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10 de julho de 2011
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09:27

Aldyr Garcia Schlee: entre os livros, o futebol e a fronteira

Por
Sul 21
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Em entrevista ao Sul21, Aldyr Garcia Schlee fala sobre seu mais recente livro, Don Frutos, sua paixão pelo futebol e suas impressões sobre outra grande paixão, o Uruguai | Foto: Iuri Müller/Sul21

Iuri Muller e Maurício Brum
Especial para o Sul21

Aldyr Garcia Schlee sabe, como poucos, descrever o cenário do pampa sem recorrer aos clichês da literatura campeira. A visão diferenciada da fronteira começa na própria experiência pessoal do jornalista e escritor nascido em 1934 no sul gaúcho. Jaguarão, sua cidade natal, localiza-se na divisa com o município uruguaio de Río Branco. Dali, Schlee tirou as referências para construir o contexto de culturas irmanadas e a eterna tentativa de fundir os idiomas de um lado e outro do rio, tão presentes em sua obra.

O jornalista Schlee trabalhou no diário porto-alegrense Última Hora, extinto com o golpe militar, e ganhou o Prêmio Esso em 1963. Fora do País, o jaguarense é mais conhecido pelo seu trabalho como artista gráfico: além de planejar visualmente seus livros, ele é o desenhista do uniforme “canarinho” da Seleção Brasileira. Em 1954, aos 19 anos, Schlee venceu um concurso nacional que buscava um novo fardamento para a Copa do Mundo da Suíça, após a frustração sofrida no Maracanã em 1950.

Curiosamente, a ligação com a Seleção se restringe àquele desenho de 57 anos atrás. A proximidade com o Uruguai se refletiu em outros aspectos da biografia de Schlee, que não hesita em se declarar torcedor da Celeste Olímpica. Em tempos mais sombrios, essa identificação com a realidade do país vizinho permitiu que Schlee mantivesse contato com integrantes do Movimento Tupamaro, que lutava contra a repressão no Uruguai – o escritor chegou a abrigar guerrilheiros em sua casa de Porto Alegre.

Hoje, Schlee passa a maior parte do tempo em um sítio na bucólica Capão do Leão, perto de Pelotas, onde avança com seus projetos literários. Autor de muitos livros de contos (entre eles O Dia em que o Papa foi a Melo, de 1991, que inspirou o filme O Banheiro do Papa), o escritor lançou no fim do ano passado o romance Don Frutos, sobre a vida de Fructuoso Rivera, primeiro presidente do Uruguai. Na mesma época, foi surpreendido com a conquista do Prêmio Fato Literário, que acreditava estar nas mãos de Lya Luft.

Aldyr recebeu nosso telefonema no final de uma tarde de fevereiro, poucos dias depois de retornar das férias em Punta del Este, solicitando uma entrevista. Prestativo, o escritor sugeriu um encontro em Pelotas já na manhã seguinte. Na conversa reproduzida abaixo, o escritor fala de suas paixões – literatura, política, futebol e, claro, o Uruguai.

Sul21 – Comecemos falando sobre a ilustração que abre Don Frutos, o último livro lançado.

Aldyr Garcia Schlee – No meio de toda a papelada, dos documentos que eu tive que consultar, que um amigo (Amílcar Brum) conseguiu, havia um inventário da Dona Bernardina Rivera, a esposa do Rivera (Fructuoso Rivera, primeiro e terceiro presidente da República Oriental do Uruguai e protagonista do romance). Quando ela morreu, fizeram um inventário e nos bens constava um retrato do Rivera sem assinatura do autor. Mas cruzando por casualidade a informação com a de um escritor que publicou um livro só com a iconografia do Rivera, achei uma nota dizendo: “há também um retrato do Rivera de autor desconhecido que nunca ninguém viu e que estaria no inventário da Dona Bernardina”. Foi um achado, nada mais literário que isso. Agora eu pinto o retrato do Rivera, atribuo ao desenhista, pintor e gravurista que teria convivido com ele (Herrmann Rudolf Wendroth) e está tudo resolvido. Fiz o desenho, envelheci o Rivera a partir de outros retratos, pintei a forma com que ele teria sido pintado, com cores, um retrato grande, que me deu muito trabalho (demorei quinze dias para pintar) e fiquei cada vez mais entusiasmado com a história, que coloquei no livro. Esses dias estive no Uruguai e acertei a publicação de Don Frutos. Agora eles viram o livro pronto e querem, com pressa.

