Entrevistas
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19 de novembro de 2022
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10:23

Manuela D’Ávila: ‘Muito pouco mudou entre 2018 e 2022. O que me surpreende é a surpresa’

Por
Marco Weissheimer
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Manuela D'Ávila no Instituto 'E Se Fosse Você?', em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Manuela D'Ávila no Instituto 'E Se Fosse Você?', em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

As cenas que o Brasil assistiu nas últimas semanas, com partidários de Jair Bolsonaro recusando-se a aceitar o resultado das urnas, clamando por uma “intervenção federal” e reproduzindo discursos, símbolos e gestos que, entre outras coisas, marcam a história do fascismo e do nazismo, não deveriam surpreender ninguém, pois o terreno de onde brotaram está visível há vários anos no país. Ex-deputada federal, estadual e candidata a vice-presidente em 2018, a jornalista e escritora Manuela D’Ávila faz questão de chamar a atenção para a falta de fundamento para a surpresa. “Esses dias me perguntaram: o que te surpreende nesta eleição? O que me surpreende é a surpresa, respondi. A mim me surpreende ver hoje pessoas que têm o mesmo nível de militância política que eu tenho, e se surpreendem por verem pessoas fazendo a saudação nazista. Vocês não viram que a minha filha foi agredida com 45 dias. Uma sociedade que acha razoável uma criança de 45 dias apanhar, tem que tipo de valor. A minha filha foi ameaçada de estupro com cinco anos. Como é que a gente pode ficar surpreso com o que acontece hoje?” – questiona.

Em entrevista ao Sul21, concedida na sede do Instituto E se fosse você?, em Porto Alegre, Manuela D’Ávila fala sobre o atual momento político e social que vive o país, com um foco especial nas questões da comunicação e da linguagem, tema ao qual vem se dedicando nos últimos anos. Seu mais recente livro “Somos as palavras que usamos” traz essa questão da linguagem e suas complexas relações com o “mundo digital” e o “mundo real” (as aspas denotam a zona cinzenta que existe entre ambos hoje) para o centro do debate social e político, uma escolha que se diferencia do receituário tradicional de preocupações mesmo dentro do campo da esquerda. A entrevista foi concedida no dia em que foi confirmada a indicação de Manuela para compor o Grupo de Trabalho de Comunicação do governo de transição. Ela adiantou aquela que será uma de suas sugestões para contribuir com o trabalho desse GT: “precisamos que o Brasil tenha um longo plano de educação, de letramento midiático e digital. As pessoas, hoje, têm dificuldade prática e objetiva de diferenciar fato de opinião e de saber como proceder diante da enxurrada de informações que recebe pela internet”. Para ela, esse tema é vital para lidar com o fato de que “o Estado brasileiro foi destruído pelo bolsonarismo e a sociedade brasileira foi fraturada, violentada e abusada política e socialmente por esse governo”.

Manuela D’Ávila: “O Estado brasileiro foi destruído pelo bolsonarismo”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: O ponto de partida para essa entrevista era outro, mas considerando que você foi oficialmente convidada hoje (a entrevista foi realizada no dia 16 de novembro) para participar do GT de Comunicação do governo de transição, começo com outra pergunta. Levando em conta também o livro que acaba de lançar (“Somos as Palavras que Usamos”), em que medida você vê que o enfrentamento dos problemas sociais e políticos brasileiros do presente, especialmente, os discursos de ódio e intolerância, passam pelo tema da comunicação?

Manuela D’Ávila: Acho que a gente precisa entender as possibilidades tecnológicas que a internet proporcionou não como possibilidades só de comunicação. Elas são possibilidades de comunicação, de mobilização e de debate público muito mais aberto. Neste sentido, compreendendo a tua pergunta como que questionando o que a internet e as novas ferramentas de comunicação podem fazer pelo Brasil, acredito que grande parte da resposta passa por isso. Na minha concepção, passa, por um lado, por garantirmos a universalização do acesso à internet como direito humano básico e elementar neste tempo em que nós vivemos. Já apresentei esse tema na primeira conversa que tivemos hoje no GT de Comunicação. Essa tem que ser uma bandeira nossa. Precisamos construir essa política pública como um elemento central.

