Entrevistas
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24 de março de 2014
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10:54

Bona Garcia: “Sinto orgulho de ter feito algo, de não ter sido omisso, alienado”

Por
Sul 21
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João Carlos Bona Garcia: "É preciso dizer que a resistência armada se deve à própria repressão" |Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
João Carlos Bona Garcia: “É preciso dizer que a resistência armada se deve à própria repressão” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Nubia Silveira *

João Carlos Bona Garcia é um exemplo de resiliência. Começou a trabalhar aos 14 anos. Aos 17, já estava na militância contra a ditadura. Na VPR – Vanguarda Popular Revolucionária,  participou da luta armada. Foi preso, torturado, trocado pelo embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, que havia sido sequestrado. Foi banido e exilado.

No Chile, sofreu com mais um golpe da direita. Conseguiu entrar na embaixada da Argentina em Santiago. Em Buenos Aires, escapou de uma cilada. Com a ajuda do ex-governador pernambucano Miguel Arraes foi para a Argélia. Viajou com a mulher, Célia, e o primeiro filho, Rodrigo, nascido no Chile. A identidade argelina, escrita em árabe, impedia a sua entrada em outro país. Mais uma vez Miguel Arraes o ajudou: conseguiu-lhe identidade falsa, com a qual entrou na França. O segundo filho, Luciano, havia nascido na Argélia.

No exílio, lutou pela anistia. Voltou ao Brasil quase dez anos depois do banimento. Aqui nasceu o terceiro filho, Diego. Ajudou a formar o PMDB no Vale do Taquari e em sua terra natal, Passo Fundo, onde foi candidato a prefeito, pelo partido, nas eleições de 1982. Não contou com o apoio do PMDB, que o impedira de ser candidato a deputado estadual, e sofreu a pressão do Exército, que não deixava de vigiá-lo. Não foi eleito. Recomeçou a vida em Porto Alegre. Trabalhou nos governos Simon e Britto e estudou Direito, o que lhe permitiu ser juiz e presidente do Tribunal de Justiça Militar.

Há alguns anos, lutou contra outro inimigo: o câncer. Venceu. Hoje, está aposentado. Lembra que nunca perdeu o controle de sua vida, sempre definiu o que fazer dela. Está sempre em busca de algo. Agora, estuda italiano. Em parceria com Júlio Posenato, escreveu Verás que um filho teu não foge à luta e foi personagem do filme Em teu nome, dirigido por Paulo Nascimento. Ao olhar para trás, afirma, serenamente, que tudo o que fez valeu a pena: “Sinto orgulho de ter feito algo, de não ter sido omisso, alienado. A vida não passou em branco”.

Sul21 – Quando você decidiu entrar para a resistência à ditadura?
João Carlos Bona Garcia –
Primeiro é preciso lembrar que os anos 1960 foram um período diferenciado, marcaram a insatisfação e da revolta dos jovens. O mundo estava dividido entre União Soviética e Estados Unidos. A juventude estava se posicionando. Aqui os jovens passaram a focar na situação do país, na filosofia, na política. Nós, com 16, 17 anos, nos preocupávamos em ler sobre a revolução russa, a longa marcha de Mao, a história de Lênin. Mesmo que não se entendesse nada, se carregava o livro embaixo do braço, para dizer que estava lendo. Queríamos romper com a família, com a sociedade, com tudo. Buscávamos novos horizontes. O fato de o pessoal hoje ficar com a namorada, nós iniciamos isso, naquela época.

"Nós queríamos o confronto, a luta para derrubar a ditadura" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Nós queríamos o confronto, a luta para derrubar a ditadura” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Vocês viveram também a época do pré-golpe.
Bona Garcia –
O golpe já havia sido tentado. Foi assim com JK. Queriam impedir a posse dele. E depois com Jango, porque o Exército já estava comprometido com a ideologia norte-americana, que não queria ninguém tentando sair daquele curral. Também houve, naquela época, algo extraordinário, que merece estudo: é a questão do anticomunismo, do antimarxismo. Foi algo nunca visto em termos de ideologia. Era impressionante a luta, o medo que os setores conservadores tinham do comunismo, era algo fantástico. Lembro que no colégio tinha um cartaz, mostrando um trem que vinha esmagar as criancinhas, todas com uma flor na mão. Era grotesco.