O outro livro, o do Gardel, dos “Contos Gardelianos” (Os limites do impossível), eu combinei com os uruguaios que eles fazem como quiserem, mas a forma gráfica faz parte do livro e eles precisam respeitar como aqui. E a última revisão precisa ser minha, com cuidado. Isso porque lá no Uruguai eles são escravos do dicionário da Real Academia Espanhola, e como o livro tem muitas expressões em portunhol, com americanismos, mesmo em português, a forma gráfica, a formação da frase, a sintaxe, eu quero manter em espanhol como eu fiz. O primeiro livro que eu fiz em espanhol, O Dia em que o Papa foi a Melo, o cara para qual eu mandei disse “ah, muy bien, tu español es un poco excéntrico, pero tenemos que abrandarlo um poco,  hay muchas palabrotas, impropiedades, situaciones de relaciones sexuales. Hay que abrandarlo”. O cara queria mexer nesse aspecto. Que nem padre jesuíta! Tive que tirar do cara para que saísse como eu queria.

"Toda a bibliografia do Rivera era ou totalmente a favor, dos colorados, ou contra, pelos blancos. Não havia nada que encarasse o homem como ser humano" | Foto: Maurício Brum/Sul21

Sul21 – E quanto tempo durou a compilação das informações e a escrita do Don Frutos?

Aldyr Garcia Schlee – Esse livro tem uma história que pode ser dividida em períodos bem distintos. Um período de gestação longa em que o livro não estava previsto, mas foi o início da minha preocupação com esses fatos e posteriormente com o Rivera. Eu era professor de Relações Internacionais e de Ciências Politicas e tinha a minha garganta engasgada com o imperialismo lusitano, primeiro, e mais tarde com o domínio imperial-brasileiro no Prata, desde a Colônia de Sacramento e depois na Província Cisplatina, mantida como uma parte do Reino Unido do Brasil e Algarve e mais tarde do Império Brasileiro até a independência do Uruguai. E isso nunca foi contado, era tido como uma coisa normal. A guerra contra Oribe era pra manter essa conquista feita a pata de cavalo. Quando eu era professor nessa ocasião, há 45 anos, nas férias que passei inteiras no Uruguai, aluguei um apartamento e fiquei lá, pesquisando documentos no arquivo e na biblioteca nacional sobre isso especificamente, até para usar o material em aula.

Mas eu nunca tive vocação pra pesquisador e vi que era um material com grande qualidade para ser usado literariamente. A primeira ideia era fazer sobre a Guerra Grande, a guerra entre Rivera e Oribe, Oribe e Rosas, que durou uma barbaridade, até a Guerra do Paraguai, com o Uruguai entrando imposto pelo Brasil na Guerra. Desse material eu usei uma coisinha nos Contos de Sempre, só citando os fatos, mas sem dizer que havia uma documentação. Então isso vem de muito tempo atrás, mas não tinha sido usado.

A segunda parte, há uns dez anos atrás, começa quando eu contei sobre o material para um castelhano, o Amílcar Brum. No meio dessas conversas – ele vinha uma vez por semana a Pelotas para tratar os dentes, veja só, que sorte – e ele passou a me mandar o suplemento cultural do El País e numa dessas visitas eu decidi que o material precisava ter foco no Rivera – ele me falou muito sobre a personalidade do Rivera, e me encantou, o Rivera era herói e Deus, ou bandido e Diabo – herói dos colorados e bandido dos blancos. Toda a bibliografia do Rivera era ou totalmente a favor, dos colorados, ou contra, pelos blancos. Não havia nada que encarasse o homem como ser humano e acima de tudo com a cabeça, com a psicologia, com o que o sustentava as suas ações, nada disso tinha sido tratado, seria algo novo.

Sul21 – A capa do livro “Don Frutos” não foi idealizada por ti. No fim das contas, agradou?

