Entrevistas
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16 de agosto de 2021
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07:18

‘Para a sociedade, é como se fosse um animal que tivesse morrido’, diz Telma Taurepang

Por
Fernanda Nascimento
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Telma Taurepang luta há mais de 30 anos contra as desigualdades sofridas por mulheres indígenas. Foto: Luiza Castro/Sul21
Telma Taurepang luta há mais de 30 anos contra as desigualdades sofridas por mulheres indígenas. Foto: Luiza Castro/Sul21

O assassinato de Daiane Griá Sales e Raissa Silva Cabreira, indígenas das etnias kaingang e guarani kaiowá, respectivamente, reacendeu um debate que para as mulheres indígenas parece nunca ter encontrado eco suficiente na sociedade: a violência estrutural e específica sofrida por essa parcela da população. Telma Taurepang é uma das lideranças que luta há mais de 30 anos contra as desigualdades sofridas por mulheres indígenas e nesta entrevista especial ao Sul21 fala sobre os episódios brutais que marcaram os últimos dias. A primeira tuxauna (chefe) do povo Taurepang é assertiva ao afirmar que a violência sofrida pelas mulheres indígenas tem como causa a exploração sistemática de territórios e corpos, herança do processo colonizador mantida na atualidade.

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Taurepang vive na Terra Indígena Araçá, localizada em Amajari, no Norte de Roraima, e é uma das poucas mulheres indígenas com voz ativa dentro e fora das aldeias. Integrante da coordenação da União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira, Telma afirma que as mulheres indígenas continuam tendo o espaço interditado nos debates, em uma discriminação marcada pela articulação entre racismo e sexismo. Para a liderança, a pauta das mulheres indígenas não adquire a relevância e a visibilidade necessárias porque a  sociedade “não tira os óculos para ter uma visão de que somos mulheres. Kaingang, xokleng ou xavante, somos mulheres. Somos seres humanos, temos sentimentos e temos almas. Cada dia que passa é lutar para existir, mesmo”.

Ao comentar os casos, alude que os comentários após o assassinato de Daiane, jovem encontrada morta fora dos limites da Terra Indígena do Guarita, onde residia, explicita a reiterada culpabilização da vítima pelos atos de violência sofridos. Vídeos que circulam pelas redes sociais mostram Daiane horas antes de seu desaparecimento dançando em frente a um carro, com outras meninas. “Nós somos seres humanos, temos o direito, o livre arbítrio de fazer o que queremos e não sermos violentadas, estupradas e mortas”, disse. 

A menos de um mês da II Marcha das Mulheres Indígenas, prevista para setembro, em Brasília, ela avalia que desde o primeiro encontro, em 2019, a situação dos povos indígenas “piorou”, especialmente pela ausência na implementação de políticas públicas e pela retirada de direitos já adquiridos. Telma critica os discursos que pregam uma suposta integração dos povos indígenas como solução para um cenário de miséria e exploração que configuram a vida de vários povos em diferentes territórios. “Integrar o quê? Em que, de fato? A destruição? É isso que é uma integração?”.

Para Telma, a luta das mulheres indígenas é a luta pelo território por se relacionar diretamente à violência interna e externa. “O que é prioritário para a mulher indígena, especialmente no Sul, é a terra. No Norte, nós temos terra, temos como plantar. E o Sul que é empurrado pelo agronegócio? Ele é empurrado para o extermínio e é empurrado para os conflitos”, define.

“Essa juventude está sendo massacrada desde quando entrou a colonização”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21 – De que maneira os assassinatos de Daiane e Raissa expõem uma violência que tu denuncias há anos?

Telma: Os dois episódios estão bem mais explícitos e mais visíveis porque já se está denunciando. E antes? Não era denunciado. A gente não tinha uma ferramenta, um celular e uma rede social. Essa juventude está sendo massacrada desde quando entrou a colonização. Esses dois acontecimentos deixam muito claro, para nós, que a colonização perpetua. E trouxe o machismo para dentro dos nossos territórios. Uma liderança é muito machista quando diz “ah, mas ela gostava de tomar uma cerveja, uma pinga”. Nós somos seres humanos, temos o direito, o livre arbítrio de fazer o que queremos e não sermos violentadas, estupradas e mortas. A luta, hoje, é para dizer ao mundo que continua a colonização dentro dos nossos territórios.

Sul21 – Assim como fora das aldeias, muitas mulheres têm medo de falar sobre situações de violência e sofrer represálias dos agressores. Como está o debate interno sobre as desigualdades de gênero?

Telma: Ele só é realizado quando temos uma mulher à frente e que tenha voz. Não foi fácil chegar aqui como mulher. Houve todo um processo de luta, de dizer: “olhe, eu estou aqui, eu sou mulher, eu tenho direito, eu posso falar”. Tanto é que quando eu chego dentro da aldeia, são poucas mulheres que falam e entre 10 homens, tem só uma mulher que fala. Nós precisamos, de fato, dar visibilidade para as mulheres indígenas dentro das aldeias. Uma das questões que eu digo dentro das comunidades é que nós precisamos fazer um regimento interno e se o conselho da comunidade não resolver, nós temos que ir para outra esfera, porque a violência contra a mulher não é cultura.

Sul21 – E os problemas têm sido resolvidos pelas instituições internas das comunidades?

Telma: Não estão sendo resolvidos. Eu lhe digo, com toda a sinceridade, se estivesse resolvendo nós teríamos mais mulheres como lideranças, como tuxauas (chefes), como caciques dentro da aldeia. São poucas as que têm a voz de Telma Taurepang, Sônia Guajajara, Joenia Wapichana e Nara Baré. A colonização nos trouxe e nos mostrou uma destruição, mas também trouxe seres humanos que foram se moldando e se modificando e dizendo assim: “essas mulheres, elas existem”. 

