa maneira, uma discussão vinculada ao sistema produtivo, à estrutura produtiva. Vincula-se à discussão sobre a reindustrialização nacional, que é a espinha dorsal pela qual o País poderá voltar a gerar empregos de qualidade. Então, é um debate vinculado mais à estrutura produtiva e do ponto de vista da natureza do emprego, tendo em vista a quantidade de pessoas desempregadas e, mais do que isso, o próprio subemprego.

E tem ainda um quarto aspecto a ser tratado em relação à questão do emprego que diz respeito à presença do Brasil na divisão internacional do trabalho, em que se coloca essa geração de ocupados vinculados às atividades de plataforma, mas também às atividades que estão vinculadas à era digital. A quantidade de YouTubers, por exemplo, em torno da monetização das redes sociais, que é algo que a gente conhece pouco, há poucos estudos inclusive, a gente conhece mais trabalhadores de aplicativos, de plataformas. Isso é muito mais amplo do que atualmente se tem de informação. E se sabe que, nesse aspecto, a presença do Brasil no mundo em relação ao tema da digitalização, da economia e da sociedade, nós estamos situados numa condição de país consumidor de bens e serviços digitais. Nós não produzimos aqui em grande quantidade, o Brasil é um importador e é um grande importador, porque somos o quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais.

Estou aqui apenas abrindo um horizonte de possíveis aspectos a serem tratados pelo emprego, o aspecto regulatório, o aspecto redistributivo, o aspecto quantitativo relacionado à reindustrialização e outras atividades, como por exemplo a própria economia solidária, e por fim esse outro tema que é como o Brasil se posiciona no mundo, porque, de acordo com o seu posicionamento, ele pode gerar mais ou menos empregos, melhores ou piores empregos.

Sul21: Que tipo de medidas de proteção desses trabalhadores de aplicativos já foram pensadas e poderiam ser implementadas no próximo governo?

Marcio Pochmann: Do ponto de vista da discussão deste tema, de proteção, nós temos, de um lado, a possibilidade de tratar dentro do que a legislação já estabelece, que é basicamente compreendendo que o emprego e o seu futuro, do ponto de vista do mundo do trabalho, passa pelo assalariamento. Portanto, do ponto de vista do emprego assalariado, nós temos já um conjunto de direitos sociais e trabalhistas. Nesse sentido, nós até tivemos no passado recente, por exemplo, a mesma trajetória de buscar incorporar postos de trabalho, ou porque não eram considerados assalariados, ou estavam à margem dos direitos sociais trabalhistas, e se fez uma tentativa de incorporação. O que foi, por exemplo, o MEI, dos microempreendedores individuais, que diz respeito também a trabalhadoras domésticas. Um movimento de incorporação dentro da perspectiva do horizonte do assalariamento. Então, digamos, a CLT, a consolidação das leis do trabalho, foi de certa maneira reformulada. Ela poderia ser objeto de uma situação em torno dessa perspectiva de que o que não está dentro da CLT poderia vir a ser incorporado ou deveria ser incorporado. E mais do que a a perspectiva do trabalho assalariado, ofereceria o direito social e trabalhista também do ponto de vista da jurisdição do Direito do trabalho e da forma de atuação que os sindicatos já estão estruturados, pela perspectiva do assalariamento.

Agora, nós temos também aqueles que entendem que a dinâmica do trabalho está cada vez mais distante do assalariamento e que, portanto, a relação salarial perde centralidade, o que significa dizer que nós estamos diante de uma relação cada vez mais associada a rendas variáveis. Diante da instabilidade do trabalho, há um segmento crescente que passa cada vez mais a entender a vida como uma busca por crédito, por renda variável, diante do ônus do trabalho. Então, nós temos tido, por exemplo, o crescimento de formas variadas de ocupação, em que se vai complementando a busca de uma renda por diferentes tipos de trabalho. São trabalhos gerais, pode ser um trabalho de plataforma, alguém que trabalha conduzindo pessoas, por exemplo, mas ele acresce nos finais de semana um trabalho como vendedor de produtos de embelezamento, ele trabalha numa diversidade de trabalhos gerais que não dão identidade e nem pertencimento assalariado. E dificilmente essas ocupações poderiam estar concebidas dentro do assalariamento. Então, nesse sentido, abriria justamente a necessidade de uma proteção, de uma regulação, vinculada, na falta de um nome melhor, a uma espécie de CLT digital. Ou seja, uma legislação que dialogasse com esta nova perspectiva, que não é mais a era industrial e agrária, é uma era nova, digital. Nesse novo mundo, dificilmente o assalariamento seria tão importante e central como fora no passado. Nós não temos representação do ponto de vista do sujeito social dessa nova classe trabalhadora, então, nesse sentido, seria um outro tipo de regulação diferente do assalariamento e há algumas possibilidades nesse sentido. Então, vai se precisar saber o papel que venha a ter o Ministério do Trabalho. Ou seja, há necessidade de definir melhor o tipo de intervenção a ser feito no mundo do trabalho, porque de um lado há uma mudança demográfica importante, há um aumento da expectativa média de vida, pessoas que estão com dificuldades de se aposentar, tem várias aspectos que o horizonte do assalariamento já não cobre suficientemente. Então, poderia haver justamente um novo tipo de organização do trabalho, da legislação do trabalho, da representação do trabalho, que talvez a CLT atual não tenha condições de oferecer, mesmo com sua reformulação ou com o fim da reforma trabalhista que foi feita em 2017.

