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24 de maio de 2021
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15:09

Criptomoedas e o Poder Estatal (por André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo)

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Imagem de MichaelWuensch por Pixabay
Imagem de Michael Wuensch por Pixabay

André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo (*)

Nos últimos anos, as inovações tecnológicas associadas à revolução digital e ao uso da inteligência artificial nos mercados financeiros permitiriam a criação de novos instrumentos, particularmente os criptoativos, dos quais as criptomoedas privadas ou moedas digitais ganharam maior proeminência. A empolgação com o Bitcoin e seus congêneres foi proporcional à curva exponencial na elevação do seu preço: em 2010, o Bitcoin estava cotado a USD 0,08; em 2011, experimentou uma valorização de 3.100% entre abril (USD 1,00) e junho (USD 32,00); nos quatro primeiros meses 2013, valorizou-se em 1.500% e ultrapassou os USD 213,00, para depois cair ao patamar de USD 70,00. O movimento de alta exponencial e de oscilações abruptas deram o caráter claramente de ativos especulativo ao Bitcoin ao longo dos anos.

Em abril de 2021, o Bitcoin ultrapassou os USD 60 mil, recuando para pouco mais de USD 33 mil em maio, uma variação de -45%. Entre março de 2020 e o mesmo mês de 2021, este mercado evoluiu de uma capitalização de USD 250 bilhões, com 5.100 instrumentos, para USD 1.750 bilhões e pouco mais de 8.700 criptoativos. Em abril do corrente ano, a capitalização superou os USD 2,0 trilhões. Já em maio, a queda acima de 40% na cotação dos criptativos mais líquidos (Bitcoin, Ethereum, Tether, Dogecoin, etc.) fez com que aquele montante caisse na mesma proporção. A estabilidade de preços não parece ser uma regra neste mercado.

O advento das criptomoedas privadas deu nova vida ao velho sonho libertário de retirar do Estado o poder de monopólio da emissão monetária. Os entusiastas desta perspectiva não raro nutrem esperanças sobre o retorno a um sistema do tipo Padrão Ouro Internacional, como o que vigorou do final do século XIX até o início da Primeira Guerra Mundial e que limitava o poder de emissão monetária do Estado. Subjacente a estas narrativas estão visões de mundo que percebem o Estado como uma entidade que usurpa dos indivíduos a sua liberdade e cujo poder, se não puder ser eliminado, deve ser restringido tanto quanto possível, o que naturalmente inclui seu monopólio monetário.

Enquanto os avanços tecnológicos têm impulsionado os criptomercados, o frenesi financeiro em torno de moedas privadas não é novo. Ao longo da história, algumas moedas privadas perduraram mais do que outras, mas nenhuma sobreviveu, não menos pela inexistência de certos atributos nos agentes privados que são justamente aqueles que definem os Estados – como base territorial e capacidade de impor padrões e regras. A despeito dessa experiência histórica, os novos líderes empresariais do século XXI, especialmente nos setores de alta tecnologia, avançaram para a diversificação nos mercados financeiros e ensaiaram criar suas próprias moedas.

Zuckerberg vs Dólar

Em maio de 2019, o Wall Street Journal informava que o Facebook estava recrutando dezenas de executivos e especialistas em tecnologia e finanças para desenvolver o seu mais novo projeto: criar um sistema global de pagamentos com base na tecnologia blockchain e centralizado em torno da sua própria moeda, então denominada de Libra. Esperava-se utilizar a ampla base de usuários (2,4 bilhões naquele momento, e 2,8 bilhões em abril de 2021) do seu principal produto, a rede social homônima, para obter vantagens de escala e concorrer com as criptomoedas já existentes, particularmente o Bitcoin, com os sistemas digitais de pagamentos chineses como o WeChat (Tencent) e, mais importante, com as moedas estatais. O anúncio oficial ocorreu em 18 de junho e envolvia cerca de 100 parceiros, entre empresas financeiras (Visa, Mastercard e PaylPal) e não financeiras (Uber, Ebay, Spotify), que hipotecaram seu apoio ao projeto. A base de emissão do seu token seria na Suíça, por meio de uma associação com instituições locais.

Com isso, o Facebook procurou diferenciar a sua moeda digital dos demais instrumentos considerados ativos especulativos ou brechas para a realização de transações ilegais. Ademais, procurou desvincular-se dos poderes soberanos emissores das moedas mais utilizadas internacionalmente ao sediar sua operação na Suíça. Seus idealizadores imaginavam que a nova moeda digital estaria plenamente operacional em 2020, com ampla aprovação das autoridades regulatórias nacionais. A Libra seria uma moeda digital estável, com contraparte centralizada e identificada, bem como manutenção de valor atrelado a uma cesta de moedas estatais de amplo uso internacional e com tradição de serem seguras, como o dólar, o euro, a libra e o iene.

Em abril de 2021, não somente a Libra não estava operacional, como o projeto original foi reformulado: perdeu escala, parceiros, prestígio e o próprio nome. Ao invés Libra (“Equilíbrio” em latim), a moeda digital do Facebook foi rebatizada como Diem (“Dia”). A pressão contrária de políticos e reguladores dos mercados financeiros, especialmente nas grandes economias e nos fóruns multilaterais, como o Financial Stability Forum (FSF), fez com que o projeto fosse redimensionado. Agora, ao invés de uma plataforma global, sujeita às pressões de vários governos soberanos, a Diem Networks U.S., controlada pela Diem Association, passará a gerir um sistema nacional de pagamentos regulado pelas autoridades estadunidenses, particularmente o Tesouro. O Facebook submeteu-se ao poder do dólar e à regulação financeira estatal. A revolução vislumbrada por Zuckerberg converteu-se, pelo menos no momento, na mera oferta de um serviço financeiro usual em tempos de finanças digitais.