“Nós não temos expectativa nenhuma, a não ser de nós lutarmos, continuarmos lutando”. Foto: Luiza Castro/Sul21

Na cultura indígena dos Taurepang, as mulheres é que conduzem os casamentos. Minha mãe me casou aos 14 anos. Não deu certo, por conta de violência. Eu não aceitei, porque eu tive uma vida entre sete homens: seis homens que eram os meus irmãos e o meu pai. E o meu pai, ele sempre disse para que nenhuma mulher permitisse que homem algum tocassem nela sem ela permitir. Eu fui crescendo nisso. Hoje eu luto. A gente vai viajar agora, eu vou levar um dos meus filhos para essa luta. Nós vamos para Brasília, em setembro vamos para a marcha.

Sul21 – A I Marcha das Mulheres Indígenas aconteceu há dois anos e no próximo mês está programado este segundo encontro. Como avalia o cenário desde aquele momento?

Telma: Piorou. Até então, a gente tinha uma outra expectativa. E hoje? Nós não temos expectativa nenhuma, a não ser de nós lutarmos, continuarmos lutando, para a resistência e a existência dessas mulheres. E nós estamos fazendo um papel, como mulheres, lutando pelo nosso povo, pelos nossos povos. Mas é uma situação difícil, porque nós não conseguimos trazer um mecanismo para trazer uma política pública que atenda às comunidades. A gente busca e a gente consegue o mínimo para resistir dentro dos nossos territórios.

Sul21 – E quais são as políticas públicas prioritárias para as mulheres indígenas?

Telma: O que é prioritário para a mulher indígena, especialmente no Sul, é a terra. No Norte, nós temos terra, temos como plantar. E o Sul que é empurrado pelo agronegócio? Ele é empurrado para o extermínio e é empurrado para os conflitos. E aí cabe ao poder municipal, estadual e federal. E aí, o nosso poder maior, que é o federal, que poderia ajudar a nível estadual e a municipal, é um descaso. Como iremos fazer? Qual a estratégia hoje? Eu já falei que precisamos ter uma estratégia para as vidas futuras. Se continuar como está, cada vez mais, a situação fica difícil, porque quando um governante diz que não demarca um milímetro, ele vai fazer o que? A tendência é destruir. “Ah, vamos integrar”. Integrar o quê? Em que, de fato? A destruição? É isso que é uma integração? Então, assim, a cada dia passamos por momentos difíceis. Os assassinatos e os feminicídios que acontecem dentro dos territórios se agravaram muito mais com a pandemia. Eu só acredito que as mulheres estão se articulando muito bem, buscando estratégias entre nós, para que a gente consiga parar esse rolo compressor de destruição.

“As mulheres foram pegas a laço, foram estupradas e mortas pelos colonizadores”. Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21 – As crianças, adolescentes e mulheres indígenas estão entre as parcelas da população que, proporcionalmente, mais sofrem com abusos, estupros e assassinatos. Qual a razão de uma vulnerabilidade tão grande?

Telma: Essa situação cada vez se complica mais porque não temos uma política voltada à própria comunidade, porque nós não temos o território. Quando nós temos o território muitas organizações acabam  fazendo o papel do governo e trazendo pequenos projetos de desenvolvimento sustentável e econômico. Dentro da minha comunidade, nós temos o projeto de grãos, onde as famílias se reuniram para plantar. Nós temos um projeto de reflorestamento. Aquelas famílias estão envolvidas, estão planejando e envolvendo os filhos. Então, o governo federal precisa demarcar as terras no Sul para amenizar a violência e a violação de direitos daquele povo, daquela juventude, daquelas mulheres, porque só dali se tira uma política voltada, aí teremos educação, saúde e qualidade de vida.

Sul21 – No começo de nossa conversa, tu nos falou sobre a ampliação das denúncias. Mas algo que ficou evidente no caso do assassinato da Daiane é que a comoção e a mobilização da sociedade em torno do caso foi menor do que em outras situações de violência envolvendo mulheres brancas, por exemplo. Como o racismo perpassa esses diferentes níveis de repercussão? 

Telma: Não há um entendimento e um olhar. Para a sociedade, é como se fosse um animal que tivesse morrido. Você observa que poucos se manifestaram e pouco se teve uma repercussão. De onde vem todo o preconceito? “Ah, porque era uma jovem que estava ali e gostava de sair e tinha amigos”. É uma situação cada vez mais desastrosa porque a própria sociedade pune e discrimina. A sociedade não enxerga. Ela não tira os óculos para ter uma visão de que somos mulheres. Kaingang, xokleng ou xavante, somos mulheres. Somos seres humanos, temos sentimentos e temos almas. Cada dia que passa é lutar para existir, mesmo. Porque é uma sociedade capitalista, é uma sociedade racista e é uma sociedade de extermínio. Eles tentam nos exterminar para garantir a própria vida.

Sul21 – Para concluir, porque a luta específica das mulheres indígenas é importante para a luta dos povos indígenas?

Telma:  A terra dá água, dá alimento e vai moldando. Porque os seres humanos que estavam aqui quando Pedro Álvares Cabral chegou receberam ele tão bem? Porque não pensavam em destruir e não tinham ganância. Essa é a grande diferença de nós. Aqui, existiam povos originários, mulheres que lutaram e que continuaram lutando para nossa existência. As mulheres foram pegas a laço, foram estupradas e mortas pelos colonizadores. E eles continuam nos matando. Mas além do sangue dos colonizadores está ali o sangue de um povo que luta pela resistência, pela existência das mulheres indígenas.


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