Cultura
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22 de novembro de 2022
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18:08

‘É fundamental que a gente resgate a história do Oliveira Silveira’, diz Rafuagi em Porto Alegre

Por
Luciano Velleda
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Rafa Rafuagi diz ser fundamental constituir um país sem os mitos da democracia racial. Foto: Luiza Castro/Sul21
Rafa Rafuagi diz ser fundamental constituir um país sem os mitos da democracia racial. Foto: Luiza Castro/Sul21

No sul o negro charqueou
                           lavrou
                          carreteou

no sul o negro  remou
                            teceu
                            diabo a quatro

o negro no sul  congou
                            bumbou
                            batucou

a negra no sul  cozinhou
                            lavou
                            diabo a quatro

no sul o negro  brigou
                            guerreou
                            se libertou

quer dizer: ainda se liberta
de mil disfarçadas senzalas
                          prisões
                          diabo a quatro
onde tentam mantê-lo agrilhoado.*

Papo reto, o rapper Rafa Rafuagi não dá voltas no pensamento para afirmar que o Brasil ainda desconhece a figura importante do poeta Oliveira Silveira. Nascido na zona rural de Rosário do Sul, em 1941, o autor gaúcho fundou o coletivo Palmares e colocou o Rio Grande do Sul na vanguarda da definição do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra.

Ao lado de outros universitários negros, como Vilmar Nunes, Ilmo da Silva e Antônio Carlos Côrtes, dentre outros, o grupo propôs a instituição da data no distante ano de 1971, em Porto Alegre. A ideia de estabelecer um dia para a consciência negra na mesma data em que o líder Zumbi dos Palmares foi capturado e morto, em 1695, ultrapassou a fronteira do rio Mampituba e foi ganhando força nacional. Mas apenas 40 anos depois, em novembro de 2011, a data foi oficializada por força de lei, pela então presidenta Dilma Rousseff.

Embora a data seja internacionalmente reconhecida como marco na luta dos negros brasileiros, Rafuagi avalia que Oliveira Silveira não tem o reconhecimento devido nacionalmente. Até morrer, em 2009, o poeta lançou 10 livros individuais de poesia, além de participar de antologias e coletâneas no Brasil e no exterior.

“Quando a gente apaga a identificação desses líderes, pioneiros nessa construção, automaticamente a gente está enterrando um pouco da história do povo negro e fazendo com que o progresso e o avanço que a gente busca em relação ao desenvolvimento, à justiça e à igualdade na sociedade, caminhe a passos muito lentos”, comenta o rapper, escalado para falar sobre Oliveira Silveira no primeiro dia do FestiPoa Literária, no último domingo, justamente 20 de novembro.

“É fundamental que a gente resgate a história do Oliveira e consiga por meio de mecanismos atuais, como a música, o teatro e outras artes, comunicar com a juventude.  São os jovens de hoje que realmente estão fazendo a diferença no país e essa juventude precisa saber de onde viemos, quais são as lutas que nos antecederam e como elas preparam a base e o fundamento para que a gente alcance, dentro das nossas lutas, eu no hip hop e outros em tantas áreas, os nossos objetivos que são comuns aos objetivos do Oliveira Silveira, do grupo Palmares e do movimento negro como um todo”, afirma.

Autor de mais de 10 livros de poesia, Oliveira Silveira foi um dos criadores do Dia da Consciência Negra. Foto: Tânia Meinerz/Divulgação/UFRGS

O primeiro dia do tradicional evento literário da Capital foi marcado por uma programação que destacou as vozes de pessoas negras, principalmente mulheres. Autor do livro Teoria Prática: A História das Juventudes na Engenharia Social, lançado em dezembro de 2021, Rafuagi julga ser importante o debate com escritores e escritoras negras.

Ainda que muitas obras escritas por pessoas negras não tenham chegado ao FestiPoa, ele destaca a preocupação que o evento demonstra em fazer com que os livros de autores negros estejam nas bancas e livrarias de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul.

“É fundamental que a gente constitua um país sem os mitos da democracia racial e pautado sobre a ótica antirracista, sobre uma educação que realmente transforme uma educação decolonial”, avalia Rafuagi, enfatizando o conceito que questiona a colonialidade do saber e do poder.

O rapper espera que o novo mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva dê condições para que, nos próximos quatro anos, haja avanços que recuperem o retrocesso ocorrido no governo de Jair Bolsonaro. Um retrocesso que, embora forjado em quatro anos de mandato, na prática, ele avalia que represente “uns 30 anos”.

“Acho que cada grande evento que tenha condição de trazer a paridade entre raça e gênero na sua construção é fundamental para que a gente tenha pluralidade das ideias, as ecologias dos saberes ativas e, a partir daí, se definam novas perspectivas de enfrentar as violências e projetar a implantação de políticas públicas para a população negra”, argumenta.

Refuagi faz questão de dizer que o ambiente literário não é novo para o hip hop. Há cerca de 20 anos são lançados livros escritos por pessoas do movimento, seja sobre o próprio hip hop ou sobre as periferias e ideias para pensar um novo Brasil. O que pode ser novo, avalia o rapper, é o caminho inverso, o mundo literário se abrir para o hip hop.

“É novo para o circuito literário brasileiro, composto majoritariamente por pessoas brancas. A gente ainda é novidade nesse meio, mas a cultura preta e, principalmente, o hip hop não é uma “cara” nova dentro do circuito literário”, explica.

O rapper também avalia como positivo as pessoas do mundo da música, cada vez mais, deixarem um legado em formato de livro. Perpetuar na escrita questões orais ou do pensamento criativo por meio da música. “A gente poder materializar em coisas físicas, como o livro, é fundamental para que a gente também deixe legado dentro da nossa missão terrena.”

* Poema Negro no Sul, de Oliveira Silveira


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