Sul21 – Diziam que os comunistas faziam sabão com as crianças.
Bona Garcia –
E o pessoal da direita acreditava naquela baboseira dos Estados Unidos. Os norte-americanos interferiam de forma descarada. Teve o encontro do Jango (João Goulart, presidente do Brasil, de 1961 a 1964) com o Kennedy (John Kennedy presidente dos Estados Unidos, de 1961-1963) no Vaticano, na posse do papa João XXIII, em que o americano insistia em reclamar de Jango, dizendo que ele tinha comunistas no ministério. Isso foi uma afronta. Os Estados Unidos diziam que era preciso esmagar o comunismo, não podiam deixá-lo crescer no Brasil. Descarregaram muito dinheiro aqui. Fizeram o mesmo no Chile. Trabalhei com Allende (presidente chileno Salvador Allende, de 1970 a 1973), no governo dele. Foi brutal o que fizeram lá.

Sul21 – E a tua atividade política? Quando começou?
Bom Garcia –
Trabalhei desde os 14 anos. Fazia movimento estudantil desde o segundo grau (atual ensino médio). Fui presidente, vice, tesoureiro da entidade dos estudantes secundaristas em Passo Fundo , a UPE – União Passo-fundense de Estudantes. Foi lá onde tudo começou. Discutíamos a questão do ensino e outras. Queríamos abraçar o mundo. Por outro lado, levávamos o estudo a sério. Era difícil os professores nos acusarem de algo, nós éramos bons alunos. Mas, em 1968, fizemos uma greve muito grande e acabamos expulsos do Colégio Estadual Nicolau de Araújo Vergueiro.

“Eu cursava o 3º ano científico. Então a UPE decidiu em assembleia pagar uma escola particular pra mim. Para me matricular no IE (Instituto Educacional, metodista), o diretor exigiu um documento em que eu renunciava à política estudantil dentro da escola. Era o meio que eu dispunha para concluir o 2º grau. Assinei. No segundo dia de aula o Dops foi me buscar, preso, para novo interrogatório” (segunda edição de Verás que um filho teu não foge à luta, de J.C. Bona Garcia e Júlio Posenato, editado por Posenato Arte & Cultura, em 1989)

Sul21 – Para onde te levaram?
Bona Garcia – Fui preso duas vezes na unidade do Exército em Passo Fundo. Qualquer evento destes na cidade, que era pequena, conservadora, gerava um tumulto. Me mudei para Porto Alegre. Vim fazer o vestibular para Engenharia. É preciso dizer que a resistência armada se deve à própria repressão. Ela foi aumentando o tom. Não havia liberdade de organização. Tudo isso, associado à divisão do mundo entre norte-americanos e russos, levou os jovens a criticarem a postura da esquerda, principalmente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), exigindo uma posição mais forte em relação à ditadura militar.

Sul21 – O PCB sofreu dissidências.
Bona Garcia –
A situação como estava era um caldo para uma dissidência, para a formação de grupos que saíram do PC e optaram por uma reação mais forte. Nós também queríamos um confronto maior com a ditadura militar.

"A gente comprava armas do próprio Exército. O dinheiro saía das ações armadas | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“A gente comprava armas do próprio Exército. O dinheiro saía das ações armadas | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Teu primeiro grupo foi o Polop?
Bona Garcia –
Eu tinha contato com uma dissidência do PC, que achava que o Partido Comunista não estava engajado, estava acomodado, esperando as coisas acontecerem, procurando se manter como partido, como célula. Acabamos no POC – Partido Operário Comunista. Fui a Passo Fundo, onde conseguimos arregimentar um grupo de pessoas. No POC, havia muita discussão, mas não avançava. Nós queríamos o confronto, a luta para derrubar a ditadura. Tínhamos ansiedade por começar a lutar, assumir uma posição mais arrojada.

