Notícias
|
19 de maio de 2021
|
17:44

Memórias do Quilombo Lemos: ‘É preciso contrapor a história de que Porto Alegre é uma cidade branca’

Por
Sul 21
[email protected]
Quilombo Lemos, em Porto Alegre. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Andressa Marques*

A pesquisadora Elisa Casagrande e a comunidade do Quilombo Lemos lançaram, na última quarta-feira (12), o livro Aquilombe-se: memória, inclusão e territorialidade em Porto Alegre, que resgata a história da família e a importância dos quilombos na formação da cidade de Porto Alegre.

A obra é fruto da pesquisa de mestrado em diversidade cultural e inclusão social da autora e a ideia do tema surgiu a partir de uma parceria entre a Universidade FEEVALE e a Justiça Federal, que foi viabilizada através do edital 09/2020 da Secretaria de Estado da Cultura do RS.

O livro tem como propósito uma retomada de outros processos similares, como o do Quilombo Família Silva, primeiro quilombo urbano do Brasil a ser titulado, e buscou verificar de que forma estes caminhos já percorridos poderiam contribuir na busca de reconhecimento do Quilombo Lemos. Além disso, a bibliografia complementar mostra o histórico de territorializações e desterritorializações na Capital e os fluxos do avanço urbano, que levam aos processos de resistência das comunidades.

“Inicialmente eu entrei em contato com o processo do Quilombo Silva, que é o primeiro quilombo urbano do Brasil, e a partir disso eu fiz contato com a Frente Quilombola RS, grupo SEMEAR – Assessoria a povos indígenas e comunidades quilombolas (SAJU UFRGS) e comecei a frequentar essas reuniões como apoiadora. Então, me deparei com a demanda do Quilombo Lemos, que estava em fase de processo de emissão do certificado. Assim, fiz uma amizade com o pessoal e entendi que talvez o momento deles fosse mais propício para uma pesquisa desse tipo”, afirma a pesquisadora.

“Além de falar como nasceu o Quilombo Lemos, o livro também fala sobre a história dos povos negros em Porto Alegre, mas sobretudo vem para contar da nossas lutas internas e dos nossos ancestrais”, afirma Sandro Lemos, um dos líderes do quilombo.

Aquilombe-se: memória, inclusão e territorialidade em Porto Alegre. Foto: Divulgação

Elisa conta que, no começo, não pensava em transformar a ideia em livro. Inicialmente, a proposta para o mestrado era reunir as histórias dos moradores do Quilombo Lemos e fazer com que esse trabalho pudesse ser utilizado como uma retomada das memórias vividas pela família. “A importância de ter essa história documentada, em primeiro lugar, é para contrapor uma história dita oficial da nossa cidade, de que Porto Alegre é uma cidade branca, que o Rio Grande Do Sul é um estado de europeus, que é uma narrativa que apaga muitas pessoas. Em segundo lugar, isso é importante para a família usar como ferramenta, para se enxergarem e para devolver a eles um produto que é resultado do acolhimento deles comigo”, diz a pesquisadora.

Sétimo quilombo urbano autorreconhecido de Porto Alegre, o Quilombo Lemos enfrenta sucessivos processos de reintegração de posse desde o falecimento do fundador, Jorge Alberto Rocha de Lemos, em 2008.

A história de construção do Quilombo exemplifica como o histórico de territorializações de comunidades quilombolas em Porto Alegre passa por processos semelhantes, como o da própria Délzia Gonçalves de Lemos, neta de escravos, que começa em Canguçu, fronteira com o município de Encruzilhada do Sul, no Quilombo Maçambique. Ainda pequena, Délzia muda-se com a família para a capital gaúcha. Em 1953, se casa com Jorge Lemos, com quem tem seis filhos. O mais novo deles, Sandro Gonçalves Lemos, já nasceu onde hoje se encontra o Quilombo Lemos, na Avenida Padre Cacique.

“Essa pesquisa aproximou toda a família e fez com que a gente revivesse lembranças dos meus pais para poder ajudar no livro”, conta Sandro.

“Com a chegada da Délzia, aqui passa a ser uma parte de Maçambique e isso acontece com outras várias comunidades na forma de viver e se estruturar. Então, a gente vê uma forma de o poder público atuar sobre essas populações, sobre essas comunidades e como as comunidades que se mantêm são de resistência. A gente consegue identificar as comunidades que resistiram a esse processo, mas essas histórias de remoções são muito semelhantes a outros processos já feitos, como o da Ilhota, que virou o bairro Restinga”, afirma Elisa.

A Ilhota ficava próxima a onde hoje existe a Praça Garibaldi. A canalização do Arroio Dilúvio foi o ponto central para que ela deixasse de existir, uma vez que as obras levaram a uma valorização econômica dos terrenos, fazendo com que até o final da década de 1960 grande parte dos antigos moradores tivessem sido removidos para a Restinga, a cerca de 26 km do centro de Porto Alegre, como explica a pesquisadora e professora de Geografia Daniele Vieira, que usou seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para elaborar uma cartografia dos locais que foram ocupados pela população negra na cidade, que recebeu o nome de “Territórios negros em Porto Alegre (1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano”.

Pesquisadora com moradores do Quilombo Lemos. Foto: Arquivo Pessoal

Ainda lutando pela titulação, o Quilombo Lemos enfrentou em 2018 e 2020 processos de reintegração de posse movidos pela direção do Asilo Padre Cacique. Jorge e Délzia eram trabalhadores do asilo e teriam ganhado o direito de permanecer no local, mas sem ter documentação de posse. Elisa explica as semelhanças entre as constantes tentativas de remoção do Quilombo Lemos com outros processos históricos de desterritorialização das comunidades quilombolas na Capital. “Tem a forma de esbulho, que é quando empresas e pessoas vão avançando sobre o território e assim algumas comunidades já perderam dois terços da sua extensão. Tem a forma do poder público, que desde a formação da cidade mudou regras de impostos, por exemplo, para remover essas populações da área central da cidade, da área que queriam ‘higienizar’, apoiado e viabilizado pelo poder público. E por último, a forma judicial, que são as remoções. Então são três formas principais disso acontecer, mas todas as comunidades têm esses processos como semelhança”, conta.

Para Sandro Lemos, é importante o resgate da identidade e da cultura da comunidade. Ele ressalta a importância de manter as tradições ancestrais, e divulgá-las para a população.

*Andressa Marques é repórter do Programa de Diversidade nas Redações realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora