Entrevistas
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21 de novembro de 2020
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12:11

Katiúscia Ribeiro: o apagamento do conhecimento africano é o alicerce do racismo, veio antes da bala e das correntes

Por
Luís Gomes
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Katiúscia Ribeiro | Foto: Arquivo Pessoal
Katiúscia Ribeiro | Foto: Arquivo Pessoal

Qual é a origem do racismo? Para Katiúscia Ribeiro, mestra e doutoranda em Filosofia Africana pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ) e coordenadora-geral do Geru Maa – Laboratório de Africologia e Estudo Ameríndios, da mesma instituição, uma das origens está no apagamento dos conhecimentos e saberes produzidos pelos povos africanos ao longo da história.

“História é poder. E uma das bases que alicerçam o racismo é o epistemicídio. O epistemicídio chega antes da bala, chega antes da corrente, chega antes das violências e das desigualdades. Porque, se você não tem uma base que alicerça uma história humana que não seja uma história somente de açoite e chicotes, o que você reconhece na nossa população e como isso cria, na nossa subjetividade, um lugar de desumanização das nossas populações negras. Então, quando você reintegra a história, você reintegra uma possibilidade de reconhecer esses sujeitos que não seja pela desumanização”, diz,

Desde a graduação, Katiúscia tem trabalhado para ir contra essa corrente. Foi dela a primeira monografia de Filosofia da história da UFRJ que utilizou apenas autores africanos. Um processo que tem ganhado força com o aumento do número de estudantes negros nas universidades e que, para ela, é fundamental para pensar uma realidade em que a história ocidental, eurocêntrica, não seja considerada como universal.

“Se desde criança nós conhecemos a história do Ocidente e não reconhecemos outras histórias, e esse Ocidente, porque ele pensa os povos africanos a partir das suas humanidades, da branquitude, a desumanidade já está posta. Então, o reconhecimento das histórias africanas, o reconhecimento da Antropologia Africana, da História Africana, da Filosofia Africana, é um reconhecimento da contribuição dos povos africanos à história do mundo. Pensamento é poder, e, quando você valida essa história, você valida essa humanidade. Então, muito mais do que dizer se existe Filosofia Africana, História, Matemática, é quebrar essa noção de que a população negra não tem capacidade cognitiva de produção de conhecimento, não tem história. Um povo sem história é um povo sem memória, um povo que está a margem do açoite”, afirma.

Em entrevista ao Sul21, a professora aborda a importância dessa busca pelos conhecimentos e saberes africanos e destaca também o poder de transformação social que reside nesse processo. “Você vê hoje alguns cenários, algumas discussões entrando no centro do debate, e elas entram no centro do debate porque são fruto dessa nova camada negra intelectual, que sai da subalternidade da história, que sai da subalternidade intelectual e está no centro produzindo conhecimento. Então, as cotas raciais, as ações afirmativas, elas foram um marco histórico importante para mudar o percurso. A grande maioria das pessoas negras que entraram por cotas raciais nas universidades foram pesquisar a negritude, porque foram fazer investigações para tentar resolver os problemas que assolam as suas comunidades”, diz.

Sul21 – Você escreveu a primeira monografia da UFRJ exclusivamente com referências de autores africanos. Como foi esse processo de ampliar o conhecimento para além das referências eurocêntricas?

Katiúscia Ribeiro: A ideia dessa monografia, na época, não era ter que escrever nesse formato. Era simplesmente fazer uma pesquisa em torno de um conhecimento filosófico, só que a academia não reconhecia a África como uma produtora de filosofia. Eu busquei fazer uma investigação epistemológica para reconhecimento da Filosofia Africana como legítima, o que foi muito importante. A partir daquele momento, a UFRJ abre a escuta e o diálogo, reconhecendo outras filosofias que não só as dos cânones e das tradições ocidentais. Essa abertura para o diálogo nos ajuda a pensar outros horizontes das humanidades. Não somente pelo Ocidente, esse Ocidente tão engessado, tão cristalizado, mas como o quanto é fundamental para pensar uma realidade de mundo que não seja somente a ocidental, a universal, o ocidente como o único paradigma possível. E, até aquele momento, nenhuma outra monografia com esse viés tinha sido publicada e apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Sul21 – Como o conhecimento da ancestralidade pode ajudar em lutas como o combate ao racismo?