Sul21 – Aí deixaste o POC.
Bona Garcia –
O caminho foi deixar o POC e criar no Sul uma unidade da VPR, que era voltada mais à ação.

Sul21 – E o Polop?
Bona Garcia –
Ele era o DNA da VPR. O objetivo da VPR era repetir no Sul o que estavam fazendo em São Paulo (o balizador), Rio e Minas. Devíamos montar uma unidade no interior para tentar fazer a luta com os camponeses.  Começamos a montar essa unidade em Três Passos. Para isso, foi criada uma empresa de pesca, porque teríamos caminhões frigoríficos, em que poderíamos transportar armas. A gente comprava armas do próprio Exército. O dinheiro saía das ações armadas. A ideia era que o Lamarca (Carlos Lamarca desertou do Exército em 1969 e se tornou um dos comandantes da VPR) viesse para o Rio Grande do Sul.

“Não é fácil calcular o número de pessoas que se engajaram na luta armada. Penso que com todas as organizações que existiam no país, o número não alcançava dez mil. Uma luta completamente desigual.” (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul 21 – Além da VPR quem mais promovia expropriações bancárias?
Bona Garcia –
A VAR – Vanguarda Armada Revoluionária começou a participar de ações. O M3G (Max, Mao, Marighella e Guevara) também. Com isso, mandaram especialistas das forças de repressão de São Paulo e Rio de Janeiro para Porto Alegre. Um deles se chamava Malhães e o outro, Cabral.

“Minha primeira ação de expropriação bancária foi contra um carro do Banco Brasul que arrecadava o dinheiro da Ultragás. (…) O Ergeu interceptou o carro com o Gordini roubado. Jogou de frente , o carro pagador travou. Como era estrada de chão, levantou uma nuvem de pó. (…) O motorista, alto, gordo e forte entrou em pânico e ficou parado, perplexo. Eu comecei a me desesperar, tínhamos pouco tempo para fazer o assalto. (…) Ele (o motorista) me encarou tranquilamente e respondeu: olha não vou descer, pode atirar. Me bateu uma loucura, uma onda de calor, um sentimento difícil  de descrever. Eu não me sentia capaz de ferir alguém, seria a primeira vez em minha vida. Disse a ele: meu amigo, então vou ter que atirar. Engatilhei o revólver e encostei na cabeça dele. Ele foi se  mexendo um pouquinho até sair do carro. Me deu uma satisfação , uma sensação imensa de alegria, vontade de jogar a arma fora e dar um abraço nele, dizer: irmão, muito obrigado, você me tirou de um pepino de lascar”.  (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – E o sequestro do cônsul dos Estados Unidos?
Bona Garcia –
Com a tentativa de sequestro do cônsul norte-americano em Porto Alegre (Curtis Carly Cutter), a repressão baixou aqui e os companheiros começaram a ser presos. Como pegaram aqui a direção da VPR, nós pensamos em sequestrar o cônsul japonês, mas fui preso com o Ergeu Menegon. O MR 26, liderado pelo Paulo Mello e o Paulo Medeiros, ajudou. O combinado era que a VPR faria o sequestro e o MR 26 guardaria o cônsul.

"Não existia muita preparação, nem muita organização. O amadorismo era muito forte" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Não existia muita preparação, nem muita organização. O amadorismo era muito forte” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como vocês se preparavam para as expropriações, como se prepararam para o sequestro?
Bona Garcia –
Não existia muita preparação, nem muita organização. O amadorismo era muito forte. Era atuação. A disposição dos militantes para fazer as ações. Havia um romantismo. Parecia um negócio meio cristão, de se doar. O que mais nos marcou, e por isso existe cumplicidade entre as pessoas até hoje, foi a existência de certa identidade, de uma dose aventureira, de paixão, de amor, de querer transformar o mundo, uma utopia muito forte de criar um país em que não houvesse exploração e todo mundo fosse igual. O que mais marcou é que nós oferecíamos para a causa a única coisa de valor que tínhamos: a vida.  Estávamos dispostos a morrer, a doar a vida em nome de uma ideia maior que era mudar o processo político. A gente não lutava só por liberdade. Queríamos mudar o país.