Aldyr Garcia Schlee – No início de fato não gostei, mas depois aceitei que os caras sabem, eles trabalham com isso. Eu havia pensado na medalha real com a figura ampliada do Rivera no meio, com o fundo que eles quisessem. Mas eles preferiram outro recurso, com a flor metálica e a sombra de garras, sobre um chão sujo, de madeira, e acho que se enquadrou bem em relação ao desenvolvimento da história. A capa me convenceu, vai entre o uso e o abandono da espora e a questão da flor seca com as garras e sombra. O livro aparece bastante nas estantes, é muito grande e muito grosso. Logo vai sair a segunda edição dos Contos Gardelianos, Os Limites do Impossível e possivelmente uma reimpressão de Don Frutos, que não significa muito para o mercado, porque uma nova edição implica a um investimento quase que semelhante ao da primeira, que teve a tiragem de três mil exemplares.

Sul21 – E o livro do centenário do Brasil de Pelotas? Você tinha sido convidado para participar da escrita, não?

Aldyr Garcia Schlee – Não farei. Acho que não tenho o direito, há pessoas que foram testemunhas de pelo menos 40 anos do clube nestes 100. Eu não acompanhei o dia a dia do Brasil neste tempo todo como eles. Também nunca fui da diretoria, e não sou sócio do Brasil, embora tenha uma cadeira cativa – é que não sou sócio de nada, uma bobagem minha, senão é possível que comece a dar palpites. Tem gente que, desde que nasceu, esteve lá dentro, com os pais na diretoria e depois os próprios – gente que sabe escrever, mesmo que não seja um trabalho de literatura, e sim documental. Posso fazer um texto para a edição, mas o livro mesmo, não. Eles entenderam, não houve nenhum problema, está todo mundo de acordo.

Sul21 – Além do Brasil, você  nutre simpatia pelo Cruzeiro de Porto Alegre. De onde ela vem?

Aldyr Garcia Schlee – É por causa do Cruzeiro de Jaguarão. O meu tio foi goleiro do Cruzeiro desde o final dos anos 30. Eu tinha seis, sete anos de idade. Em 45 ele foi goleiro do Santa Cruz. Minha avó era alemã de Santa Cruz do Sul e minha mãe não falava alemão. Ela precisava de uma força e esse jovem goleiro, meu tio, saiu do quartel e foi lá para Santa Cruz acompanhar a minha mãe. O Santa Cruz fez um jogo em Novo Hamburgo, e ele fechou o gol. O Telêmaco Frazão de Lima, do Grêmio, foi lá contratar o meu tio. Aí a minha vó teve um troço: chorou durante uma semana, o negócio foi desfeito e o meu tio fechou a carreira no Santa Cruz mesmo. Mas era um bom goleiro e era do Cruzeiro. Esse Cruzeiro de Jaguarão tinha sido fundado no início do século XX com o meu padrinho jogando de meia-esquerda. No Brasil, eu era Cruzeiro (de Porto Alegre). Até os meus 14 anos de idade, eu era Nacional (de Montevidéu), San Lorenzo (de Buenos Aires), porque era só o futebol que eu conhecia, e o Cruzeiro. Aí, quando abre um pouco o espaço e vem Porto Alegre, encontro nos jornais de lá o Cruzeiro sendo sempre segundo. O Inter com o Rolinho, Cruzeiro segundo, o Grêmio em terceiro. O Grêmio ganhava um campeonato, o Cruzeiro ficava em segundo e o Inter, em terceiro. Era a terceira força: tinha os dois clássicos, Inter-Cruz e Gre-Cruz. Eu passei a ser torcedor do Cruzeiro de Porto Alegre. O meu time de botão é o Cruzeiro, até hoje. Não é o Brasil. O Brasil eu cedi para o meu filho, que é Xavante. Eu ainda jogo botão. Parei de jogar dois anos atrás por questão de saúde. Quando me recuperei um pouco da coluna, voltei a jogar. Mas nunca ganhei um campeonato, sabia? Ganhei um torneio início lá quando tinha… eu jogo desde os dez anos, portanto eu tenho 66 anos de futebol de mesa. Disputei campeonato brasileiro, estadual, tudo isso. Eu fui dirigente da Associação Brasileira de Futebol de Mesa, fui diretor técnico, mas campeonato nunca ganhei. Agora, casualmente, na minha volta do Uruguai, o primeiro torneio de verão que houve, com a participação de ex-campeões pelotenses, eu fui vice-campeão. Na semifinal derrotei o meu filho nos pênaltis. Empatamos por zero a zero e, nos pênaltis, ganhei no último chute. Fui pra final e ele foi disputar o terceiro lugar. Ele perdeu, ficou em quarto, e eu perdi e fiquei vice.