Sul21: O senhor acha possível ter essa CLT digital diferenciada para o trabalhador da economia de bicos implementada nos próximos quatro anos?

Marcio Pochmann: É algo que faz parte da estrutura do trabalho no Brasil desde a construção da CLT, que foi feito para uma coisa quase que não existia, que era o trabalho assalariado urbano. Nós estamos falando do Brasil em 1940, de cada 10 trabalhadores, somente um tinha acesso à condição de emprego e proteção. E nós chegamos a ter é quase 60% dos trabalhadores ocupados assalariados protegidos. Mas houve uma estabilização nesta relação e até uma queda no emprego assalariado. Historicamente, há um conjunto de trabalhadores, digamos assim, os pequenos negócios, que ficaram à margem de qualquer tipo de proteção. Eu diria que são os sem estado, porque o estado não chega até eles. E no período mais recente, essa proliferação de atividades vinculadas à digitalização. Eu penso que o papel da legislação em qualquer realidade é não consolidar a precarização e a exploração. Ela tem que ser, na verdade, pela forma de atuação de estado, algo que contra-arreste a realidade. Nesse sentido, seria muito importante, e há experiência em outros países, assegurar uma espécie de patamar mínimo de direitos, de renda, em que, independente do tipo de ocupação, ele teria esta identidade de pertencimento. Eu penso que o Estado deve fazer isso, porque não virá do mercado, muito menos da própria organização dos trabalhadores que estão submetidos a uma concorrência de natureza individual que dificulta muito a formação de um sujeito social coletivo, uma consciência em si a respeito do quadro ao qual ele está submetido.

Sul21: Professor, só para esclarecer, o senhor falou do MEI na questão do assalariamento. O MEI é entendido como uma espécie de assalariamento ou poderia ser usado de alguma forma para esses trabalhadores com com rendas variáveis?

Marcio Pochmann: O microempreendedor individual é uma proposta interessante para acolher trabalhadores que operam de natureza individual, que não estão submetidos ao trabalho subordinado. Ocorre que o que nós assistimos em grande medida foi trabalhadores que anteriormente eram assalariados e foram convertidos em microempreendedores. Então, ali houve um sentido inverso ao que se estabelecia. Por exemplo, as academias de esportes tinham lá o personal trainer, que era uma empregado assalariado, ele virou microempreendedor. Isso ocorreu muito. É uma espécie de disfarce do assalariamento na forma de um empreendedor, porque isso significa custos menores para o empregador. Por isso que imagino que formas diferentes de assalariamento poderiam ganhar direitos e proteções na medida em que essa proteção não sairia diretamente do contrato de trabalho desse trabalhador por parte da empresa, mas por financiamento através de outras formas de tributação, ou seja, um deslocamento dos direitos sociais e trabalhistas da empresa.

A gente sabe que, no contrato CLT, o custo do trabalho para a empresa é maior do que o que ele paga diretamente como salário, porque há uma forma de salário embutido, o décimo terceiro, por exemplo, o terço de férias etc, mas há também um financiamento de outros, a própria previdência, etc. Então, esse é o mecanismo do assalariamento, mas obviamente que eu estou querendo chamar atenção que seriam possíveis novas formas de garantia de direitos. Por exemplo, um salário mínimo quando o empregador não oferecesse essa condição, mas o trabalho sim, e que poderia portanto haver um fundo de salários constituídos a partir da tributação de outra modalidade que não fosse o contrato direto do trabalho.

Sul21: Falando de casos mais simples de entender, isso seria possível, por exemplo, para quando um motoqueiro perde a renda porque teve um acidente e vai precisar ficar o mês parado. Uma das proteções seria para esse tipo de caso?

Marcio Pochmann: Sim. Eu estou querendo chamar a atenção que, seja qual for a proteção, ela tem um custo e é preciso definir de onde sai esse recurso. Pode sair do estado um fundo para isso, mas esse fundo precisa ser criado com uma tributação. Vai ser a tributação sobre o lucro, por exemplo, desta empresa que contrata um trabalhador nessas condições? Não sairia diretamente do contrato desse trabalhador, mas seria por exemplo da rentabilidade dessa ou de outra empresa. Eu estou querendo chamar a atenção para o fato de que precisa se criar um fundo para isso. Porque, atualmente, esse fundo é pago em parceria pelo trabalhador e a empresa toda vez que há um contrato assalariado, mas nós estávamos tratando de uma relação onde o assalariamento não é direto.

Se aqueles que acreditam que é possível transformar todos esses trabalhadores em assalariados, então já tem a CLT, é uma questão só de melhorá-la. Mas pode ser que talvez esse assalariamento não vá existir mais e, portanto, é preciso pensar num fundo novo que dê conta de proteções, como é o caso esse de acidente de trabalho, mas também o próprio envelhecimento, a aposentadoria desse trabalhador, não deixar apenas a ele esse encargo da aposentadoria. Mas também outras condições, como a própria complementação do salário e da renda quando isso não for possível até um determinado patamar. Enfim, dentro desse espírito de tratar os trabalhadores igualmente, do ponto de vista do mínimo ao qual um País se entende responsável pelo tipo de proteção e segurança que ele possa dar.


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