“O sequestro não deu certo, foi mal preparado. O cônsul, veterano da guerra da Coreia, tinha experiência, não era assustado, e dirigia uma perua Chevrolet americana, grandona. Para segurar um carro como aquele precisava uma caminhonete com cabine dupla ou outro carro pesado, nunca um fusca. Não podia dar certo.” (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – Alguém saiu ferido?
Bona Garcia –
O americano estava saindo de uma festa, bastante embalado, atropelou o Fernando Pimentel e o Félix Silveira da Rosa Neto acabou dando um tiro no cônsul, que depois apareceu com o braço engessado.

Sul21 – Foram todos presos.
Bona Garcia –
Foi todo o mundo preso. Passamos pelo Dops, pelo Presídio Central, pelo presídio da Ilha e pelo quartel (19 RE de São Leopoldo). No Dops é que fomos mais torturados, ficamos em solitária. Na Ilha, arquitetamos um plano de fuga. Um companheiro – Paulo Artur, o Paulão – nos denunciou, passou para o lado da polícia.  Ele não aguentou a tortura.

"Um major do Exercito, o Átila Rohrsetzer, torturava com brutalidade, batia ouvindo música clássica, falando da mulher e dos filhos" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Um major do Exercito, o Átila Rohrsetzer, torturava com brutalidade, batia ouvindo música clássica, falando da mulher e dos filhos” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Você fala sobre as torturas?
Bona Garcia –
No Dops, tomei muito choque. Um major do Exercito, o Átila Rohrsetzer, torturava com brutalidade, batia ouvindo música clássica, falando da mulher e dos filhos. Tinha sempre um médico do lado. O médico me examinava e dizia: “Pode bater que este é forte, aguenta”. O choque não deixa a gente nem respirar, nos queima todo. O Átila me deu tanto choque elétrico que fiquei queimado nas orelhas, nas mãos. Alguns inspetores do Dops quando viram aquilo saíram chorando.

“Você não pode deixar de gritar, o choque é uma tortura imensa, tem um componente novo. Levar uma paulada também é horrível, mas o choque dá muito medo, acontece tão rápido que o grito de desespero sai involuntário” (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – O que leva uma pessoa a torturar outra?
Bona Garcia –
São pessoas desequilibradas. Eles pensam que aquilo é uma guerra, que precisam torturar. Uma pessoa normal busca outros caminhos. A maioria é sádica. Há torturadores que ficam excitados. Chegam ao orgasmo.  O Estado se valeu dessas pessoas. Isso é que é o pior: o crime que eles cometeram foi em nome do Estado. O que eu mais me batia, na época da anistia, era para que o Estado reconhecesse a sua culpa. No Chile, no Uruguai, na Argentina, não só o Estado como as Forças Armadas disseram: erramos. No Brasil, os militares continuam dizendo que não erraram. Não é possível essa falta de consciência. É um negócio assustador.

Sul21 – E o Pedro Seelig?
Bona Garcia –
Uma pessoa completamente fora da realidade.

O pessoal da polícia ficava à volta (enquanto eram torturados), enlouquecido, gritando de prazer. Especialmente o Nilo Hervelha. Era o mais sádico, um dos piores torturadores, o mais cruel. Era também ligado ao tráfico de drogas. Durante as torturas chegava ao orgasmo. Isso também acontecia com outros. Já o major Átila Rohrsetzer mostrava uma volúpia especial torturando mulheres. Especialmente nos seios e órgãos genitais”. (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – Como resististe à tortura?
Bona Garcia –
Devido a um monte de fatores: a compleição física, a raiva.

"No Brasil, os militares continuam dizendo que não erraram. Não é possível essa falta de consciência. É um negócio assustador" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“No Brasil, os militares continuam dizendo que não erraram. Não é possível essa falta de consciência. É um negócio assustador” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Quando você se lembra de tudo isso o que sente?
Bona Garcia –
Hoje não tenho mais raiva. Quando voltei ao Brasil denunciei tudo e por isso fiquei sendo ainda perseguido por uns cinco anos. Quando o Paulo Nascimento, que dirigiu o filme Em teu nome (lançado em 2009), baseado no meu livro, esteve na Base Aérea de Canoas pedindo licença para filmar, pois foi dali que saímos para ser trocados pelo embaixador suíço (Giovanni Enrico Bucher), ao saberem que era um filme sobre a minha vida, eles negaram, dizendo: “Aquele terrorista tinha que ter sido morto”.  Quando presidi o Tribunal de Justiça Militar, numa solenidade, todo o comando do III Exército ficou de costas para mim. E eu reconheço o papel importante do Exército na vida nacional. Muita gente entrava no Exército para poder estudar, comer, vestir. O Exército fez um trabalho necessário como instituição. Mas daí você esconder como foi a morte do Vladimir Herzog, do Rubens Paiva, quando já está tudo provado… Custa virar a página? Dizer: “erramos”?

Sul 21 – Há perdão para os que traíram os companheiros?
Bona Garcia –
No início, eu não entendi bem. Hoje tenho um sentimento de compaixão para com eles. Acho que eles sofrem ainda hoje. Quem traiu foi para o lado da polícia, teve um comportamento péssimo, se igualou ao torturador.

Sul21 – Como foi a troca pelo embaixador? A saída para o exílio?
Bona Garcia – O exílio é complicado. A gente vai se distanciado do Brasil. É preciso avançar. Fomos para o Chile só com a roupa do corpo. Respeito muito o povo chileno, o Allende. Ele era um legalista.

“Saí do Brasil sem ver meus familiares. Fui levado para a Base Aérea de Canoas. (…) Sempre algemados, embarcamos num pequeno avião militar que nos levou até o Galeão, no Rio de Janeiro, onde nos entregaram ao Exército. (…) O ódio deles conosco era feroz. Prometiam nos matar se o sequestro falhasse. Disseram isso também no Dops, em Porto Alegre.” (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – Você foi criticado pelos seus companheiros por decidir trabalhar no Chile.
Bona Garcia –
É verdade.Achavam que era preciso se reunir, voltar ao Brasil, mesmo que estivessem se distanciando cada vez mais do país. Teve gente que foi fazer treinamento na Coreia do Norte. Queriam que eu fosse. Eu disse não, porque a Célia tinha ido para o Chile ficar comigo e, se era para voltar ao Brasil, o Chile é mais perto. Mas, vivíamos dentro dessa lógica: você tinha que, todos os dias, reafirmar que voltaria. Trabalhando, você se integra à comunidade. Isso é um risco. Eu tomei a decisão de nunca parar de estudar, de trabalhar.

"Quando deu o golpe no Chile, fui pedir asilo na Alemanha Oriental. Disseram que eu não era do Partido Comunista. Fui pedir na Alemanha Ocidental. Disseram que eu era comunista" |Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Quando deu o golpe no Chile, fui pedir asilo na Alemanha Oriental. Disseram que eu não era do Partido Comunista. Fui pedir na Alemanha Ocidental. Disseram que eu era comunista” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – E o golpe no Chile?
Bona Garcia –
Sentimos que a situação no Chile ia se agravando. Allende era uma pessoa extremamente idealista. Várias vezes uma massa incrível de chilenos pediu que ele fechasse o Congresso. Ele se negava e dizia que só sairia do governo morto. Foi corajoso. Sentiu o clima complicado, que tinha um agravante: os Estados Unidos jogaram dinheiro em cima do país, organizaram todo o golpe com participação da sociedade civil. Nós dizíamos: “aqui vai ter golpe”. Os chilenos diziam: “não, aqui não passa nada”.  A luta política era grande. Começaram a tachar o Allende de reformista, pois ele queria reformar o país através da própria Constituição. Nós – os brasileiros e a esquerda chilena – cometemos um erro muito grande: pressionamos para que o Allende aprofundasse cada vez mais a transformação do país, como, por exemplo, nacionalizando empresas. Pressionamos de uma forma perigosa. De um lado, Allende era pressionado pela direita e de outro, pela extrema esquerda. A direita viu que não tinha saída a não ser o golpe. Os caminhoneiros escondiam peças dos caminhões para não trafegar. A população começou a ficar sem carne, sem óleo, sem papel higiênico. Eu ficava na fila quatro ou cinco horas para conseguir alimento. O Exército fechou tudo. Foi um horror.