Sul21 – Vice como costuma ser o Cruzeiro…

Aldyr Garcia Schlee – Sempre. Meu time do Cruzeiro é Henrique; Arceu, Miguel, Claudio e Ortunho; Bido e Pio… esses vocês nunca ouviram falar, mas o Ortunho sim. Segue o time: Arlem, Pitico, Didi Pedalada e Cacildo. Esse é o meu time titular. E o reserva é: Picasso; Luiz Carlos, João Pedro, depois na ala-direita Renato Silva, na ala-esquerda Vadi; no meio do campo, Clairton, depois Laoni, aí o ataque é Carlinhos Ventania, Herbert e Vieira, o Vi que foi do Grêmio. Eu tenho mais dois times. O terceiro e o quarto times, que eu não vou repetir porque é doloroso. Quarenta e quatro botões. É uma coisa respeitável. Todos com as carinhas desenhadas por mim, ainda no tempo anterior ao xerox. Claro que o xerox facilitou muito, com a reprodução colorida. Hoje as caras estão embutidas, tem gente que faz isso profissionalmente.

Sul21 – Você  falou que torce para o San Lorenzo na Argentina. Viu que o clube quer voltar para o lugar do estádio antigo, em Boedo?

Aldyr Garcia Schlee – É, o Gasómetro hoje não é o mesmo. Questão de tradição. E ali perto, naquela área de Avellaneda, a área é de Independiente e Racing, e ali não é brincadeira, aquilo é um outro mundo. É impressionante a paixão que eles têm pelo Racing. No início do ano, quando estive em Punta, ou eu estava escrevendo ou vendo futebol. Eles estavam no Clausura. Na praia, só fui dois dias. Fiquei com a cara queimada, mas fui pouco. E na televisão, com a tevê estatal, tem uma apresentação antes de começar a rodada, com uma mensagem de saudade ao presidente Néstor Kirchner. O nome do torneio agora é Torneio Kirchner, em homenagem. Mas o mais curioso nesta homenagem, que deve durar uns dois ou três minutos, o que é muito em televisão, é que aparece ele como torcedor do Racing. Ele no meio da torcida, em imagens recuperadas, posando com os jogadores, até que de repente, ele está num estádio, e fazem uma montagem. A torcida aplaude, em seguida todos começam a chorar, representando a morte dele. E então todas as torcidas, a gente vê pelas cores, aparecem lamentando, enquanto a imagem dele vai se apagando.

"Não há um país mais moralista que o Brasil" | Foto: Iuri Muller/Sul21

Sul21 – Sobre o Brasil. Você  falou que não quer escrever esse livro do centenário até por ser algo mais documental. Mas quanto à literatura, ligado ao Brasil de Pelotas, tem algum episódio mais possível de ser utilizado? Para utilizar num conto, de repente…

Aldyr Garcia Schlee – Não sei se ficcionalmente, para um conto, mas há muitos episódios que me marcaram profundamente. Esses eu já delineei alguma coisa no prefácio que eu fiz para o livro sobre o desastre que o Brasil sofreu em janeiro de 2009 (A noite que não acabou, de Eduardo Cecconi e Nauro Júnior). Nesse prefácio eu toquei num assunto que me pareceu que podia ser explorado bem: o contato que eu tenho com o futebol e que eu vou retomar agora para fazer o texto de um livro de arte sobre o Grêmio Esportivo Brasil. Não é o livro do centenário. É um grande fotógrafo de trajetória internacional, o Gilberto Perin, que é espantoso. Ele inclusive é o autor da fotografia de capa do Don Frutos, foi aí que eu conheci. O Perin tinha dito para o meu editor no ano passado que estava com vontade de penetrar num espaço aparentemente inexpugnável, que é o vestiário dos times de futebol durante a partida – um lugar onde estão todos os segredos, e não sai nada lá de dentro. O que acontece lá dentro não pode ser contado. Ele queria fotografar e manter esse caráter secreto: não revelar, como repórter fotográfico, e sim captar como artista aquela situação única. Foram mais de trezentas fotos. Só que quando ele deu a ideia para o editor, deixou claro que não queria pegar um Corinthians ou um Flamengo, nem mesmo Grêmio ou Internacional. Ele queria um time pequeno que não tivesse nenhuma ilusão de ser campeão de algo grande, mas que tivesse alguma organização que não fosse amadora. Um time profissional que eventualmente enfrentasse os grandes.