Em segundo lugar, precisamos que o Brasil tenha um longo plano de educação, de letramento midiático e digital. As pessoas, hoje, têm dificuldade prática e objetiva de diferenciar fato de opinião e de saber como proceder diante da enxurrada de informações que recebe pela internet. Eu me refiro a procedimentos simples. O que faz eu não cair numa fake news e outras pessoas caírem não é inteligência, mas sim um método, é ter uma determinada capacidade instalada. Em terceiro lugar, precisamos ocupar esses espaços com os debates públicos necessários para o Brasil. Assim, acho que, em várias dimensões, passa por isso garantir que o Brasil retome um projeto de desenvolvimento e lute para ter uma sociedade menos fraturada. O Estado brasileiro foi destruído pelo bolsonarismo e a sociedade brasileira foi fraturada, violentada e abusada política e socialmente por esse governo.

Sul21: Sobre essa questão da universalização do acesso à internet, os grupos bolsonaristas não têm esse problema exatamente. Em que medida, a garantia de acesso à internet para as parcelas mais pobres da população brasileira pode funcionar como uma espécie contra a ação desses grupos extremistas?

Manuela D’Ávila: Na verdade, não só não é um problema para eles como faz parte da estratégia deles de crescimento. O governo Temer liberou os chamados pacotes de tarifa zero, que são tarifa zero em determinadas plataformas, sobretudo Facebook e Whatsapp. O que os bolsonaristas fazem é se utilizar disso, pois sabem que os brasileiros e brasileiras estão presos nessas redes. Não há liberdade, mas uma prisão que se traduz pelo consumo de informação em apenas determinadas plataformas, dependendo do que a tua operadora te libera. Basta citar uma coisa para ter dimensão do que significa essa prisão: a maior parte dos brasileiros, hoje, nunca conseguiria entrar numa agência de checagem, pelo simples fato que isso não está no Whatsapp nem no Facebook, mas está hospedado em sites. Grande parte dos brasileiros, durante mais de 25 dias por mês, quando acaba seu pacote de dados, não vê no Youtube mais do que uma imagem nublada com uma manchete embaixo. Se eu colocar numa manchete, como já vi, “veja imagens de Lula pedófilo”, a pessoa vai ver uma imagem nublada de um cara com barba e uma pessoa loira que não aparece a idade. A grande parte não tem condições sequer de acessar esse link além daquele título que chega pelo Whats.

“Parece que em tudo o que é lugar a economia incide e na internet não”. Foto: Luiza Castro/Sul21

É importante que a esquerda perceba que na internet também incidem as questões relacionadas à desigualdade econômica. Foi o que eu disse na reunião do grupo de transição. Parece que em tudo o que é lugar a economia incide e na internet não. Claro que incide. Há uma diferença muito grande entre quem tem acesso e quem não tem. Por isso, a possibilidade de as pessoas terem uma internet livre está relacionada à própria condição delas se desenvolverem e se tornarem capazes, em um ambiente livre, de buscar respostas para dúvidas que a desinformação proporciona. Agora, é bom que a gente diga que a desinformação atinge também pessoas que têm acesso à internet e que não tem capacidade de checar uma notícia. Muitas pessoas creem que o problema da internet é o excesso de internet. Eu acho que o problema é a falta de internet para grandes camadas da população. Os mais jovens acreditam menos em desinformação do que os mais velhos, pois são mais ativos digitais, têm mais noção do que é mais sério e do que não é, são mais educados neste meio. Digo isso para salientar uma coisa: não são só mais pobres que acreditam mais em fake news, mas os mais pobres têm mais dificuldade de chegar à verdade porque têm a internet mais limitada.