Sul21 – Como foi sair do Chile sob o general Augusto Pinochet?
Bona Garcia –
A Argentina não dava asilo. Eu estava com o carimbo de comunista na testa. Então, fui pedir asilo na Alemanha Oriental – naquela época o mundo estava dividido -, demoraram e me responderam que não dariam porque eu não era do Partido Comunista. Decidi pedir asilo na Alemanha Ocidental. Negaram, dizendo que eu era comunista.

“Em frente ao portão (da embaixada argentina), explodindo de tensão, todo eriçado, fora de mim qual animal acuado, de súbito desandei em corrida alucinada, impelido pela força injetada pelo desespero, movido pelo instinto. Do meio da rua, quase num pulo alcancei o portão. Os dois soldados de sentinela tiveram um momento de surpresa, de perplexidade, outro de dúvida se me agarravam ou baleavam. Naquilo já estava junto deles, e na corrida abri os braços derrubando os dois. Sempre correndo, entrei, só parando quando bati na parede da embaixada. Salvo. Vivo”. (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – Da Argentina para a Argélia.
Bona Garcia –
Em Buenos Aires, montaram uma cilada. O sargento Alberi (Vieira dos Santos, ex-sargento da Brigada Militar, atraiu para a morte no Brasil militantes da VPR) queria trazer todos de volta ao Brasil, para continuar a luta aqui. Desconfiei das facilidades que ele oferecia. Marcou um encontro comigo perto do Obelisco e vi que era uma cilada. Liguei para o Miguel Arraes, com quem já tinha estado na Argélia, em 1971. O Arraes me disse: “tu vais no consulado da Argélia, que está tudo preparado”. E nós fomos para a Argélia.

"Sou muito de organizar as coisas. Não sou de deixar a vida me levar" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Sou muito de organizar as coisas. Não sou de deixar a vida me levar” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – O filme Em teu nome passa a ideia de que não gostaste muito de viver em Argel.
Bona Garcia –
Eu gostei da Argélia. A Célia é que não gostou muito. Era uma sociedade que estava começando, um país que sofreu a intervenção dos franceses. Lá o homem tinha importância, a mulher, não. Aprendi a falar francês, trabalhei. Mas eu queria mais. Me organizei para sair da Argélia. Sou muito de organizar as coisas. Não sou de deixar a vida me levar. Usei um documento falso que o Arraes me conseguiu para entrar na França. Depois de um ano na Argélia, consegui trabalho na França, por intermédio da ONU, e asilo político.  Ficamos seis anos na França.

Sul21 – Em Paris, militaste pela anistia. Ela foi a anistia possível?
Bona Garcia –
Eu fui do primeiro comitê da anistia. Considero que foi a anistia possível. Na época, agradeci ao Congresso por ter votado a anistia. Foi importante, porque no exílio, o nosso país vai ficando muito longe. E tem a questão dos filhos. Eu falava português com eles e eles respondiam em francês. Vários companheiros tiveram problemas. Casaram por lá e não voltaram mais. Mas, não têm identidade nem identificação com país nenhum. Conheço pessoas que não são nem brasileiros, nem estrangeiros. A vida é assim, você tem que avançar. Isso aconteceu com a redemocratização. No início, foi a luta pelas Diretas, Já, depois foi chegando a anistia. Sim, foi a anistia possível.

“O Comitê Brasileiro pela Anistia chegou a abrigar 16 grupos brasileiros no exterior, e sua importância está justamente nisso: conseguir unir todas as tendências de esquerda para um trabalho em comum: a luta pela anistia”. (Verás que um filho teu não foge à luta)

Sul21 – Tens uma visão crítica em relação à luta armada.
Bona Garcia –
Não é crítica. Na época, o caminho que a gente pensava era aquele, até porque não tinha outro, dentro daquele ímpeto, da utopia. Foi um caminho muito árduo, difícil, tinha um tom de doação. Foi feito o que foi feito na época. E fácil falar hoje. Na época, para aquela cabeça que tínhamos, era o certo. Há quem diga que nós da luta armada atrapalhamos porque o regime endureceu. Talvez sim, talvez não. Talvez endurecendo, o fim da ditadura foi mais rápido. Nós fizemos a nossa parte. Nós acreditávamos que aquela forma era a correta. Fica para os historiadores ou sociólogos dizerem se erramos ou não.