Fim ou início de uma partida? l Foto: Gilberto Perin
"Nunca se ouve falar do que acontece dentro do vestiário" l Foto: Gilberto Perin

Nunca se ouve falar do que acontece dentro do vestiário. O livro não tem depoimento de nenhum jogador nem tem fotografia identificada de nenhum jogador. E o Perin foi de uma honestidade tremenda. Na última partida que ele cobriu aqui, eu e o meu filho fomos, e resolvemos esperar para jantar. O Brasil perdeu e houve briga no vestiário. Nós ficamos esperando na secretaria do clube, que tem uma porta que dá para um corredor que, por sua vez, dá no vestiário. Quando as pessoas entravam e saíam – e ele lá dentro fotografando – a porta abria um pouquinho e era possível ouvir os gritos e xingamentos. O Perin saiu lá de dentro, meio sorridente e louco de pena. Perguntamos: “mas vem cá, o que aconteceu lá dentro?” E ele: “não digo nada”. Até hoje ele não disse nem uma palavra. E os jogadores não contam, os técnicos não contam. Não tem um massagista que conte para a mulher dele botar na boca do mundo o que acontece lá dentro. O segredo do vestiário é uma coisa nunca vista. Tem imagens espantosas de superstição, fotos de um círculo com velas, um santo com uma velinha, um jogador ajoelhado sozinho num canto.

Sul21 – Ainda no futebol: o Uruguai depois de 84 anos volta às Olimpíadas…

Aldyr Garcia Schlee – Que coisa fantástica. Eu trouxe um álbum que na verdade é misto, um álbum e caderno de anotações, que acho que nunca ninguém vai usar como agenda. Na capa tem vários jogadores do Uruguai em relevo. O Forlán está em primeiro plano, o Luisito Suárez em segundo, tem mais alguns atrás, e uma bola. O cara mexe no livro e eles estão ali. E agora acompanhei e trouxe as fotografias da gurizada que se classificou e fez aquele vexame dos 6 a 0 (na última rodada do Sul-Americano Sub-20, qualificatório às Olimpíadas, o Uruguai foi goleado pelo Brasil em partida que valia o título do torneio). Aquele dia eu dormi enquanto o Equador jogava com o Chile, para poder aguentar o jogo da Celeste até às duas da manhã. Aquilo foi fora do normal. Agora, ao contrário da outra seleção sub-20 do Uruguai, que tinha o Lodeiro, o Coates, o García, o Viudez, o Urretaviscaya… uma porção de craques que ainda estão se afirmando. Muitos falharam, acredito que o Lodeiro falhou na Copa do Mundo. Ao contrário deles, todos esses de agora não têm um destaque particular.

Sul21 – E o Uruguai consegue o tricampeonato nas Olimpíadas?

Aldyr Garcia Schlee – Seria bárbaro. É um sonho. O time, não dá nem pra dizer que é tricampeonato, porque o Uruguai, para eles, já foi quatro vezes campeão (do mundo). Esse álbum que eu tenho tenta provar que o Uruguai é quatro vezes campeão do mundo. Eles contam todas as intrigas existentes entre o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a FIFA naquela época, nas Olimpíadas de 1924 e 1928. Que a FIFA pretendia organizar a chamar de campeonato do mundo, mas o COI deu um chega para lá neles, porque em alguns lugares já havia profissionalismo, e o negócio das Olimpíadas era disputa entre amadores. Eles convocaram países que tinham só amadorismo e excluíram os quatro britânicos – Escócia, Inglaterra, Irlanda do Norte e País de Gales –, fizeram o campeonato contra a FIFA e chamaram de campeonato do mundo. Aí que tá. Era um campeonato que se dizia do mundo, mas não o da FIFA. E os uruguaios repetem um argumento que não se completa, e não serve para se convencer. Eu estava louco para me convencer, mas não convenci. Eu tenho quatro garrafas da cerveja Pilsen, com rótulos – o cartaz de cada uma das Copas do Mundo, de 1930 e 1950, e das Olimpíadas de 1924 e 1928. Ou seja, Uruguai quatro vezes campeão. Campeão, sim, mas campeão do mundo dentro de uma mesma perspectiva só se a FIFA der um golpe como a CBF deu no fim do ano passado, transformando todos aqueles títulos antigos em campeonatos brasileiros.