Katiúscia Ribeiro: Quando nós falamos nas filosofias que estão ancoradas na ancestralidade, é para tentar pensar um modo de organização política que existe desde antes da colonização e como esses modos políticos de filosofia acabam incidindo na sobrevivência do povo que chega aqui escravizado. Então, quando nós estamos falando da Filosofia Africana, por exemplo e dessa Filosofia da Ancestralidade, é olhar para os quilombos a partir de uma perspectiva política de organização. O ex-senador Abdias do Nascimento, em “O Quilombismo”, olha para o quilombismo e olha para a República de Palmares como a primeira república que se organiza a partir do reconhecimento dessa comunidade, de um senso comunitário, uma noção política que não está ancorada nas singularidades, mas na coletividade. O que nós chamamos e conhecemos como Ubuntu, da qual muito se fala, essa noção filosófica que reconhece o todo e todos os sujeitos, nos ajuda na atualidade, por exemplo, a pensar uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais plural, que reconhece as especificidades do sujeito porque esse sujeito está inserido dentro dessa comunidade. Então, olhar para essa ancestralidade, e quando falamos de ancestralidade muitas vezes ela é confundida com espiritualidade e com religiosidade, quando não. Ancestralidade é entender um modo político organizado na antiguidade, por exemplo. O que fez com que a população negra não sucumbisse às violências da colonização? Tem uma organização política. O que Zumbi pode nos dizer sobre isso? Zumbi nos ajuda a entender a coletividade presente dentro do Quilombo dos Palmares, que tinha um estatuto, que tinha um modo de organização política, um modelo de escola. Nós fomos socializados dentro de um contrato social e o quilombo nos ajuda a entender uma sociabilidade na pluralidade de todos os sujeitos que dialogam ali.

Sul21 – No que a Filosofia Africana se diferencia do modelo europeu?

Katiúscia Ribeiro: Eu acredito que a primeira diferença, que é bem reconhecida, é a noção da Filosofia Africana de que o sujeito não é estritamente racional. Não é uma filosofia que está calcada na experiência da racionalidade, ela é um elemento que compõe o sujeito. Isso por quê? A diferença, essa ruptura com o mythos e o logos para pensar a realidade concreta, para pensar como o crítico e o real se dá, na Filosofia Africana ela não existe. Porque myhtos e logos compõe a realidade. Para pensar o concreto, você tem que pensar o que não é real, porque, dentro das premissas das filosofias africanas, quando nós olhamos para esse não real, para esse mito, o mito compõe uma realidade. Você olha para o mito, esse mito compõe uma realidade e faz com que você entenda que a forma de perceber o mito não é necessariamente uma forma racional. Então, eu acredito que essa seja a grande diferença. Você pensar uma realidade de mundo que não seja racional. Não existem sujeitos que sejam estritamente racionais. A Filosofia Africana entende o sentir como uma possibilidade dessa ontologia que é o sentir e pensar. Não que a razão não exista, mas ela está atrelada também ao sentir.

Sul21 – Como a falta de contato com a produção intelectual africana, não só com a Filosofia, mas também com outras áreas do conhecimento, se relaciona com a questão do racismo?

