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19 de abril de 2011
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22:47

Jânio Quadros, carismático e contraditório, abandona o poder

Por
Sul 21
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Na campanha à presidência, Jânio Quadros prometia varrer a corrupção - Foto: reprodução

Rui Felten

Jânio Quadros era um homem de hábitos um tanto esquisitos. Costumava guardar sanduíches de mortadela nos bolsos e sujava o paletó de talco para parecer caspa. Dizia que isso o tornava alguém mais comum e o aproximava dos pobres. Depois de eleito sucessor de Juscelino Kubitscheck, aos 44 anos, em 3 de outubro de 1960, por 5,6 milhões de votos — o maior índice até então alcançado por um candidato a presidente da República no Brasil –, também se notabilizou por estranhices. Vetou a transmissão pela TV dos desfiles de candidatas a misses vestindo biquíni e proibiu o uso da peça nas praias.

Em sua campanha eleitoral, a vassoura virou símbolo da varredura que ele prometia fazer na imoralidade e na corrupção. Foi este o tema do jingle “Varre, Varre, Vassourinha”, em ritmo de marchinha carnavalesca, composto por Maugeri Neto. Eleito, Jânio também mandou que parassem as rinhas de galo e as corridas de cavalos em dias úteis. E tornou ilegal o uso de lança-perfume, spray que os foliões borrifavam uns nos outros no Carnaval. Mas, contraditoriamente, regulamentou o jogo de carteado.

O cineasta Silvio Tendler — autor do filme “Os Anos JK – Uma Trajetória Política” (1980) — disse certa vez que o país, ao eleger Jânio presidente, esperava um estadista, mas viu no poder um “delegado de costumes”. Contraditoriamente, também, Jânio tinha a fama de quem abusava da bebida.

As contradições do primeiro presidente do país a governar em Brasília — cidade projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e inaugurada por JK em 21 de abril de 1960 — não se limitaram aos meandros do comportamento. Manifestaram-se igualmente nas decisões políticas. Anticomunista declarado e apesar de ter controlado sindicatos, reprimido protestos de camponeses e ordenado a prisão de estudantes rebeldes, ele abriu a guarda aos países socialistas e condecorou o líder revolucionário Che Guevara com a maior distinção concedida pelo país, a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.

Jânio condecorou Che Guevara e irritou os militares

O fato incomodou não só a corrente política conservadora brasileira, mas também o governo norte-americano de John Kennedy, que acabara de atacar a Baía dos Porcos, em Cuba, em uma tentativa frustrada de invasão, durante a qual Jânio já havia causado mal-estar ao manifestar apoio ao presidente cubano Fidel Castro. Mais do que isso, ele queria o Brasil se relacionando com todas as nações, com ênfase na aproximação com os países socialistas. Assim, retomou as negociações diplomáticas e comerciais com a União Soviética e com a China. Setores políticos e econômicos internos, ao contrário, tinham a convicção de que o Brasil deveria se manter alinhado aos Estados Unidos.

Em choque com a UDN

Jânio era o primeiro presidente do Brasil eleito com apoio da UDN (União Democrática Nacional), partido de raízes ultraconservadoras, habitado por opositores de Getúlio Vargas e que representava os interesses das oligarquias rurais e financeiras. A UDN defendia o latifúndio, a propriedade privada e o capital estrangeiro, e tinha entre seus líderes o governador do estado da Guanabara (hoje, Rio de Janeiro), Carlos Lacerda, que havia atuado decisivamente para que Jânio tivesse sido o candidato da sigla à presidência da República, e não o governador baiano, Juraci Magalhães, como queria o partido.

Pois Jânio Quadros conseguiu se indispor também com quem lhe havia dado sustentação. Enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei pioneiro de reforma agrária e outro (chamado antitruste) estabelecendo para empresas um imposto de 30% sobre lucros nacionais e estrangeiros. Nenhum dos dois sequer entrou em votação no plenário. Lacerda virou-se contra Jânio e empenhou-se numa campanha escamoteada contra ele, certo de que o presidente que havia chegado ao poder pelas bênçãos da UDN não representava verdadeiramente a legenda.

“A estratégia de Jânio Quadros de colocar-se acima dos partidos fora adotada ao longo de toda a sua vida política. Desde que foi eleito vereador em São Paulo (pelo PDC, 1947), deputado estadual (PDC, 1948), prefeito (PDC-PSB, 1953), governador (PSB-PTN, 1954) e deputado federal pelo Paraná (PTB, 1958)”, escreveu José Joaquim Felizardo, autor do livro “A Legalidade — Último Levante Gaúcho” (Editora da Universidade/UFRGS).