"A partir desta camiseta, eu não tenho mais nada a ver com a Seleção Brasileira. Aquele vínculo de tantos anos se corta" | Foto: Ricardo Stuckert/CBF

Sul21 – Antes de voltarmos para a literatura, uma pergunta sobre essa nova camisa da Seleção Brasileira. Que te pareceu este modelo com aquela faixa verde no peito?

Aldyr Garcia Schlee – Eu até não gosto de responder sobre isso porque eu não tenho culpa nenhuma (risos). Eu só digo que não tenho culpa. A partir desta camiseta, eu não tenho mais nada a ver com a Seleção Brasileira. Aquele vínculo de tantos anos se corta. Enquanto foi uma criação minha, e eu aceitei isso, era uma coisa. Houve mudanças que não afetaram o conjunto: camisa amarela, calção azul, meia branca, e os detalhes em verde admissíveis na camisa. No momento que há uma barra, que na verdade é um tablete… não é uma faixa no peito ou na barriga como o Boca Juniors ou o Olimpia do Paraguai têm. É um tablete que não se completa sobre os braços. Uma coisa abusiva que descaracterizou completamente a camiseta. Ela não é mais a camisa canarinho, portanto não é mais a camisa que eu criei, e portanto eu não tenho mais nada a ver com ela. E a palavra que eu teria que utilizar neste caso era “foda-se”. Francamente. Podem reproduzir se quiserem (risos). Porque realmente é uma coisa revoltante, uma coisa absurda. O mais grave é que no dia seguinte esta camisa da Nike com esse tablete já estava sendo usada em outras equipes. Eles tentaram mexer, quando mexeram com a camisa de Portugal na Copa. Usaram uma faixa. Não se animaram a usar uma faixa na camisa brasileira, mas aquilo já caracterizou tudo. E outra coisa: no umbigo do cara, tem um número. O jogador brasileiro precisa ser identificado com um número no calção, que agora é obrigatório, parece, mas também um número na barriga? Acho que é uma coisa até indigesta.

Eleição de Mujica "era uma coisa que não se podia imaginar, algo como a Dilma aqui no Brasil" | Foto: Presidencia.gub.uy

Sul21 – Uma pergunta agora nem tanto como escritor mas como quem acompanha o Uruguai. Agora completam 40 anos da Frente Amplia. Até que ponto era impensado há  algum tempo que o governo de hoje, com o Tabaré e agora com o Mujica, seguisse a esquerda no comando do Uruguai?