Sul21: Considerando a nova agenda que vai se abrir no Brasil a partir do dia 1º de janeiro de 2023 – e que, de certa forma, já começa a se abrir com o governo de transição -, como você enxerga o desafio de lidar com esses grupos bolsonaristas extremistas que estão nas ruas. Qual a dimensão desse desafio? Acredita que é algo que pode se dissipar em curto ou médio prazo ou é um fenômeno com o qual conviveremos no longo prazo?

Manuela D’Ávila: Estamos vivendo hoje em um mundo absolutamente complexo, para usar uma palavra mais delicada e bonita, que apresenta contradições crescentes. As crises que nós vivemos são muito profundas. Por isso, não acredito que esse problema que mencionas seja um problema de curto prazo. Acredito que é um problema relacionado à natureza da crise do capitalismo e à dificuldade de encontrarmos caminhos para solucionar essa crise de maneira duradoura. O ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Liñera, tem um livro que pode ser baixado gratuitamente no site da Clacso onde ele fala que diante desse quadro econômico a América Latina talvez não viva uma nova onda de esquerda, mas ondas, em função da força que a extrema-direita também adquire numa situação dramática como a que vivemos. Então, não acho que estamos lidando com uma questão de curto prazo. 

Sabe aquela música que diz: “O Brasil não conhece o Brasil…”? Ela tem uma dimensão que expressa o fato de a elite brasileira não conhecer a maravilha que é o Brasil e as possibilidades de um país como o nosso, mas também tem a dimensão de expressar como foi o nosso processo histórico e como nós jamais enfrentamos frontalmente os processos de violência que são constitutivos da nação brasileira. Penso que agora temos que enfrentá-los. A eleição do Lula tem duas marcas: uma é a defesa democrática, a outra é a defesa programática. Temos uma frente ampla de defesa da democracia e uma frente que defende um programa. Há uma intersecção entre essas duas frentes. 

Qual é o significado dessa frente democrática? Para mim é o de reestabelecer a condição de divergirmos politicamente na democracia. O que significa isso. Que tudo é aceitável, desde que respeita o que diz a Constituição de 1988. Assim, na minha interpretação, tudo o que afronta esse pacto democrático precisa ser enfrentado de frente. Não é possível que nós não revisitemos a nossa história, para compreender as consequências de não termos enfrentado esse tema, objetiva e subjetivamente. Basta ver as dificuldades que o Brasil tem de enfrentar seu passado como o país que tem o mais longevo processo de escravidão, apenas para dar um exemplo.

“Precisamos reestabelecer a condição de divergirmos politicamente na democracia.” (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: O governo Dilma fez a Comissão da Verdade e enfrentou todas as reações que conhecemos e que repercutem até hoje. O desafio de recuperação da memória que aponta seria uma espécie de comissão da verdade histórica para desvelar esse caráter racista, violento e colonialista que é constitutivo da história do Brasil.  Você acredita que há condições para que o futuro governo Lula faça algo nesta direção, levando em conta a ampla aliança que foi feita?

Manuela D’Ávila: Eu vou fazer algo que não se faz que é te responder fazendo uma pergunta. Eu era deputada e presidia a Comissão de Direitos Humanos quando a gente aprovou a Comissão da Verdade. Aquele momento foi o período em que surgiram todos os youtubers de direita no Brasil. Tu acha que se a gente tivesse um plano de comunicação disputando a opinião da sociedade nos ambientes de debate público o resultado seria o mesmo? Por que estou te dizendo isso? Força e vulnerabilidade na política são consequência de ações totais e não parciais. Eu acho que esse governo, assim como todos os outros governos, não terá força para isso se não ficar permanentemente disputando e acumulando forças socialmente. A diferença é que hoje existem muitas formas de disputar e acumular socialmente mais força, com mais dinâmica do que nós tínhamos há dez anos, embora já existisse a internet naquela época. Nós temos que aprender a utilizar essas ferramentas.

Eu fui eleita em 2010, com a votação que tive, e as pessoas seguem tratando aquele resultado como fenômeno quando, na verdade, já foi resultado do uso das ferramentas que a internet me proporcionava na época, com todos os limites que existiam então. Não existiam as plataformas que existem hoje. A gente usava o email, o Orkut, era o início do Facebook.