O golpe do antigo padrinho político

O artifício de Lacerda para ajudar a derrubar o presidente foi reforçar entre os militares e a opinião pública o sentimento de que o presidente da República estava emparedado ao comunismo. A propósito, no dia 25 de agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, o vice-presidente João Goulart, o Jango, estava na China, tratando de acordos comerciais, em companhia de uma delegação diplomática. A missão tinha sido enviada por Jânio, que confiara a Jango a tarefa de organizá-la e de chefiar a viagem. O que parecia prestígio tinha sido, na verdade, uma armadilha contra o vice-presidente para colocar as Forças Armadas em prevenção contra ele.

Auro Moura Andrade: “Jânio Quadros engravidara-se do poder e estava em gestação"

Essa versão foi dada, por exemplo, pelo então presidente do Senado e do Congresso Federal, Auro Moura Andrade (1915-1982), no livro “Um Congresso Contra o Arbítrio — Diários e Memórias 1961-1967” (Editora Nova Fronteira). “Jânio Quadros engravidara-se do poder e estava em gestação. Por isso, decidiu praticar uma sucessão de atos que ele supunha predispor ainda mais o Exército, a Marinha e a Aeronáutica contra o vice-presidente”, escreveu Andrade. Só que o feitiço voltou-se ainda mais contra o feiticeiro, porque foi justamente durante a ausência de Jango do país que Jânio condecorou Che Guevara.

Sobre Jango, Andrade afirmava que uma parte das Forças Armadas e outra da política não concediam ao vice-presidente nem mesmo um atestado de boa conduta: “Para estes, Jango, se não era comunista a descoberto, com essa viagem à China continental assim se revelaria. Jânio tinha razões para crer que os militares não permitiriam a posse de Jango [quando ele renunciasse]. Quando entendeu que havia chegado o momento do golpe espetacular que preparara, entregou o governo aos três ministros militares, a fim de que estes cuidassem de Jango, enquanto ele, Jânio, ia cuidar do levante nos estados. O plano incluía a sua renúncia”.

O último bilhete do presidente

Foi Auro Moura Andrade quem recebeu o bilhete de Jânio comunicando sua renúncia ao Congresso, na manhã de 25 de agosto de 1961, depois de o presidente ter despachado com assessores e assistido ao desfile comemorativo do Dia do Soldado, em Brasília. Os bilhetes curtos e objetivos, aliás, eram outro hábito pitoresco do presidente para se comunicar com todo mundo a sua volta e para dar ordens.

Bilhete de renúncia

Nesse último, ele escreveu que estava abandonando o governo porque se sentia vítima de “forças terríveis”. A decisão veio depois de Carlos Lacerda ter afirmado em rede estadual de TV, na noite anterior, que tinha sido convidado por Jânio Quadros, por intermédio do ministro da Justiça, Pedroso Horta, a participar de um golpe. “Sabe-se, agora, que Jânio Quadros estava convencido de que a sua renúncia teria de ser objeto de tramitação no Congresso Nacional, de pareceres, discussão e votação”, atestou Andrade, corroborando a tese de que Jânio acreditava que a população e as Forças Armadas se mobilizariam pela permanência dele, enquanto ganharia tempo com o Congresso, já que o comunicado da renúncia fora entregue em uma sexta-feira, quando não haveria quorum para votações.

Nascido em Campo Grande (Mato Grosso do Sul), em 25 de janeiro de 1917, filho de paranaenses de classe média, Jânio Quadros se transferiu com a família para Curitiba e depois para São Paulo, em 1930. Formou-se em Direito e, antes de se tornar político, exerceu a profissão de advogado. Na capital paulista, foi também professor de Geografia do Colégio Dante Alighieri, onde, admirados com a sua capacidade oratória, os estudantes o estimularam a se lançar candidato a vereador em 1948. Carismático, ele fez sucesso rápido na política — mais adiante, foi o candidato mais votado a deputado estadual.

Mas a socióloga Maria Victoria Benevides, autora do livro “O Governo Jânio Quadros” (Editora N/D), questiona esse talento atribuído a ele, fazendo uma comparação entre Jânio e Getúlio Vargas, outro líder celebrado pelo carisma. Diz ela: “Getúlio tinha a marca inconfundível e duradoura do carisma. Jânio, apesar de insistente¬mente apresentado como um dos exemplos mais brasileiros do político carismático, teve apenas a caricatura do carisma, ou seja, o talento histriônico, a facilidade para a adesão epidérmica, populista no pior sentido da palavra, da manipulação e do auto¬ritarismo. O carisma desprende-se muito mais da personalidade do líder, e menos do papel que ele representa. O histrião terá o carisma da máscara. Será, sempre, um falso carisma. Jânio foi, sem dú¬vida, um bom ator. Mas com um papel ultrapassado e mistificador, do ponto de vista do desenvolvimento social e político e das reais aspirações de participação das classes trabalhadoras”.


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