Aldyr Garcia Schlee – Era impensado. Eu sou testemunha disso. Tive uma relação muito íntima com tupamaros. Abriguei tupamaros. Era uma coisa que não se podia imaginar, algo como a Dilma aqui no Brasil. Ainda mais o Mujica, porque houve uma cunha que foi se abrindo, mas antes de ela atingir os escalões institucionais no Uruguai ela foi fragilizando os escalões partidários. A tradição do Colorado e do Blanco ela vinha de muito tempo – da fundação do país, da criação do Estado. O Uruguai foi criado, e o Don Frutos fala isso, sem que houvesse na cúpula dirigente um consenso. Ele foi cedido ao povo uruguaio, com intermediação da Inglaterra, pelo Brasil e pela Argentina. Não foi uma conquista imediata. Tanto que ela começa em 1825. Bom, ela começa com a independência dos povos platinos da Espanha. Mas depois tem a famosa presença dos Trinta e Três uruguaios. Ali não se consolida a independência do Uruguai. Ali é a primeira manifestação. Vai haver uma luta permanente entre as facções. Um personagem que eu inventei faz essa revisão. E o Rivera vai lá e ocupa um pedaço do Rio Grande do Sul, as Missões. Com essa ação eles garantiram a independência e negociaram: o Uruguai se retira das Missões, a Província Cisplatina passa a ser independente, e o Rio Grande do Sul fica íntegro com o Brasil. Mas a diferença entre blancos e colorados havia. Tinha havido um pacto de cooperação. O próprio Rivera quando ia morrer, até passou por Jaguarão, tinha sido convidado para ser parte de um governo tri-partido: o Lavalleja, blanco, ele, colorado, e o Flores, mais ou menos colorado. Na verdade, o Flores era um trunfo brasileiro, como ficou comprovado, quando ele entrou na Tríplice Aliança com o Uruguai, como se fosse uma potência, para acabar com o Paraguai a serviço dos ingleses. Então eu vejo que o que aconteceu não é novo. Depois da ditadura militar, essa cunha que foi abrindo espaço entre os partidos políticos tinha que ser ocupada, porque ação política é ocupação de espaços. Esse espaço estava vazio. E na luta contra os militares tinham se notabilizado vários espaços que eram esquerdistas, cada um deles mais ou menos radical. Talvez o menos radical fosse o PCU, e os mais foram os Tupamaros, embora eles estivessem marcados por vários atos que não praticaram e os militares acusaram. Ser subversivo era conforme os americanos vissem o mundo. Por 30 anos eles mantiveram o presidente no Egito – o segundo país mais financiado por eles no mundo era a ditadura do Mubarak – e a nossa imprensa não chamava ele de ditador. Também esqueceram por muito tempo do Kadafi, mas agora querem derrubar o Kadafi. Então agora o Kadafi é inimigo da humanidade como era há 45 anos mas eles esqueceram, porque precisavam meter a mão na Somália, no Afeganistão, no Iraque, no Irã… então essa questão dos partidos no Uruguai foi em detrimento da força do partido Blanco por um lado e da força do partido Colorado por outro. Entre eles, de acordo com a forma como se elegem as pessoas no Uruguai, existem as listas – que opõem dentro de um partido as diferentes facções. As facções já estão divididas. Os grupos fazem suas listas preferenciais, e nelas a cabeça é do cara que manda naquela facção. A gente vota na lista e de acordo com o número de eleitores do partido, eles preenchem na ordem da lista. Não é o sistema inglês, nem o francês, e muito menos o nosso, que em todos os sentidos é um atentado contra a matemática e o sistema proporcional. Isso fragilizou muito os dois partidos tradicionais. Na redemocratização, até que se aceitassem os mais extremados, se criou a Frente Ampla. Hoje, a Frente Ampla é um partido, não é uma frente, e nem é ampla – ela hoje convive em uma espécie de coalizão com outros partidos, mas eles nunca perderam a condição de partidos enquanto fizeram parte da Frente Ampla. E a Frente Ampla saiu de dentro dela mesma como um partido. Mas o Partido Socialista continuou existindo. O PCU continua existindo. E a Frente Ampla continua existindo, mas eles não estão dentro da Frente Ampla. Esse é um risco. E dentro da Frente Ampla tem duas grandes facções: a do Tabaré Vázquez, que deverá ser outra vez o candidato, e a dos Tupamaros, que está no poder com o Mujica. O Mujica tem se controlado, tem se comportado bem, não bota gravata, mas isso o Kirchner também não fazia (risos). Eu não tive a felicidade de conhecê-lo, mas ele é um cara admirável. A mulher dele ficou 14 anos presa. Os tupamaros estão querendo fechar as portas para o Vázquez, porque esse vazqueísmo, ou sei lá que nome posso dar, ele toma conta, e anula o espaço que é do Movimento Nacional Tupamaro. E o Tupamaro é um movimento dentro da Frente Ampla, que é um partido consolidado em torno do Vázquez. Eu vejo que a manutenção desse grupo no poder é impensável. Desse grupo, ou seja, o Movimento Nacional Tupamaro. Até porque vai chegar um momento em que ele terá que radicalizar. E a história recente da América Latina mostra que o espaço de radicalização está pelo pescoço. Por exemplo, a intervenção militar via Colômbia na Venezuela chegou a ser uma possibilidade. Via Panamá já não é mais. Mas via Colômbia, por causa do narcotráfico, ainda é. A manutenção dos índios no comando do poder na Bolívia é uma possibilidade, mas também está no limite. No Brasil, a fase Lula chegou ao limite com a Dilma. Mais que a Dilma não vão aceitar, as nossas elites. Aguentaram um analfabeto, como diziam que era o Lula, com aquela capacidade do Lula de argumentar que nenhum estadista tipo Fernando Henrique tivera… E no Uruguai, o Tabaré é quem está mais além dos limites do que o próprio Chávez, eu entendo. É que o Uruguai é um país considerado insignificante, e depende espantosamente da economia do Cone Sul. As alternativas são a Frente Ampla consolidar seu domínio resolvendo dentro dela os impasses entre os tupamaros e o próprio frenteamplismo, com apoio dos socialistas, dos comunistas e, curiosa e contraditoriamente, dos democratas cristãos, que estão na Frente Ampla. Além de outros menores. As próximas eleições vão ser muito importantes. Daqui a dois anos vai começar a haver o embate que vai atingir a Argentina, o Uruguai e a Bolívia. Depois, três mais quatro, o Brasil. E a Venezuela está acima disso porque ela pode manter a continuidade de acordo com a visão que foi estabelecida pelo congresso deles – o presidente é reelegível indefinidamente, uma coisa que está na democracia desde o tempo dos romanos, desde a Grécia Antiga. Mas enquanto os americanos tiverem o poder de chamar alguém de ditadura, eles vão utilizar isso, e já usam em relação ao Chávez. E tem também uma questão que vai ter reflexos na América Latina, que é a questão de Cuba, da morte do Fidel Castro e a forma pela qual o irmão dele ou quem for, vai tentar resolver – o avanço que terá o outro lado. Miami é mais perto do que Jaguarão.