Tu pode me perguntar: e se não acontecer nada (no futuro governo)? Eu estou na luta para que aconteça. Espero que a gente tenha aprendido a importância da autonomia dos movimentos sociais, o peso que os movimentos sociais têm para pressionar o governo a avançar. Lula afirmou: “Eu quero ser cobrado pelas pessoas. Não quero tapinha nas costas. Tem que existir cobrança porque existe uma dívida social com o povo brasileiro. Temos de estender a mão para quem precisa…” Eu entendo isso como um aviso dele, um pedido dele, para que o povo não saia da rua, para que os sindicatos estejam pressionando, para que os sem terra e sem teto sigam na luta, para que nós os cobremos e, assim, acumulemos força social para avançar mais. Precisamos entender em que buraco a gente está, sabendo que será dificílimo, mas a gente vai ter que lutar para que tenhamos uma correlação de forças mais favorável.

Sul21: Hoje não tem força, mas só vai ter força se acumular força e se não acumular força, não vai muito longe…É meio que um caminho sem volta…

Manuela D’Ávila: Sim, temos que pensar o que é força, afinal. Como é que a gente aprovou o auxílio emergencial, no auge da nossa defensiva, na época da pandemia? Com luta, organização e pressão. As conquistas que tivemos no governo Bolsonaro são uma prova de que quando a gente se organiza e luta, a gente tem conquistas. O auxílio é resultado disso, da mobilização dos sindicatos, dos movimentos sociais, do povo organizado. Sabemos que as dificuldades serão muito grandes, mas esse é o caminho.

Sul21: O surgimento de Bolsonaro no Brasil não é um ponto fora da curva. A extrema-direita tem crescido em vários países do mundo. Na Itália, agora, acaba de ser eleito um governo de extrema-direita. Na tua avaliação, o que explica esse fenômeno, hoje, que adquiriu uma dimensão global?

Manuela D’Ávila: O governo Bolsonaro nos adoeceu a todos, mental e fisicamente. Hoje convivemos com quase um sexto da nossa população com fome. Estou dizendo para chamar a atenção para uma coisa. Acho que muitas vezes a gente ignorava o Bolsonaro como parte de um problema global. Dizíamos, com razão, que ele era o pior presidente do mundo. Mas ele era o pior presidente do mundo num mundo onde a extrema-direita cresce e num mundo no qual o Brasil tem um papel muito importante. A ideia de um Brasil produtor de commodities serve às grandes potências globais em meio a uma crise mundial que tem uma dimensão maior do que a maioria de nós consegue perceber. Do ponto de vista geopolítico temos duas grandes potências se enfrentando permanentemente. A guerra na Ucrânia é menos um conflito localizado na Ucrânia e muito mais um conflito geopolítico onde os Estados Unidos tentam manter seu poderio econômico e bélico, entre outros elementos de disputa.

“Força e vulnerabilidade na política são consequência de ações totais e não parciais”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

A pandemia parece episódica quando, na verdade, ela é fruto de um colapso global relacionado à questão ambiental. Temos uma crise humanitária no planeta, com fluxos migratórios de populações, por questões militares e ambientais, e que hoje são castigadas pela fome. Já passamos de uma década com a Europa proibindo socorrer embarcações. É um negócio que, por si só, já cheira a fascismo. Ter um barco e querer socorrer pessoas ameaçadas de morrer no oceano virou atividade ilegal. Esse é o mundo que estamos vivendo. Neste mundo – e é aí que, me parece, está o grande debate -, a população busca alternativas antissistêmicas. Acho que o dever da esquerda é pensar por que, tantas vezes, a extrema-direita acaba se apresentando como antissistema quando nós enfrentamos esse sistema injusto que não valoriza a vida, o planeta, a diversidade humana e natural. 