O poder crescente dos titãs das novas tecnologias pode ter induzido Zuckerberg a imaginar que poderia criar o seu próprio dólar.  Já Elon Musk, outro entusiasta da visão libertária associada às criptomoedas, tornou-se em um investidor ativo em Bitcoins, com ações e palavras que têm contribuído para ampliar as oscilações no seu preço. Ele ainda não revelou o desejo de ser um poder monetário soberano. Suas ambições antiestatais seguem canalizadas para a colonização de Marte.

Decifra-me ou te devoro: o enigma das criptomoedas

Ao refletir sobre os efeitos redistribuivos da instabilidade monetária vivida durante e após a Primeira Guerra Mundial, Keynes sugere que a moeda “… is only important for what it will procure” (Tract on Monetary Reform, 1923, p. 1). No Treatise on Money (1930) ele esclarece que a moeda existe exatamente para garantir que os agentes econômicos consigam transferir bens, serviços e ativos nos marcos em que tais transações se consubstanciam em instrumentos legalmente estruturados.

A moeda é, portanto, mais do que um meio que facilita as trocas, pois representa a “gramática” dos mercados, a base de referência dos contratos. É unidade de conta, métrica que define a expressão, sempre em termos monetários, da riqueza. Na perspectiva keynesiana a moeda funciona como uma ponte intertemporal para que os agentes mantenham seu patrimônio. E isso ocorre exatamente porque a moeda é uma instituição social legalmente estruturada pelo poder estatal. Pode ser refúgio para a riqueza, particularmente quando a economia entra em espiral deflacionária; ou a fonte para a redistribuição daquela entre credores e devedores, quando seu valor em relação às demais formas de representação da riqueza torna-se excessivamente instável.

No mundo moderno, existe uma distinção básica entre a moeda token (“token-based money”) e a moeda registrada em uma instituição financeira (“account-based money”). Atualmente, as formas mais comuns da moeda token são as notas e moedas emitidas pelos bancos centrais ao redor do mundo. As notas físicas são apenas um pedaço de papel pintado que têm valor porque existe uma rede de agentes que acredita que elas têm valor. A moeda registrada em uma instituição financeira é, por definição, uma moeda baseada na existência de um intermediário, tipicamente um banco que aceita depósitos. Indivíduos que possuem uma conta em um banco podem receber e enviar dinheiro para outros indivíduos que também tenham uma conta no banco através de uma ordem para o banco realizar a transação. Quando o banco debitar a conta do pagador e creditar a conta do recebedor, a transação estará completa.

A grande inovação trazida pelas criptomoedas é o advento do token digital. A moeda registrada em uma instituição financeira existe na forma digital há algum tempo – qualquer pessoa com uma conta no banco possui moeda na forma digital. O registro digital dos balanços dos bancos significa que hoje em dia os pagamentos são feitos de forma muito mais rápida e para muitos mais pares ao redor do mundo do que era possível no passado. No entanto, a arquitetura básica do funcionamento dos mecanismos de pagamento não mudou, no sentido que as transações se efetuam praticamente da mesma forma do que quando eram feitas de forma física – debitando a conta do pagador e creditando a conta do recebedor.

O token digital é revolucionário porque ele de fato representa uma mudança na arquitetura dos meios de pagamentos. Notas e moedas exigem o encontro físico das contrapartes para efetuar uma transação; mas moedas digitais como o Bitcoin, não. O Bitcoin e outras criptomoedas são moedas digitais que independem de um banco como intermediário. O registro de crédito e débito que normalmente seria feito pelo banco é feito a partir de um sistema descentralizado, desenvolvido usando a tecnologia de blockchain, no qual os próprios usuários validam as transações uns dos outros.

Os casos do Bitcoin e da natimorta Libra trazem para a superfície as entranhas das disputas de poder que cercam os mitos e as narrativas envolvendo Estados e moedas. Perceber que o Estado ainda representa a unidade básica do sistema internacional é essencial para entender porque moedas emitidas por agentes privados são por natureza subordinadas às moedas estatais. Empresas como o Facebook não possuem base territorial, força militar ou capacidade para exigir o pagamento de tributos em sua moeda.

Por outro lado, as criptomoedas privadas conseguem exercer, ainda que em um escopo limitado, certas funções monetárias, como ser meio de pagamento (ou de troca) e reserva de valor, assim como outros ativos e instrumentos já o fazem. Mesmo que isto possa se expandir no futuro, parece prematuro imaginar o funcionamento de economias capitalistas complexas e sofisticadas sem parâmetros estáveis de precificação e denominação de contratos, uma vez que a existência de âncoras estáveis é essencial para garantir alguma ordem cotidiana nos processos decisórios de acumulação da riqueza privada.

A revolução digital e a inteligência artificial vieram para ficar. Elas vão revolucionar a vida cotidiana e as relações econômicas e financeiras. Todavia, as criptomoedas privadas não possuem as bases institucionais e de poder para garantir a imposição dos seus instrumentos como moedas de fato. É mais provável que os Estados avancem sobre o terreno privado por meio das moedas digitais estatais, do que o contrário. A China já deu a partida nesta revolução. Os demais poderes estatais já estão se organizando para seguir no mesmo caminho. Os libertários só poderão se considerar vencedores se, em algum ponto do futuro, o dólar for cotado em Bitcoins e não o contrário, como acontece hoje. Se Polanyi segue sendo uma referência importante, a utopia de liberdade total dos mercados financeiros deverá redundar somente em novas crises financeiras. Estudantes dedicados desta literatura não ficarão surpresos se o gatilho para uma futura crise vier da correção abrupta no valor dos criptoativos.

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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