"Quando o Britto me nomeou para o TJM, houve reações à minha posse. Entraram com um mandado de segurança, mas o relator do processo não concedeu liminar" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Quando o Britto me nomeou para o TJM, houve reações à minha posse. Entraram com um mandado de segurança, mas o relator do processo não concedeu liminar” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – No final do governo Britto, foste nomeado para o Tribunal de Justiça Militar, o que te valeu críticas da direita e da esquerda.
Bona Garcia –
É uma longa história. Fiz a coisa certa. A Brigada Militar tem que ter um órgão que julgue. Só três estados têm Tribunal de Justiça Militar (TJM). Ela é célere. É importante para o julgamento dos delitos pequenos, como lesão corporal, que, normalmente, pegam penas de dois a quatro anos. Se cair na Justiça comum, eles prescrevem. Bem, eu tinha saído do governo Britto, em que fui chefe da Casa Civil, e voltara para a Assembleia, quando surgiu a vaga no TJM. Um amigo disse: “por que não você?”. O Mendes Ribeiro disse: “tem que ser você”. Liguei para o Odacir Klein, que era presidente do PMDB. Ele aprovou meu nome. Liguei para o Pedro Simon, que disse: “vai. Não perde, não”. Até porque, no bom sentido, havia certa ironia, pois tive audiência na Justiça Militar, na Rua Duque de Caxias. Lá, fiquei algemado. Liguei para o presidente da Ordem dos Advogados e ele disse que, se o governador me indicasse, me daria respaldo. Quando o Britto me nomeou, houve reações à minha posse. Entraram com um mandado de segurança, mas o relator do processo não concedeu liminar. Mais tarde, virei presidente do Tribunal por unanimidade. Foi uma experiência fantástica.  O único caso no Brasil em que um ex-militante chegou a juiz do TJM. Ela é uma justiça especial, inclusive é mais gravosa que o Código Penal Comum. Lá, num crime pequeno, o réu é punido com cadeia, em vez de pagar multa. Eu tinha também bom relacionamento com o Tribunal de Justiça, ao qual o TJM é ligado.

Sul21 – Mas a esquerda também te criticou.
Bona Garcia –
Com um pouco de ironia, mas depois entendeu. Fiquei lá 13 anos. Fui um juiz que tinha muita consciência. Não fui um juiz duro, ao contrário. E mesmo no TJM continuei lutando contra a ditadura. Divulguei documentos secretos que recebi de uma jornalista.

" Conseguimos liberdade, democracia. Mas ainda falta muito, falta a transformação do Brasil em um país melhor" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Conseguimos liberdade, democracia. Mas ainda falta muito, falta a transformação do Brasil em um país melhor” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Para terminar, repito a pergunta do final do filme Em teu nome: valeu a pena?
Bona Garia –
Valeu, com certeza. Sinto orgulho de ter feito algo, de não ter sido omisso, alienado. A vida não passou em branco. Você tem que conduzir a sua vida da forma que você escolhe.  A sua vida vai ser produto dessa escolha.  Não deve deixar passar, porque a vida é algo muito importante. Deve participar na política ou de outra forma.

Sul21 – Ser chamado de terrorista te pesa?
Bona Garcia –
Acho que o Estado foi terrorista. Portanto, estamos em zero a zero. Conseguimos liberdade, democracia. Mas ainda falta muito, falta a transformação do Brasil em um país melhor.

Sul21 – E se encontrasses algum dos teus torturadores?
Bona Garcia –
Continuo afirmando o que disse no final de Em teu nome, eu não mudaria de calçada.

*Colaborou Lorena Paim


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