Esse é o problema de fundo que estamos vivendo e que algumas pessoas estão chamando de o paradoxo da democracia. A gente defende instituições que garantem essa democracia limitada e ao mesmo tempo se confunde com os limites dela diante dos olhos de uma população que percebe esses limites e sabe que esse sistema não responde às suas angústias. Lembra quando os anarquistas pichavam “as nossas urgências não cabem nas urnas…”? O povo identifica que as urgências não estão sendo resolvidas pelo que sai das urnas e está buscando alternativas. Então, precisamos pensar que a crise é muito grande e que o povo sofre os efeitos dessa crise no seu dia-a-dia. É uma crise real, não intelectual.

Além disso, o capitalismo não é eminentemente democrático. A democracia liberal é uma roupa que por vezes cabe ao capital. Nas décadas de 60 e 70, na América Latina, não coube. Aí mataram alguns milhares de pessoas na Argentina, no Chile, no Brasil e em vários outros países. Nem sempre o capitalismo usa essa roupa. Às vezes, ele fica nu. E cruel. A elite brasileira viveu agora essa contradição. A gente olhava e pensava: depois de tudo o que aconteceu eles vão continuar com Bolsonaro? Vimos que grande parte da elite brasileira, daquilo que se convencionou chamar de burguesia nacional, seguiu apoiando Bolsonaro. Qual será a cara do capitalismo que sairá desse processo de crise global? Na última grande crise, a saída foi o neoliberalismo. Qual será agora? Extermínio em massa de populações? Já fizeram isso em outros momentos. Eles também têm conflitos de fundo para resolver.

Sul21: Há uma característica na tua trajetória política que chama bastante a atenção, em especial na atual conjuntura. Em um determinado momento, tu começaste a tomar decisões que fogem do receituário tradicional dos quadros políticos, mesmo de esquerda, que, em geral, entram num circuito permanente de busca de reeleições e algum tipo de cargo. Há algum tempo, houve uma guinada nesta tua trajetória e essa espécie de piloto automático tradicional passou a ceder espaço para estudos, pesquisas e produção de livros que buscam entender melhor esse processo louco que estamos vivendo. Agora, você acaba de publicar um livro que se ocupa da linguagem e das palavras que estamos usando para tentar entender esse mundo. Você poderia falar um pouco dessas escolhas e, mais particularmente, sobre essa preocupação com o tema da linguagem como uma condição para a compreensão da conjuntura que estamos vivendo?

Manuela D’Ávila: Eu entrei na política como militante muito jovem, com 16 para 17 anos. E eu sou muito inquieta. Se eu fosse usar um adjetivo para me definir, como qualidade e defeito, seria esse: sou absolutamente inquieta. Sempre fui, desde criança. Sempre fui indignada com a realidade, mas sempre fui inquieta em relação a ela também. Quando eu entrei na política institucional, logo me dei conta que eu não queria que a minha vida fosse aquilo. Nunca quis que a minha vida fosse aquilo. Nunca foi um projeto pessoal para mim. E quando eu falo “aquilo” estou falando de coisas às quais eu atribuía um valor negativo. Não acho que elas sejam necessariamente negativas, mas para mim eram. Eu nunca quis ficar para sempre num lugar. Com as minhas características pessoais, isso significava eu não poder exercer essa minha inquietude.

Isso tem a ver com duas das coisas que eu mais critico na história da esquerda secular. De um lado, o dogmatismo, ter a pretensão de ter as respostas prontas para tudo. Eu não tenho e não quero ter. Acho que a gente precisa pensar sobre as diferentes dimensões dos problemas e isso não é fácil. De outro, é a ideia, que me parece absolutamente masculina, da imprescindibilidade. Acreditar que “eu sou imprescindível”. Eu tive que lidar com isso a partir de questões que eram minhas. Eu não aguentei ficar em Brasília. Brasília me colocava longe da política real. E comecei a me dar conta que isso me impactava intelectualmente. Estou me referindo a minha vivência. Isso não é uma crítica absoluta. É a minha trajetória. E eu sabia o que eu representava para o meu partido, eu tinha 500 mil votos. Então, tive que lidar com essa ideia de que eu não era imprescindível para o PCdoB, a minha organização, e nem para o povo. Eu acabei voltando para a academia que é um lugar onde eu sempre quis estar. Quando eu voltei para Porto Alegre, era 2014. Tinha acontecido 2013 um pouco antes. Eu não consegui ficar sem respostas sobre 2013. Depois veio o bolsonarismo.

A comunicação sempre foi uma preocupação minha. Lembra a polêmica que foi o “e aí, beleza?” Na minha primeira eleição, eu quase não usava fotos, usava uma boneca. Muita gente atribuía um valor estético a isso. Para mim, tinha um valor político, de negar o culto à personalidade. Eu já usava o “ela” para destacar a questão de gênero. Foram elementos que eu trouxe das minhas inquietações como jornalista para a política. São inquietações meio óbvias para quem é da comunicação, mas não eram no terreno da política. O nosso campo político acabou ficando preso em uma espécie de realidade paralela, onde essa questão da forma não importava. As pessoas se surpreendiam que eu fazia 500 mil votos e ao mesmo debochavam de mim porque eu usava o Twitter para fazer política. Eu fui denunciada numa matéria do Tele Domingo porque usava o Orkut para prestar contas do meu mandato. Na cabeça deles, eu estava usando o Orkut pra namorar…

“Eu fui denunciada no Tele Domingo porque usava o Orkut”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Nós fomos nos acostumando a uma esfera pública que foi sendo superada a olhos nus, em um processo que a gente resistia a enxergar. Em 2018 eu falava de fake news e as pessoas achavam que eu estava louca. O Jean Willys, em 2014, bloqueou 400 mil perfis na internet. Em 2015, eu fui agredida grávida pela turma do Marcel Van Hatten, em um evento sobre ódio nas redes. Cerca de 90% de meus discursos na Assembleia eram sobre ódio nas redes. A minha filha foi agredida, pela primeira vez, com 45 dias. E isso não chegava no mundo da política, porque eles estavam fora do ambiente onde ocorria o debate público. Eu me vi na obrigação de tentar trazer para o ambiente público aquilo que eu via que estava acontecendo.

Eu sempre usei a comunicação para fazer política, mas nunca imaginei que esse seria um ambiente que eu iria tentar disputar, de mostrar que a linguagem também é um território de poder. Esse não foi um caminho que pensei pra mim. O de não concorrer, sim, foi. O de não querer ficar parada nos lugares, também. Esse foi um caminho circunstancial. É desesperador ser vítima de milhares de fake news e as pessoas acharem que tu é uma fiasquenta. É desesperador tu enfrentar uma eleição tendo que dizer que tem uma máquina que diz que eu vou violentar sexualmente crianças e as pessoas me agridem na rua porque acreditam nisso. Muito pouco mudou entre 2018 e 2022. Esses dias me perguntaram: o que te surpreende nesta eleição? O que me surpreende é a surpresa, respondi. A mim me surpreende ver hoje pessoas que têm o mesmo nível de militância política que eu tenho, e se surpreendem por verem pessoas fazendo a saudação nazista. Vocês não viram que a minha filha foi agredida com 45 dias. Uma sociedade que acha razoável uma criança de 45 dias apanhar, tem que tipo de valor. A minha filha foi ameaçada de estupro com cinco anos. Como é que a gente pode ficar surpreso com o que acontece hoje?

Neste processo, há muita coisa que precisa ser aprendida pelo nosso campo também. Eu não engulo, por exemplo, depois de tudo o que vivemos na última década, que a gente siga achando que gênero e raça no Brasil é uma questão de identidade. É também sobre identidade, mas é sobre desigualdade. Então, é preciso dizer: a gente também precisa se letrar. Todo mundo tem o direito de não saber, mas alto lá…Utilizar isso como um espaço pra dizer que “eu não sou dessa turma moderna”, “não é do meu tempo”…Como disse o Drummond, “o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.


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