Sul21 – O afastamento de Fidel Castro já é uma forma de vislumbrar antecipadamente esse período de transição…

Aldyr Garcia Schlee – Mas até  que ponto vai. Até o momento, o que tem acontecido em Cuba é  irrelevante. A gente abre o jornal, o El Día do Uruguai, que é de extrema direita, tem um caderno semanal de relações internacionais, e num artigo dizia “A Ilha está afundando: mais uma concessão ao regime capitalista. Os pequenos comerciantes estão sendo admitidos.” Aí tem um cara que abriu numa janela da casa dele uma venda de comestíveis. E um cara que é sapateiro. Esses dois caras continuam tendo subsídios do estado que qualquer pessoa tem em Cuba. Atividades culturais gratuitas, educação gratuita, atenção sanitária gratuita de altíssima qualidade, e uma verba para alimentação com cupons que os inimigos dizem que eles vendem os cupons e passam fome. Essa verba tem, de acordo com a bula expedida por nutricionistas, uma previsão dos gastos para cada pessoa dos vegetais, com leite, pão e carne. “Ah, é uma merda a quantidade de carne a que eles têm direito”… mas todo o cubano tem direito a comer carne. Qual brasileiro tem direito a carne? É uma questão da visão do mundo. Todo cubano tem direito à mesma quantidade de dinheiro. O médico, a enfermeira, o operário da construção civil, todos ganham a mesma coisa. Isso em dólar deve ser muito pouco por mês. Mas eles têm todas as necessidades satisfeitas pelo estado e ganham dinheiro. Que eles fazem com isso? Se quiserem, não gastam. Essas coisas não entram na cabeça de quem está acostumado a viver como nós vivemos, ainda mais quem é contra o regime deles. Então essa mudança que o governo está fazendo é permitir que as pessoas que estejam aposentadas por alguma razão – o caso desse rapaz que sofreu um corte no braço e ficou sem movimentos na mão num canavial, veio para a cidade e abriu um bar onde vende pequenas coisas. O que são essas coisas? Aquilo que é considerado dispensável pela bula nutricional do governo: balas, refrescos, que as pessoas podem adquirir. O preço disso é ínfimo, proporcional à capacidade de consumo. E o outro é sapateiro. Lá é possível, porque a pessoa ganha sapato. Mas eu acho que não escapa. Cuba não escapa. Não pode escapar. Não tem a contrapartida internacional que vá justificar a condenação a uma eventual ocupação de Cuba pelos Estados Unidos. Antes havia, durante a Guerra Fria nem se discutia. Agora os americanos criaram inimigos para justificar a fabricação de armas, a intervenção militar, a colocação de empresas americanas ganhando dinheiro na reconstrução do país que eles vão lá e destroem… a empresa que deu mais dinheiro na campanha do Bush é a que comanda a reconstrução do Iraque. É assim. Ontem um cara veio dar um jeito na bateria do meu carro e me perguntou como estavam as coisas lá no Uruguai. “Muito bem”, eu disse. E ele: “me disseram que está uma miséria louca”. Depende do ponto de vista, porque aqui é uma roubalheira. Eu disse: “aqui é o único país do mundo que tem corrupto mas não tem corruptor. Já ouviu falar em alguém que corrompa?” O cara não entendeu o que eu disse, ficou chateado e foi embora. É impressionante. Não há um país mais moralista que este, porque o dia inteiro está na tevê o seu Lasier Martins (risos)…


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