Katiúscia Ribeiro: História é poder. E uma das bases que alicerçam o racismo é o epistemicídio. O epistemicídio chega antes da bala, chega antes da corrente, chega antes das violências e das desigualdades. Porque, se você não tem uma base que alicerça uma história humana que não seja uma história somente de açoite e chicotes, o que você reconhece na nossa população e como isso cria, na nossa subjetividade, um lugar de desumanização das nossas populações negras. Então, quando você reintegra a história, você reintegra uma possibilidade de reconhecer esses sujeitos que não seja pela desumanização. Nós estamos numa era que muito se fala de Blacks Lives Matter, Vidas Negras Importam. Mas, para essa vida importar, você tem que entender qual é a história que deu sedimento às bases dessas humanidades. A população negra é desumanizada porque a forma de reconhecimento das suas humanidades e da sua ontologia não reconhece a sua história. Então, se desde criança nós conhecemos a história do Ocidente e não reconhecemos outras histórias, e esse Ocidente, porque ele pensa os povos africanos a partir das suas humanidades, da branquitude, a desumanidade já está posta. Então, o reconhecimento das histórias africanas, o reconhecimento da Antropologia Africana, da História Africana, da Filosofia Africana, é um reconhecimento da contribuição dos povos africanos à história do mundo. Pensamento é poder, e, quando você valida essa história, você valida essa humanidade. Então, muito mais do que dizer se existe Filosofia Africana, História, Matemática, é quebrar essa noção de que a população negra não tem capacidade cognitiva de produção de conhecimento, não tem história. Um povo sem história é um povo sem memória, um povo que está a margem do açoite. Então, é de fundamental importância reintegrar essa história e, quando você faz isso, você dá poder a essa história. E é o que acontece. Nós estamos dentro de uma noção cultural que todo o poder é dado ao Ocidente. Então, se esse povo foi o povo que inventou a Filosofia, que inventou a música, inventou a Matemática, eles são os grandes heróis da História. Você precisa reintegrar a História para entender a presença da população negra da História, e não só negra, o mesmo acontece com a população indígena.

Sul21 – Corrija-me se eu estiver enganado, mas esse processo de busca por autores de negros parece estar crescendo bastante nas últimas décadas. A que você atribui esse movimento? E qual a importância da lei que garante o ensino da História Africana nas escolas nesse contexto?

Katiúscia Ribeiro: A lei e esse contexto estar no cenário há 10 anos é justamente o reconhecimento que essa história não começou agora. Ela pode estar em evidência, mas só está em evidência por conta de uma luta política histórica do movimento negro desse País. Desde 1932, desde a Frente Negra Brasileira, reivindica-se o estudo de África nas escolas, o que não foi garantido. Então, esse fenômeno não é recente, ele pode ganhar força na atualidade, mas ganha força porque está ancorado na historicidade política da população negra desse País, que são os movimentos organizados desde quando o primeiro escravizado aqui chega, sempre se organizou para isso. Mas, com os adventos das pautas tomarem as grandes redes, as redes sociais, os meios de comunicação, entrevistas como essa, faz com que esse apagamento histórico ganhe força, ganhe reconhecimento, mas não é uma luta recente. Por exemplo, a Lei 10.639 era uma das bases da Frente Negra Brasileira em 1932. Só que ela é promulgada só em 2003, mas ela é promulgada e não prevê sanção, ela não está nas escolas. Então, veja como nós ainda estamos diante de um racismo estrutural e epistêmico. Mas a validação desses conhecimentos é urgente, é emergencial, não somente para as populações negras, porque a Lei 10.639 possibilita o reconhecimento da sua história para as crianças negras, mas também possibilita que as crianças brancas sejam mais refratárias ao racismo. Se você reconhece uma outra história, um outro sujeito, você não subalterniza mais ele.

Sul21 – Com a política de cotas, a gente teve um avanço da presença das populações negras nas universidades. Como você avalia o efeito que isso já teve na nossa sociedade do ponto de vista de produção intelectual e como vislumbra que será o efeito no futuro?

Katiúscia Ribeiro: A política de cotas e as políticas de ações afirmativas possibilitam que a população negra entre nas universidades e comecem a produzir a partir da sua especificidade, comecem a produzir a partir do seu horizonte de análise, do seu crivo crítico. Então, é fundamental para mudar o cenário. Você vê hoje alguns cenários, algumas discussões entrando no centro do debate, e elas entram no centro do debate porque são fruto dessa nova camada negra intelectual, que sai da subalternidade da história, que sai da subalternidade intelectual e está no centro produzindo conhecimento. Então, as cotas raciais, as ações afirmativas, elas foram um marco histórico importante para mudar o percurso. A grande maioria das pessoas negras que entraram por cotas raciais nas universidades foram pesquisar a negritude, porque foram fazer investigações para tentar resolver os problemas que assolam as suas comunidades. Então, é muito importante e vai ter um impacto de transformação no futuro, porque aí você vai ter intelectuais produzindo a partir de problemas reais do solo brasileiro, que são as questões raciais.

Sul21 – Ainda há muito por ser feito, mas o que poderia ser feito a curto e médio prazo para termos um intercâmbio maior com o pensamento africano e, inclusive, valorizar mais o pensamento dessa juventude que está deixando as universidades e desses cientistas que o Brasil está formado nos últimos anos? O que se pode fazer mais para avançar?

Katiúscia Ribeiro: Primeiro, eu acredito que tem que ter ações afirmativas em todos os espaços, não só nas universidades. Para que você tenha uma equidade racial no território brasileiro, você precisa abrir espaço para todas as pessoas negras. Uma sociedade democrática de direito só será válida quando a população negra tiver direito de estar em todos os espaços. Então, nós avançamos, mas avançamos pouco. Também precisamos ter professores nos espaços acadêmicos, os currículos escolares abrirem espaço para a História Africana, abrirem espaço para a História Africana, as disciplinas de África e africanidades comporem os currículos acadêmicos. Isso são algumas medidas que nos ajudam, porque você começa a ensinar uma outra história, um outro paradigma de reconhecimento histórico. Aí, você começa a automaticamente ter um impacto na sociedade, você começa a ter um impacto social real de verdade. Então, muito precisa ser feito e é preciso entender que muito do que se fez foi por pressão histórica do movimento negro. O 20 de novembro é um marco, esse mês dedicado às lutas históricas da população negra em suas diferentes  formas de lutas, eles comemoraram nas organizações coletivas, quilombos, processos de memória, história e sociabilidade e partilha que nos aproximam dessas tradições, dessas filosofias, dessas epistemologias e, principalmente, dessa ancestralidade africana, que nos ajuda a refletir sobre essas estratégias que o povo negro utilizou para sobreviver. Para isso, então, o que você precisa para avançar? Reconhecer essa data, ampliar os espaços de debate, ampliar os espaços nas universidades, enfim, todas as esferas estruturais e sociais desse País precisam estar em diálogo com as pautas raciais.

Sul21 – Para fechar, saindo um pouco da pauta e entrando na política. A gente teve no último domingo muitos negros, homens e mulheres, dessa juventude universitária que falamos, eleitos vereadores. Aqui em Porto Alegre, a gente tinha uma só mulher negra eleita titular na história, há 24 anos, e dessa vez foi formada uma bancada de quatro mulheres negras. Tivemos também a primeira mulher negra eleita em Curitiba. Por todo o Brasil, tivemos resultados nessa área, ainda que muito longe da representatividade real da população. Mas como tu avalia a chegada dessa juventude, formada há pouco tempo nas universidades, nos parlamentos e o que tu acha que isso pode trazer de transformação social?

Katiúscia Ribeiro: É, para que nós possamos ter essa transformação social, nós precisamos…Quando eu estive no Roda Viva, em junho, conversando com o ministro Barroso, eu lembro que uma das perguntas que eu fiz a ele foi justamente sobre isso. Para que nós possamos aumentar a diversidade na via pública brasileira, já que somos múltiplos, já que o Brasil é composto majoritariamente por uma população não branca, o que nós precisamos perguntar é por que essa ampla maioria não está compondo esses espaços de decisão e de poder. Para que nós tenhamos um estado democrático de direito, é importante essa alternância de poder e a presença dessa nova bancada, dessas novas pessoas, é de fundamental importância justamente para que possa ter um outro olhar a partir das pessoas que estão na gestão, estão nesse modus de perceber a construção política. Então, é importante a entrada dessas pessoas, é importante a entrada das mulheres negras, é importante a entrada dos homens negros, porque, até hoje, o Estado brasileiro nunca se responsabilizou com as pautas raciais de fato. Quem sabe com a entrada das pessoas pretas nesse espaço, se chegue, se é que é possível, nesse estado democrático de direito.


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